"Interrupção Voluntária da Gravidez"
Intervenção do Deputado Bernardino Soares
20 de Fevereiro de 1997

 

Se fosse para qualquer um de nós possível imaginar algo de mais atroz, violento e irracional do que forçar qualquer mulher ao aborto clandestino; se fosse possível medir a violentação que para cada mulher o recurso à interrupção voluntária da gravidez significa; se conseguíssemos escolher de entre o intolerável aquilo que mais intolerável é, facilmente escolheríamos o flagelo que é empurrar milhares de adolescentes e jovens mulheres para o aborto clandestino.

Dos largos milhares de mulheres que todos os anos se vêem obrigadas a recorrer à interrupção voluntária da gravidez, grande parte são jovens, talvez mais de seis mil, muitas na adolescência, que carregam para a vida os fardos pesados das consequências físicas e psíquicas de um ou mais abortos clandestinos.

Sofrem com frequência as complicações várias e lesões diversas que todos os dias os serviços de saúde acabam por conhecer, quando a eles recorrem com complicações pós-abortivas. Por vezes recorrem tarde ou nunca à assistência médica, ameaçadas pela sanção penal e social. Muitas ficam marcadas pela infertilidade de que o aborto clandestino é a primeira causa, comprometendo o seu projecto de vida, de família e de maternidade futura.

Algumas não chegam a conhecer a idade adulta porque pagam com a vida o crime de não poderem optar.

Não se trata aqui da construção artificial de cenários catastrofistas, mas da constatação de dados cuja aproximação da realidade será sempre por defeito. Só em 1991, na urgência da Maternidade Magalhães Coutinho, das jovens que deram entrada, 91% revelavam complicações pós-abortivas e destas 72% referentes a aborto provocado. Em cada 3 mortes maternas que o aborto causou em média nos últimos anos uma é jovem, sendo Portugal o único país da União Europeia onde se continua a morrer por esta causa.

É fundamental reflectir sobre a evolução visível da sexualidade dos jovens e sobre a resposta da sociedade a esta alteração.

Vivemos numa sociedade em que há uma presença constante da oferta de erotização e que o apelo à sexualidade é permanente. O consequente aumento do desejo sexual dos adolescentes não é compensado com um acréscimo suficiente da educação sexual e da informação contraceptiva.

E se clinicamente a idade fértil tende também a baixar, é a antecipação da vida sexual activa e a apetência crescente dos jovens pela fruição plena da sua sexualidade que denunciam a maior autonomia sexual dos jovens, em especial das mulheres, que hoje se verifica.

Emerge uma vivência sexual tendencialmente livre de preocupações reprodutivas, traduzindo a rejeição de mecanismos de poder e de controlo social e institucional da sexualidade, dos actos e dos pensamentos, das necessidades satisfeitas e dos desejos insatisfeitos dos jovens.

Mas esta evolução de mentalidade dos jovens não encontra ainda resposta cabal por parte da sociedade. O necessário investimento na educação sexual e planeamento familiar é permanentemente castrado por uma certa moral que teima em indexar a sexualidade à procriação, talvez receando que a vida sexual e amorosa plena contribua também para o libertar das consciências dos jovens e para uma formação mais completa e equilibrada enquanto indivíduos.

Certamente por isto, mas também por não se cumprir a Lei do Planeamento Familiar e pela ausência da Educação Sexual nas escolas, a gravidez é um dos maiores riscos da sexualidade na adolescência.

A insuficiente disseminação e eficácia do planeamento familiar agrava- se ainda mais quando pensamos nos jovens. É que para além das limitações no acesso aos cuidados de planeamento a que todas as mulheres estão sujeitas, para a jovens soma-se ainda o calvário de um sistema de saúde demasiado formal, pouco atractivo, sem privacidade e que com frequência se limita à mera prescrição médica esquecendo a vertente pedagógica.

É justo criar condições para que o sistema de saúde garanta o cumprimento da lei e que, respeitando o direito à objecção de consciência dos profissionais de saúde, isso não implique o abandono da jovem mulher à sua própria sorte nem inviabilize a concretização de direitos que são seus.

O acesso aos métodos contraceptivos é limitado por factores económicos e de uma inadequada rede de distribuição. Ouvimos relatos de casos frequentes em que a gravidez indesejada surge porque no Centro de Saúde a mulher não encontrou contracepção disponível e porque provavelmente não tem dinheiro para a comprar.

A tudo isto se junta a falta de informação e a ausência de Educação Sexual digna desse nome. Assim se explicam os dados de um inquérito da Direcção Geral de Saúde que revelam que em 1993 17,6% dos casais ainda recorriam ao coito interrompido como método contraceptivo, número que será tanto maior quanto menor for a idade. É por isso que alguns estudos sobre o comportamento sexual dos jovens demonstram que é elevado o número de relações sexuais desprotegidas; que de um terço das primeiras relações está ausente qualquer método contraceptivo; que um terço dos jovens já utilizou ou utiliza o coito interrompido como método contraceptivo.

É também por isso que temos em Portugal uma elevada taxa de mães adolescentes que, apesar de ter baixado em 1995 para 7,9%, continua bastante longe dos 2,2% da Holanda, dos 2,7% da França ou dos 2,9% da Alemanha.

Ainda segundo dados da Direcção Geral de Saúde, em 1994 18,6% dos abortos identificados referiam-se a jovens com menos de 15 anos, tendo esta taxa subido em 1995 para 36,3%.

Só recorrendo a uma grande dose de autismo e hipocrisia, ou sofrendo de um desconhecimento completo da realidade em que vivemos, é possível alguém negar que muitos milhares de jovens recorrem hoje, sem mais alternativas, ao aborto clandestino.

É por isso que consideramos indispensável alterar a actual lei, defendendo a saúde das mulheres, respeitando a vida e garantindo o seu direito a uma maternidade desejada e consciente. É por isso que sabemos que a prevenção da interrupção voluntária da gravidez se faz através do Planeamento Familiar e da Educação Sexual e não através da sanção criminal ineficaz e desnecessária.

O projecto de lei do PCP inclui diversas propostas que consideramos fundamentais para uma verdadeira protecção das jovens mulheres e das adolescentes.

Sabemos que a sua aprovação não é suficiente. É preciso que a lei seja aplicada nos estabelecimentos de saúde, que se cumpra a Lei do Planeamento Familiar, que sem falsos moralismos se introduza a Educação Sexual nos currículos escolares. Mas sabemos também que a actual lei não resolveu os graves problemas existentes e que se impõe a sua mudança.

O verdadeiro combate ao aborto clandestino não pode esquecer as suas verdadeiras e principais causas: os problemas económicos, sociais, emocionais de que tantas mulheres são vítimas. Não pode esquecer que mais de metade dos desempregados do nosso país são mulheres; que 70% dos desempregados de longa duração são mulheres; que dois terços das situações de trabalho precário são mulheres.

Tal como não pode omitir que nos mais de 100 mil desempregados jovens, nas estatísticas assustadoras do abandono escolar, nos milhares de toxicodependentes e excluídos sociais há um enorme número de jovens mulheres.

E é certo que uma minoria se desloca a Espanha ou a Inglaterra à procura de melhores condições clínicas ou de segurança, a esmagadora maioria, isto é, as que pertencem às classes sociais mais baixas, sujeita-se sem protecção à violência do negócio do aborto clandestino que redobra a incalculável violentação que só por si representa para uma mulher, para qualquer mulher, o recurso à interrupção voluntária da gravidez.

Por isso se exige e se propõe que a mulher possa recorrer à IVG até às 12 semanas, sem mais condicionantes ou restrições do que aquelas que a sociedade já impõe. Por isso é preciso que a mulher e especialmente a jovem mulher possa viver na liberdade de optar por uma maternidade consciente e pelo seu direito à saúde.

Este é o debate que aqui fazemos hoje! É o debate sobre a vida das mulheres que vivem em bairros de lata; que desesperam à procura de trabalho e se sujeitam ao compromisso de que não serão mães nos próximos tempos; das mulheres que sabem que uma gravidez significa quase sempre perder o emprego; das que têm 4, 5 ou mais filhos e apenas uma cama para os deitar; das que se vêem confrontadas com a gravidez indesejada e que clandestinamente violam o seu corpo e a sua consciência.

Estas mulheres não merecem censura, não merecem castigo. Merecem justiça!