Mensagem do Presidente da República fundamentando a sua decisão relativa à proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 52-A/2005, de 29 de Setembro (Propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez realizada nas primeiras 10 semanas)
Intervenção de António Filipe
7 de Dezembro de 2005

 

 

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados,

Queria dizer, em primeiro lugar, que não nos congratulamos com a situação que está criada em torno do problema da interrupção voluntária da gravidez e da sua despenalização.

Ao contrário do que diz o Sr. Deputado Vitalino Canas, não cantamos vitória alguma. A direita poderá fazê-lo, mas nós não.

Na verdade, estamos de acordo com a decisão do Tribunal Constitucional, que, aliás, corresponde à posição que aqui manifestámos.

Sempre entendemos, e os Srs. Deputados farão a justiça de o reconhecer, que, constitucionalmente, era assim que as coisas deveriam funcionar.

De todo o modo, isto é irrelevante, porque a decisão jurisdicional do Tribunal Constitucional, depois de tomada, é vinculativa e, sendo legítimo manifestar a nossa discordância ou concordância (neste caso, a nossa concordância), esta decisão obriga toda esta Assembleia. Portanto, a decisão foi tomada pelo Tribunal Constitucional e nós concordamos e identificamo-nos com o seu conteúdo.

Todavia, não nos congratulamos com nada do que está a passar-se neste processo e só temos de lamentar a forma errática como o Partido Socialista tem conduzido este processo, subordinando o essencial ao acessório. Isto é, o Partido Socialista, tanto quanto julgamos saber, comprometeu-se a fazer duas coisas: a despenalizar a interrupção voluntária da gravidez e a fazer um referendo sobre a matéria. O Partido Socialista diz, contudo, que a sua grande promessa eleitoral é a de fazer o referendo, ainda que isso não dependa de si, deixando na sombra aquilo que para nós é essencial. Na verdade, continua a haver julgamentos e continua a haver mulheres que são levadas a tribunal, acusadas de terem interrompido a gravidez, problema com o qual o Partido Socialista parece não se preocupar. Ao invés, parece só se preocupar em andar para trás e para a frente e em criar trapalhadas em torno da realização de um referendo.

Nós, por outro lado, estamos confrontados com a questão essencial que a Assembleia da República já poderia e deveria ter resolvido há muito tempo, apenas não o tendo feito porque o Partido Socialista, que é maioria, o não quer, refugiando-se atrás do referendo e da impossibilidade de realizá-lo.

Continuam, assim, a defender que um dia, mais tarde, quando puderem vir a propor outro referendo, o farão, não sabendo se ele virá alguma a vez a ser feito. E, «referendo vai, referendo vem», a questão não se resolve e os julgamentos continuam a realizar-se. É, contudo, preciso que se saiba que as mulheres continuam a ser acusadas da prática de aborto, continuam a ser sujeitas à aplicação legal (porque a lei continua a prevê-las) de penas de prisão para essas situações e que o Partido Socialista está insensível a tudo isto.

A direita não se importa porque, hipocritamente, quando há julgamentos vai dizendo que os lamenta e que é contra eles, fazendo tudo para que tudo fique na mesma e para que a penalização continue inscrita na lei. E é por isso que se regozija, já que, na verdade, a direita regozija-se com tudo o que possa contribuir para que este problema não se resolva. Infelizmente, conta com a colaboração prestimosa do Partido Socialista, que, nesta matéria, continua a não querer assumir as suas responsabilidades, não permitindo que a Assembleia da República assuma as dela.

A nossa posição é muito clara: não há razão absolutamente alguma, nem jurídica nem política, para que a Assembleia da República não aprove uma lei que despenalize a interrupção voluntária da gravidez.

Esta é uma mera questão de vontade política e as responsabilidades que todos os partidos têm de assumir nesta matéria são de cariz político e assumem-se perante o povo português, o País e perante as mulheres que continuam a ser levadas a tribunal, acusadas de interromper a gravidez. Por isso é que em nada nos congratulamos com este processo e pensamos que a Assembleia da República, por força da maioria, não está a querer assumir as responsabilidades que tem nesta matéria e não está, no final de contas, a cumprir aquela que também foi uma promessa eleitoral que o Partido Socialista fez, que foi a de, nesta Legislatura, despenalizar a interrupção voluntária da gravidez.

Pela nossa parte, continuaremos, coerentemente, a lutar para que este objectivo seja alcançado. Nesta altura, por força da posição do Partido Socialista, não temos outra possibilidade que não seja a de esperar por uma próxima sessão legislativa para que este problema se resolva. Insistiremos, porém, na sua resolução, porque pensamos que continua a ser uma vergonha nacional o facto de mulheres continuarem a ser levadas a tribunal por esta causa.

(…)

 

Sr. Presidente, na verdade, quase não precisava de dar explicações, porque o que o Sr. Deputado Vitalino Canas disse agora é de uma absoluta inconsistência.

O Sr. Deputado acusa o PCP de inviabilizar o referendo, mas quem o inviabilizou, da primeira vez, foi o Sr. Presidente da República, por decisão própria e legítima. Da segunda vez, quem inviabilizou a realização do referendo foram os senhores, porque decidiram adoptar uma decisão procedimental na Assembleia da República para cuja inconstitucionalidade vos alertámos desde o primeiro minuto, tendo os senhores insistido que não era inconstitucional e que podiam fazê-lo. Nós dissemos: «Olhem que isso é inconstitucional!», pelo que não foi por falta de aviso da nossa parte que os senhores incorreram nesta inconstitucionalidade. Não venham, agora, dizer que fomos nós que inviabilizámos o referendo, quando desde o primeiro dia dissemos que, se fossem por aí, arriscar-se-iam a que não houvesse referendo algum. Não venham, portanto, acusar nos do que não fizemos.

Depois, o Sr. Deputado pergunta por que é que reapresentámos o nosso projecto de lei. Por razões óbvias! De facto, uma vez que tinha sido decidido por maioria que estávamos noutra sessão legislativa, não íamos continuar a fingir que a Assembleia nada tinha decidido. Assim sendo, como era nosso direito na base desse entendimento, apresentámos esse projecto. Todavia, assim que houve o acórdão do Tribunal Constitucional, retirámos o projecto, estado, aliás, em que ele se encontra neste momento. Para nós, as regras são aquelas que são decididas. Não serão, necessariamente, aquelas que queremos, mas, uma vez adoptadas, o que fazemos é respeitá-las e foi isso que fizemos. Como tal, também aqui o Sr. Deputado nada tem de que nos acusar!

Depois, V. Ex.ª diz uma coisa extraordinária, acusando-nos de termos inviabilizado a única forma de resolver este problema. Para nós, a única forma de resolvermos o problema passa pelo facto de os senhores aceitarem discutir, na especialidade, o projecto de lei que apresentaram e que já foi aprovado generalidade.

Sr. Deputado, há um projecto de lei do Partido Socialista já aprovado na generalidade à espera que os senhores o discutam e aprovem na especialidade. O projecto é vosso, mas estamos inteiramente disponíveis para vos apoiar se avançarem com ele. É esta a forma de resolver este problema. Os senhores estão a bloquear a discussão na especialidade de um projecto de lei que é vosso e que tem o nosso apoio. Aprovem-no! Dizerem que não há outra forma de resolver isto e acusar-nos de estarmos a inviabilizar este processo é que não lembra a ninguém e não tem consistência absolutamente alguma.

Fazemo-vos, portanto, este convite. Se os senhores estão interessados nesse desafio e em despenalizar a interrupção voluntária da gravidez, devem aprovar na especialidade e em votação final global o projecto de lei que é vosso e que foi aprovado na generalidade por esta Assembleia.