Declaração Política sobre a sobre a recusa do PR de convocar o referendo
Intervenção de Bernardino Soares
4 de Maio de 2005

 


Senhor Presidente,
Senhores Deputados,


Infelizmente confirmaram-se as nossas previsões em relação ao imbróglio a que a opção pela via referendária, escolhida pelo PS e pelo Bloco de Esquerda no passado dia 20, conduziria a questão da despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

No final daquele debate afirmámos que afinal quem tinha vencido era mais uma vez a direita e as suas posições. O resultado está à vista.

A situação criada pela recusa do Presidente da República em convocar o referendo então proposto é bem demonstrativa do desastre em que esta opção se tornou.

A direita rejubila com a situação e mantém a hipócrita e repugnante defesa da situação actual. Nalguns casos vai falando, com o desplante de quem não se importa que as mulheres sejam perseguidas e julgadas, na similitude da lei portuguesa e espanhola, como se não houvesse pelo menos uma diferença fundamental: é que em Espanha nenhuma mulher é tratada como criminosa, nenhuma mulher se senta no banco dos réus por ter tido que recorrer à interrupção voluntária da gravidez e em Portugal isso continua a acontecer porque a aplicação prática da lei a isso conduz.

Há até quem, como o PSD (e mesmo em minoria), consiga impor a realização primeira de um referendo sobre a Europa, que pode ser realizado em todo o ano de 2006, antes de qualquer abordagem da questão do aborto.

À direita nada de novo; tudo velho, tudo na mesma.

Mas muitas portuguesas e portugueses olham hoje estupefactos para esta situação, não por causa da posição dos partidos que contrariam a despenalização do aborto, mas por causa da posição daqueles que a defendem. É hoje cada vez mais incompreensível, mesmo para muitos que admitiram a opção do referendo, que se continue a desperdiçar a capacidade de a Assembleia da República, com toda a legitimidade jurídica e política que efectivamente tem, decida sobre a matéria.

Na realidade a monumental trapalhada em que esta questão está envolvida não tem fim à vista e confirma que, tal como dissemos em 20 de Abril, não despenalizar na Assembleia da República foi trocar o certo pelo incerto.
Os anúncios de que pelo menos o Partido Socialista pretende reincidir no mesmo caminho deixa-nos estupefactos. As justificações ainda mais.

Anuncia o Partido Socialista que quer voltar a apresentar o mesmo referendo, apesar da limitação constitucional que impede que isso aconteça na mesma sessão legislativa, baseando-se na mais do que frágil interpretação de que em Setembro próximo iniciaremos outra sessão legislativa.

Outros vão avançando com a ideia da tripla consulta: eleições autárquicas, referendo europeu e referendo sobre a despenalização do aborto, o que seria a confusão total. É uma proposta que só pode compreender-se pelo desespero de quem vê que conduziu o processo a um beco sem saída.

Outros ainda levantam a possibilidade de ser o Governo a apresentar a proposta de referendo esquecendo que o Governo só pode propor referendos em questões da sua competência e que a matéria criminal integra a reserva de competência da Assembleia da República.

Entretanto alguns, como o Bloco de Esquerda no seu projecto de revisão constitucional, avançam com a alteração dos prazos do referendo, matéria que em abstracto merece certamente discussão, mas que no concreto significa reabrir a porta de um eventual referendo após as autárquicas tão incerto na sua concretização como o que acabou de claudicar e que seria viável se houver alteração da Constituição, se houver acordo do PSD, se o Presidente da República o convocar. Se, se, se…

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A 20 de Abril não havia já nenhuma razão para que a Assembleia da República não assumisse plenamente as suas competências nesta matéria. Agora muito menos.

É preciso pôr fim às hesitações, aos taticismos, às sucessivas querelas que abrem o campo à direita e perpetuam esta lei. Enquanto hesitam e cedem à agenda da direita, os partidos que defendem a despenalização adiam esta tão urgente reforma.

E com isso se mantém a lei da humilhação, da perseguição das mulheres, dos julgamentos e eventuais condenações. Com isso se mantém o drama do aborto clandestino para mais de 20 mil mulheres portuguesas. Cada dia que passa muitas dezenas de mulheres são empurradas para esta clandestinidade e indignidade e arriscam a saúde e a vida.

É pois tempo de dizer basta. Já chega desta vergonha!

Por isso nos dirigimos hoje em particular aos Srs. Deputados do Partido Socialista. Não já para discutir o percurso passado, mas o futuro.

Há momentos da vida política em que é preciso um assomo de coragem e determinação para enfrentar as questões difíceis. É isso que se exige neste momento do Partido Socialista. Que não se deixe mais enredar nas teias que de incidente em incidente vão adiando a tão indispensável como justa despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Por isso, inviabilizado o referendo proposto pelo PS e pelo Bloco de Esquerda, fazemos um desafio: que se conclua o processo legislativo iniciado com a aprovação na generalidade do projecto de lei do Partido Socialista, com vista à aprovação de uma lei justa para as mulheres, tolerante com todas as convicções e que contribua para resolver o grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino.

Para além da retrógrada direita que contestará tudo o que for no sentido de uma lei penal justa nesta matéria, ninguém virá cobrar ao Partido Socialista o compromisso de repetir a proposta de um referendo que já tentou fazer mas que acabou por não ter vencimento.

O que os portugueses cobrarão ao Partido Socialista é o compromisso com a despenalização. O PS precisa de clarificar que o seu compromisso não é meramente o de convocar um referendo, mas o despenalizar a interrupção voluntária da gravidez. O que ninguém compreenderá é que o PS troque mais uma vez aquilo que está na sua mão – a despenalização na Assembleia da República – por aquilo que não depende de si – a convocação de um referendo.

É este sobressalto democrático que se exige agora ao Partido Socialista e a todos os homens e mulheres empenhados, que consideram que o país não pode mais ter a lei que faz das mulheres criminosas.

Daqui a pouco menos de dois meses terão passado sete anos sobre o referendo à despenalização do aborto. É o tempo mais do que justo para que a questão seja definitivamente resolvida.

O tempo é agora! Despenalização já!

Disse.