Declaração política na Comissão Permanente da Assembleia da República
Intervenção de Bernardino Soares
2 de Setembro de 2004

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,


A decisão do Governo de impedir a entrada em Portugal do Borndiep é absurda, arrogante e inaceitável.

Ela traduz a obstinada intolerância que a maioria de direita, comandada pelo zeloso Ministro Paulo Portas, usa nesta matéria. Mas foi esta maioria que em 3 de Março, no debate agendado pelo PCP, e depois de mais uma vez ter anunciado falsas aberturas para a alteração da lei e hipócritas comiserações com as mulheres levadas a julgamento, chumbou todas as propostas de alteração da iníqua lei que entre nós continua a reger a interrupção voluntária da gravidez.

As portuguesas e os portugueses já perceberam que sempre que o assunto se torna mais visível a direita que quer manter a lei que trata as mulheres como criminosas e determina a sua prisão, aparece com um discurso aparentemente tolerante para logo desmentir na prática aquilo que insinua no discurso. O mesmo acontecerá provavelmente com as declarações de ontem do Primeiro-ministro. Elas serão mais um episódio de uma anunciada abertura que depois não se concretizará e que acabará por manter uma clara opção pela continuada perseguição judicial das mulheres que tenham de recorrer ao aborto, cujas consequências políticas o Primeiro-ministro e a maioria pretendem atenuar.

Não tardará aliás que voltem os compromissos com a necessidade de promover a educação sexual e o planeamento familiar, logo esquecidos na primeira oportunidade.

Como aliás aconteceu com a resolução aprovada pela direita nesta Assembleia no dia em que rejeitou a alteração da lei.

A disparatada intervenção militar imposta pelo Governo face ao navio da organização “Women on Waves” não tem fundamento legal nem político. Os argumentos são inacreditáveis.

O Secretário de Estado dos Assuntos do Mar justificou a presença de uma embarcação de guerra junto do Borndiep dizendo que “por acaso estava naquela área”, afirma que a organização que envia o navio em causa visava “promover a prática do aborto” em debates, reuniões e através da comunicação social, e admite ponderar a proibição de anúncios de clínicas espanholas em jornais portugueses.

Para este governante, debater a questão da interrupção voluntária da gravidez e defender a sua despenalização significa promover a prática do aborto, como se as mulheres que decidem recorrer a este último recurso, em difícil e violenta decisão, o fizessem estimuladas por qualquer debate ou campanha e não por sua íntima convicção.

Entretanto o Governo tentou invocar o facto de a pílula RU486 não estar licenciada em Portugal. Mas isso não significa que ela seja um medicamento clandestino. Ela foi aprovada pela Agência Europeia do Medicamento, é utilizada na maioria dos países da União Europeia por ser um método seguro de interrupção da gravidez.

Invocou ainda argumentos de saúde pública. Mas como bem lembrou a Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, tratou-se de um argumento de “propaganda” porque a situação nem de perto nem de longe corresponde àquilo que tecnicamente é o risco para a saúde pública, nem tem o Ministério da defesa e dos assuntos do mar qualquer competência nessa matéria.

Ao contrário, o que é um verdadeiro problema de saúde pública é a continuação do aborto clandestino para que a actual lei empurra as mulheres que não podem deslocar-se ao estrangeiro. O que é um verdadeiro problema de saúde pública são os milhares de mulheres que acabam por recorrer às urgências hospitalares por complicações pós-abortivas. O que é também um verdadeiro problema de saúde pública é a taxa de gravidezes indesejadas que continuamos a ter.

Esta decisão e atitude do Governo e da maioria de direita que aqui por ele responde, é sobretudo um grave atentado à liberdade de expressão e de informação, que o executivo continua a negar a esta iniciativa. O Governo sabe que o objectivo fundamental desta iniciativa era o alerta sobre a situação medieval a que continuam a estar sujeitas as mulheres portuguesas. É isso que o governo quer impedir. Mas não consegue, porque é insuportável a situação em que a lei coloca as mulheres portuguesas perante a hipocrisia dos que a defendem e nada nem ninguém pode esconder isso dos olhos dos cidadãos portugueses e agora também de muitos outros na Europa e no mundo.

Pela nossa parte continuaremos a intervir na exigência da alteração desta lei, indispensável para a dignidade das mulheres portuguesas e para resolver o grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino.


Disse.