Referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez
Intervenção de António Filipe
 28 de Setembro de2005

 

 

 

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

 

O Partido Socialista reapresenta hoje para discussão o projecto de realização de novo referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Vamos deixar de lado a insólita trapalhada constitucional e regimental que determinou a possibilidade de reapresentação deste projecto. É matéria discutida e redescutida nesta Assembleia, cuja apreciação ficará para o Tribunal Constitucional. A nossa posição sobre esse assunto é conhecida. Importa hoje discutir a questão de fundo.

A questão de fundo para o PCP é muito clara. É tempo e mais que tempo da Assembleia da República aprovar uma lei despenalizadora da interrupção voluntária da gravidez que acabe de uma vez por todas com a perseguição penal das mulheres acusadas da prática do crime de aborto.

É tempo e mais que tempo de acabar de uma vez por todas com o vexame das mulheres que são levadas ao banco dos réus, humilhadas na praça pública pela devassa policial da sua intimidade, sujeitas à aplicação de penas de prisão que ninguém diz desejar, mas que continuam previstas na lei.

É tempo e mais que tempo de acabar com a hipocrisia daqueles que dizem não querer punir as mulheres e que se regozijam por não haver nenhuma mulher presa por ter abortado, mas que entretanto continuam a recusar alterar uma legislação em que está prevista a pena de prisão para as mulheres que tenham abortado voluntariamente e que de há muito deveria ter passado à História.

É tempo e mais que tempo de acabar com uma situação em que as mulheres que não têm dinheiro para interromper a gravidez em segurança em clínicas no estrangeiro, e apenas essas, são obrigadas a alimentar o negócio do aborto clandestino, com todos os riscos que daí possam decorrer para a sua própria saúde.

Senhor Presidente e Senhores Deputados,

É esta a questão de fundo e é com esta questão que nos devemos preocupar. Em vez de andar com propostas de referendo para a frente e para trás, e de trapalhada em trapalhada, a Assembleia da República deveria, agora que dispõe de uma maioria parlamentar favorável à despenalização da IVG, usar as competências constitucionais de que dispõe para legislar finalmente nesse sentido.

O Partido Socialista no entanto prefere insistir de novo na realização de um referendo. Não que a Constituição o imponha. Está dito e redito que ao referendo do século passado, realizado no já longínquo ano de 1998 foi conferida uma eficácia política que ele juridicamente nunca teve, e que permitiu que 15% dos eleitores portugueses que votaram “não”, impusessem a sua vontade política a todos os demais e manietassem a decisão do órgão de soberania representativo de todos os cidadãos portugueses.

Acontece porém que a eficácia que esse referendo, sublinho, nunca teve, ameaça perdurar para a eternidade. Para os partidos da direita, para quem o referendo não passou de um instrumento destinado a enredar o PS nas suas contradições com o objectivo de a inviabilizar a despenalização da IVG, este referendo deve ser eterno na sua validade. Para o PS, a realização do referendo passou a ser um fim em si mesmo. O problema da despenalização da IVG passou para segundo plano e a questão fundamental é fazer o referendo. Quanto a nós, esta forma de ver as coisas coloca o problema completamente ao contrário e revela uma enorme insensibilidade perante o flagelo do aborto clandestino.

O Partido Socialista diz que a referendo foi uma promessa eleitoral e deve ser cumprida. Temos pena que esse critério não seja aplicável a todas as promessas eleitorais do PS e que quase todas as outras tenham sido lançadas pela borda fora sem grandes remorsos. Mas neste caso, a promessa foi cumprida. O PS apresentou nesta Assembleia e fez aprovar já nesta legislatura um projecto de resolução para realizar um referendo sobre a IVG. Só que, como se sabe, a decisão não depende só de si. Depende de uma decisão do Presidente da República, que, como se sabe, decidiu em sentido diverso.

Seria de toda a lógica e teria toda a razoabilidade que o PS tivesse entendido que, cumprido o seu compromisso com os eleitores de propor um referendo, e tendo este sido inviabilizado, a resolução do problema de fundo, que é a despenalização da IVG, deveria ser remetida para a sua sede própria, que é a Assembleia da República. Mas não, o PS insiste em não despenalizar a IVG e reincide na proposta de referendo. Ou seja, abdica do fundamental em nome do acessório. Para o PS, a preocupação maior não é resolver o problema da criminalização que incide sobre as mulheres que abortem. Para o PS a preocupação maior é andar enredado em sucessivas propostas de referendo, mesmo sabendo que a decisão última nunca será sua.

O que o PS hoje nos propõe, tem 3 saídas possíveis: A primeira, é não haver referendo, se o Tribunal Constitucional objectar à sua constitucionalidade ou se o Presidente da República decidir de novo não o convocar. A segunda é haver um referendo durante a pré-campanha para as eleições presidenciais, o que é um contra-senso democrático, susceptível de inquinar ambos os debates, fazendo girar o debate das presidenciais em torno do aborto e o debate sobre o aborto em função das candidaturas presidenciais. A terceira, é o Presidente da República convocar um referendo, remetendo a sua realização para um momento em que o Presidente da República já seja outro, o que sendo agora legalmente possível, não deixa de ser uma projecção discutível do exercício de funções para além do mandato presidencial.

Ou seja: O que temos hoje entre mãos, é optar entre uma solução má, uma solução péssima, ou deixar tudo na mesma. O PCP não se conforma com nenhuma delas.

Esta proposta de referendo é mais um subterfúgio do PS para não ter de decidir aquilo que deve ser decidido. Sempre que de hoje em diante alguma mulher for levada ao banco dos réus, acusada do crime de aborto, é bom que se saiba que esse julgamento já não é só da responsabilidade dos Partidos de direita que insistem na criminalização, é também daqueles que, sendo favoráveis à despenalização, preferem referendar em vez de despenalizar.

Disse.