Debate na AR sobre a despenalização da ivg em Portugal
Intervenção de Odete Santos na Assembleia da República
3 de Março de 2004

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados

As minhas primeiras palavras, em nome do Grupo Parlamentar do PCP, que hoje trouxe a plenário o debate sobre a legalização da IVG, são palavras de solidariedade dirigidas àquelas mulheres que já foram ou vão ser objecto de inquisição por parte de agentes policiais, para que revelem se interromperam a gravidez, e aonde e por que meios.

Dirigem-se, estas palavras solidárias, às mulheres que um dia descobriram que estavam grávidas, e tiveram de subir clandestinamente a escada de uma clínica, de um consultório de uma parteira, de uma casa num esconso vão de escada, para resolver a angústia de uma gravidez indesejada.

Dirigem-se às adolescentes deste país, a quem tem sido negado o direito à educação sexual.

Dirigem-se a todas as mulheres, a quem não tem sido garantido o direito à maternidade consciente, e que vêem negado o mais elementar direito à dignidade, através de uma lei que, autoritariamente, elege as convicções de alguns para as impor a todos.

Podem contar connosco.

Terminada que foi a contagem dos votos no referendo, os mentores do “não” respiraram de alívio e foram fazendo protestos da necessidade de investimento na educação sexual e no planeamento familiar.

Viu-se!

A história da luta pela despenalização é uma história de hipocrisias, de faz-de-conta, de falsas compaixões.

Finge-se que não se sabe que a lei não é cumprida.

Apesar de tudo, a sociedade não considera que a mulher comete um crime.

Faz-se de conta que não se sabe dos graves problemas de saúde resultantes do aborto clandestino.

Finge-se que se desconhece que há mulheres que morrem, e que muitas ficam permanentemente afectadas na sua saúde sexual e reprodutiva. Muitas nunca mais podem ter filhos.

Junte-se a esta hipocrisia as palavras tartamudeadas por quem se opõe à despenalização, sempre que há um julgamento por aborto provocado. Que não, que não querem que as mulheres vão para a cadeia.

Digam então para que querem a lei.

Para ganhar indulgências?

Sempre que sobe a Plenário uma iniciativa visando a despenalização- e isto acontece desde 1982-fala-se muito de educação sexual e de planeamento familiar

Com um olhar oblíquo. De quem sabe que não vai cumprir. De quem sabe que, mesmo se cumprisse, não resolveria o problema do aborto clandestino.

A direita sempre votou contra todas as iniciativas legislativas apresentadas pelo PCP e por outros Partidos sobre educação sexual e planeamento familiar.

O PSD esteve no Governo durante largos anos. Mostrem o certificado de garantia com que pretendem assegurar que agora sim, agora é que se vai cumprir a legislação contra a qual votaram o PSD e o CDS-PP.

Com fiadores como os que têm lá para as bandas do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho, a Garantia vem com carimbo falso.

Mais uma vez se verá que pela parte da direita, tudo isto para ela não passa de mais outro faz-de- conta.

Só para as mulheres é que não se trata de um fingimento.

A Lei está aí e foi utilizada na Maia, em Aveiro. Correm notícias de que alguns outros processos estão pendentes.

As mulheres são vítimas de perseguição penal, vêem a sua intimidade exposta na praça pública. As mulheres são humilhadas depois de terem sido ofendidas com a provação do aborto inseguro. Depois de lhes ter sido negado o direito à maternidade consciente por políticas anti-sociais que feminizam a pobreza.

As mulheres são condenadas a graves consequências na sua saúde física e psíquica. Por vezes perdem a vida.

É este quadro que se deve analisar.

E é perante este quadro que se coloca aos Deputados a questão de saber se querem manter uma lei que determina tão graves consequências e não protege o embrião nem o feto, ou se querem pôr fim ao flagelo do aborto clandestino.

Na resposta não entra o foro íntimo de cada um, relativamente ao aborto.

Têm é de dizer se entendem que têm o direito de impor as suas próprias convicções, filosóficas, religiosas e morais a toda a sociedade, originando com tal imposição um grave problema de saúde pública.

Acham que o Estado tem o direito de utilizar a lei penal para definir uma moralidade tipo à qual todos os cidadãos e cidadãs se têm de submeter?

Nós, o que queremos é uma lei que garanta a todas a liberdade de opção.

A lei que queremos não obriga ninguém a interromper a gravidez. A Lei que a direita defende obriga a sociedade toda, a adoptar sob a ameaça da mais temível arma do Estado, as concepções de alguns. Fazendo tábua rasa do direito das mulheres a decidir em liberdade.

Senhor Presidente
Senhores Deputados

Todos sabemos porque estamos hoje a reeditar um debate ocorrido há seis anos. Nessa altura tudo podia ter sido resolvido. Muito sofrimento se teria evitado não fora o triste episódio que deu origem à interrupção do processo legislativo.

Com outro parceiro, edita agora o PSD mais uma manobra para adiar a resolução do problema. Com argumentação que não faz vencimento em toda a sua bancada.

Porque a defesa da legalização/ despenalização da IVG no 1º trimestre de gravidez, é tão justa, que colhe a aprovação para além da esquerda.

Se há um problema de saúde pública causado pela lei penal; se esta lei não defende o embrião nem o feto, pois os abortos fazem-se aos milhares; se, consequentemente, a lei penal produz maiores males do que aqueles que diz querer evitar, então é porque a lei não cumpre os seus fins.

Trata-se de uma lei simbólica (simbólica de um certo pensamento único) que não desempenha qualquer papel na prevenção.

É uma lei que excede os limites que a Constituição impõe às leis restritivas da liberdade.

Uma lei com a qual o Estado se torna fautor de violência contra as mulheres. Que se vêem forçadas a recorrer à interrupção da gravidez, independentemente da classe social, convicção religiosa e política.

E só há uma solução. Legalizar a interrupção da gravidez quando efectuada no 1º trimestre, por decisão da mulher.

Não há outras alternativas, que são falsas alternativas, porque mantêm a clandestinidade e a insegurança do aborto e não resolvem o problema de saúde pública.

Não são alternativas, pois continuam a pressupor a culpa das mulheres soluções adiantadas das bandas do CDS que chegou a admitir a aplicação às mulheres da pena de trabalho a favor da comunidade. O que constituiria uma espécie de lapidação em praça pública das mulheres que abortassem.

Basta de penas infamantes.

Aliás, certo argumentário dos que se opõem à legalização/ despenalização, parte do pressuposto de que as mulheres não são capazes de decidir responsavelmente. Não têm capacidade nem podem, por isso, ter autonomia, nem ter direito à liberdade de opção.

Afirma-se, com despudor, que onde se despenaliza a IVG, aumenta continuamente o número de abortos. O que é manipulação de estatísticas.

Na base de tal posicionamento está um forte preconceito anti-feminino que outrora animou a tríade Deus Pátria e Família.

Porque abortar é um verbo que se conjuga no feminino, reeditam-se argumentos fundados num forte preconceito contra as mulheres...

Porque entendem que as mulheres abortam por razões fúteis.

Porque continuam a entender, ainda no século XXI, que a mulher não sabe usar da sua autonomia, que não sabe tomar decisões responsáveis.

E contudo, já Descartes reconhecia à mulher a racionalidade do ser humano.

Podem classificar-se de fúteis as mulheres que abortam porque (como diz a OMS) são muito novas ou muito pobres para criar uma criança; porque entraram em conflito com os seus companheiros, porque são vítimas de violência, porque estão desempregadas, porque não desejam um filho enquanto não acabarem o curso, porque têm de estar inteiramente disponíveis para o trabalho e têm de trabalhar para a subsistência da família; porque não lhes é garantido um adequado acesso aos serviços de planeamento familiar, porque são insuficientes estes serviços, porque os métodos contraceptivos falharam; porque têm de ver renovado o seu contrato a prazo; porque estão maioritariamente representadas na alta taxa de pobreza de que são vítimas os trabalhadores portugueses?

Estas não são razões frívolas.

As cifras negras do aborto inseguro, tanto a nível internacional como nacional, desmentem a afirmação da frivolidade das mulheres.

E não podem ser minimizadas, como alguns pretendem. Alguns que até questionam tratar-se de um problema de saúde pública.

Mas é-o em toda a parte do mundo.

Como o reconhece a OMS. E afinal, também como diz esta Organização, o aborto inseguro é uma das causas de morbilidade e de mortalidade maternas mais fáceis de evitar e de tratar.

Porque existindo uma relação inequívoca de causa e efeito, entre as leis proibitivas da IVG e aquelas consequências, a solução é legalizar, única forma de tornar o aborto seguro.

Assim se respeitando a dignidade e os direitos humanos da Mulher.

O direito à maternidade consciente, logo, direito a uma gravidez desejada e planeada.

O Direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade. O direito à liberdade de decisão. O direito à vida e à liberdade. O direito à segurança. O direito à dignidade. Não é Portugal um Estado de Direito Democrático fundado na dignidade da pessoa humana? O direito à intimidade da vida privada, também superlativado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O Direito à saúde. Direitos que, referidos à sexualidade, são os que integram os direitos sexuais e reprodutivos.

Chegados aqui, não haverá quem deixe de dizer que só falamos das mulheres.

E que não falamos do embrião e do feto.

A vida humana é um contínuo. E nisto todos estão de acordo. Trata-se de vida de espécie humana.

Mas quando começa a vida de pessoa humana, nisso existem os mais diversos cambiantes, a partir dos fundamentalismos dos que entendem que existe pessoa humana logo a partir da concepção.

É preciso afirmar, claramente, que não é verdade o que alguns proclamam: Que está provado, pela ciência, que a pessoa humana começa logo na concepção.

Nós não temos que tomar partido nesta querela. Temos tão só de constatar que há várias convicções.

Dezasseis cientistas italianos, católicos, tomaram pública posição no Corriere della Sera dizendo:

“Afirmar que o produto da concepção já é um indivíduo representa a perfilhação de um determinismo biológico que não é sustentado pelos conhecimentos científicos disponíveis.”

Ora, constatadas as diversas opiniões sobre o início da pessoa humana, não pode, um Estado de Direito, tomar parte na querela, impondo a toda a população, as concepções filosóficas e religiosas de alguns. Isso é característico de um Estado autoritário.

É tão simples quanto isso.

Senhor Presidente
Senhores Deputados:

Uma medida como a que propomos, beneficiará, sobretudo, aquelas mulheres que não podem recorrer à segurança, ainda que relativa, de uma clínica. Aquelas que não podem viajar para o estrangeiro.

Aquelas que são as que mais sofrem na pele as consequências do obscurantismo que quer impedir a forma de superar o sofrimento humano.

Perguntem a Nancy Reagan, onde estão os fundamentalismos republicanos a respeito do embrião, agora que por razões óbvias, defende a investigação científica com células estaminais embrionárias.

Perguntem-se por que há-de Prometeu ficar agrilhoado para sempre.

Ou por que há-de Eva continuar a ser punida apenas porque através dela se explica o começo da vida.

Disse.