Interpelação ao Governo sobre direitos reprodutivos das mulheres, não cumprimento de Resoluções da Assembleia da República e violação do Direito Comunitário no caso do Navio Bordiep
Intervenção de Odete Santos
17 de Setembro de 2004

 

 

Senhor Presidente

Senhores Deputados

 

O PCP reapresentou no início desta sessão legislativa o seu Projecto de Lei sobre interrupção voluntária da gravidez.

Desde que, em 1982, trouxemos para o Plenário da Assembleia da República as nossas três iniciativas legislativas sobre a protecção da maternidade, sobre a educação e planeamento familiar e sobre a IVG, o debate sobre estas matérias não deixou de se aprofundar na sociedade.

Bem cedo se tornou evidente que tínhamos razão quando em declaração de voto afirmámos que a lei em 84 conseguida não era ainda a resposta aos graves problemas sociais das mulheres portuguesas. O aborto continuaria a ser, como de facto é, um grave problema de saúde pública. E é assim que as instâncias internacionais tratam o aborto clandestino.

Fruto de um vezo anti-feminino, o espírito de barbárie que anima verdadeiras cruzadas contra as mulheres, continua a exigir do Estado que seja fautor de violência contra as mulheres, e que as castigue para que, no dizer do actual Ministro das Finanças, expiem as suas dificuldades morais na aceitação da lei. Expondo-as a público opróbrio para que sejam estigmatizadas.

Um problema de saúde pública não se trata com perseguições penais. A lei penal, bem pelo contrário, é ela mesma o suporte desse problema.

E porque é preciso acabar com a barbárie, O PCP fez regressar ao debate na Assembleia, a necessidade de despenalizar a interrupção voluntária da gravidez. Este percurso foi entretanto colhido por proposta referendária, que até muito recentemente subalternizou a legitimidade da Assembleia para resolver o grave problema de saúde pública.

Hoje está muito claro, mesmo para pessoas que em desespero de causa, aderiram à tese referendária, que o PCP tinha razão. Que direitos fundamentais das mulheres não se referendam.

Que não se referendam direitos humanos básicos das mulheres.

Que na área da sexualidade se chamam direitos sexuais e reprodutivos, mas que, como consta do Relatório apresentado em 1999 pelo Comité de Peritos do Conselho da Europa, mais não são do que a tradução, nessa área

 

Do direito à vida

Do direito à privacidade e à vida familiar, sem intervenção do Estado

Do direito à saúde e aos cuidados de saúde

Do direito à informação, opinião e do direito à liberdade de expressão

Do direito aos benefícios do progresso científico, estabelecido no artigo 27º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

 

Estes direitos não são de facto referendáveis.

 

Temos assistido, desde o referendo a uma escalada repressiva contra as mulheres. Sucedem-se os julgamentos e declarações hipócritas dos movimentos anti-femininos. Mas elas continuam a ser investigadas, a ver exposta a sua intimidade na praça pública, continuam a ser vítimas da política criminal deste governo que teima em manter a sua criminalização. Apoiado naqueles movimentos a quem distribui generosas verbas do orçamento da segurança social que sempre dão jeito para autênticas cruzadas contra as mulheres.

Este termo cruzada deve povoar amiudadamente os sonhos do senhor Ministro da Defesa.

Qual cavaleiro andante e errante em busca de indulgências, vê chegado o dia de combate aos infiéis, e decide-se a jogar à batalha naval lançando corvetas contra uma casca de noz.

Mais do que o barco, o que ele quis foi sitiar as mulheres portuguesas. Apontá-las como incapazes de tomar decisões responsáveis, necessitando por isso de tutela do Ministro da Defesa.

O Despacho faz pasmar quanto aos seus fundamentos.O Barco punha em causa a saúde pública.- disseram.

Mas o problema de saúde pública existe é dentro do país. As urgências dos hospitais falam- nos do drama de mulheres, de adolescentes, vítimas das proibições quanto à educação sexual, vítimas também das dificuldades de acesso ao planeamento familiar.

Ficou a perceber-se pelas explicações do Secretário de Estado dos Assuntos do Mar, que o problema de saúde pública resultaria do uso da RU 486, comercializada em quase todos os países da União Europeia.

Sejamos sérios. O fármaco, comercializado na Europa com o nome de Mifégyne, distribuído pelos laboratórios Exelgyne, foi aprovado pela Agência Europeia de avaliação dos medicamentos de Uso humano. Não pode ser verdade que a União Europeia tenha uma Agência que aposta em criar problemas de saúde pública nos Estados Membros.

E não é verdade, senhor Secretário de Estado, que a pílula esteja proibida em Portugal. Tanta demagogia e tanto desconhecimento! Não foi ainda solicitada a sua comercialização em Portugal. Mas pode sê-lo até ao abrigo do processo de reconhecimento mútuo. E sê-lo-á. Porque como se diz no Relatório do Comité de peritos do Conselho da Europa

O Direito aos benefícios do Progresso Científico constante do artigo 27º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, quer dizer que todas as pessoas têm direito aos benefícios das tecnologias disponíveis para os cuidados com a saúde reprodutiva, incluindo as respeitantes à infertilidade, planeamento familiar.

No ano em que internacionalmente se avalia a realização dos compromissos assumidos pelos países em 1994 no Cairo, recordaremos ao Governo e à maioria parlamentar que o direito à saúde reprodutiva é um direito humano básico que compreende, como o reafirmou o Comité do Conselho da Europa, o direito à informação, opinião e o direito à liberdade de expressão, que significam o direito de acesso a informações relevantes quanto à sua saúde reprodutiva e informação suficiente para garantir a liberdade de uma opção informada.

A decisão do Governo através do Ministro da Defesa é uma clara violação destes direitos.

A proibição do debate começou a abrir caminho, em nome da obediência cega.

E o que acabou por ser impedido foi, no fundo, o debate sobre as condições que as mulheres e os homens portugueses encontram para o exercício do direito à maternidade e á paternidade consciente.

Porque é a falta dessas condições que determina dramáticas opções sobre o termo de uma gravidez.

Nem de propósito, este foi o mês da revelação das cifras negras para Portugal. Com o desemprego que ainda não parou de aumentar, os salários degradados, surgimos com o maior índice de pobreza persistente, na Europa dos 15. Com a 2ª taxa de gravidez adolescente nessa mesma Europa. Com a maior taxa de abandono escolar. – 45%. Portugal é líder na Europa. Com o aumento de crianças abandonadas segundo revela a Presidente da Comissão Nacional de Protecção das crianças., por falta de condições das famílias.

O Governo quis fugir a este debate.

E não respeita compromissos internacionais. Não respeita as Plataformas de acção do Cairo e de Beijing. Não respeita a deliberação do Parlamento europeu que apelou ao fim da perseguição penal das mulheres.

Não respeita a deliberação do Comité das Nações Unidas para a eliminação da violência contra as mulheres que instou Portugal a alterar a restritiva lei do aborto.

Trata as mulheres com especial desumanidade.

Nesta cruzada serôdia, a funda de David arremessa-lhe o direito das mulheres à dignidade.

Porque as mulheres são seres humanos!

 

Disse.