Sessão Solene que Assinala a Transferência de Soberania do Território de Macau
Intervenção do deputado João Amaral
14 de Dezembro de 1999

 

Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro Ministro e Senhores Membros do Governo,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhores Convidados,
Senhor Deputado Representante da Assembleia Legislativa de Macau,
Senhoras Deputadas e Senhores Deputados:

A Declaração Conjunta, da República Portuguesa e da República Popular da China, assinada em Março de 1987 e aprovada para ratificação por esta Assembleia da República, por unanimidade, em 11 de Dezembro de 1987, começa por recordar “com satisfação” o desenvolvimento de relações amistosas entre Portugal e a China, para, a partir desse pressuposto, considerar a necessidade de uma solução apropriada para a questão de Macau, legada pelo passado, como propícia ao desenvolvimento económico e estabilidade social de Macau e a um maior fortalecimento das relações de amizade e de cooperação entre os dois países.
Essa solução apropriada, aprovada por Portugal e pela China, e só possível pela ocorrência do 25 de Abril e a emergência da democracia portuguesa, consiste na assumpção pela China do exercício da sua soberania sobre Macau a partir do próximo dia 20 de Dezembro de 1999, e pelo estabelecimento, a partir dessa data e pelo período de 50 anos, da Região Administrativa Especial de Macau, com alto grau de autonomia, incluindo o de julgamento em última instância, com órgãos próprios de governo integrados por habitantes locais, com a permanência do actual sistema social e económico e respectiva maneira de viver dentro da aplicação do princípio “um país, dois sistemas”, e com a garantia de um elenco detalhado de direitos, liberdades e garantias, isto é, de direitos humanos.

As referências a Portugal e protecção dos seus interesses estão em vários pontos da Declaração Conjunta. Desde logo, a concepção global da solução é ela própria já o reconhecimento da especificidade de Macau nos planos histórico e cultural e a afirmação de um valor estratégico próprio e diferenciado. Mas as referências a Portugal e aos portugueses são concretas: quanto ao exercício de funções públicas, quanto à concessão do Estatuto de residente permanente e concessão do respectivo bilhete de identidade e documento de viagem, quanto ao uso do português como língua oficial, quanto à subsistência da maior parte dos normativos jurídicos vigentes, quanto à protecção do património cultural, quanto às relações económicas e protecção de interesses económicos. Especificamente, a Declaração Conjunta assinala que “os interesses dos habitantes de ascendência portuguesa em Macau serão protegidos em conformidade com a lei”.

A partir da assinatura da Declaração Conjunta, abriu-se um período de transição de pouco mais de 12 anos, os últimos doze anos de uma presença portuguesa de perto de 450 anos. A opção das partes, Portugal e China, foi a de trabalhar para que 20 de Dezembro de 1999 fosse um dia de sucesso para Macau e para os dois países. Um dia de paz e de cooperação. Um dia que se inserisse no desenvolvimento económico e social de Macau e da sua população.

A responsabilidade específica da administração do território coube a Portugal durante esse período de transição, que ficou com a incumbência de promover o desenvolvimento económico e de preservar a estabilidade social de Macau.

A Assembleia da República teve um papel activo neste período, consagrando, sempre por unanimidade, as alterações necessárias ao Estatuto Orgânico de Macau, instituindo por unanimidade os princípios da sua organização judiciária própria, e aprovando também por unanimidade a adequada aplicação dos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos, e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

Esta unanimidade da Assembleia da República, juntamente com as posições dos Governos e dos Presidentes da República, estabeleceram as opções feitas em relação a Macau como opções de consensos nacional: a opção pela autonomia orgânica e funcional, pela localização, pelo desenvolvimento de infraestruturas que faltavam, pelo levantamento de uma arquitectura jurídica e judicial então incipiente, pela promoção da língua portuguesa, o então em baixíssimo grau de presença, pela preservação do património macaense, quer chinês, quer de origem portuguesa. Muitas destas linhas estavam já apontadas no Estatuto Orgânico de Macau aprovado em 1976, como opções decorrentes da concepção, com assento na Constituição da República Portuguesa, de que Macau era território chinês, administrado por Portugal, mas que, mais tarde ou mais cedo, a China assumiria a sua soberania.

Nestes anos, mas muito particularmente nestes últimos doze anos, foi possível fazer muita coisa. Mas há uma coisa que não é possível: recuperar o tempo perdido. Podem fazer-se belos discursos sobre esse conceito, mas não passam de retórica. O tempo perdido, tempo perdido foi.

Portugal soube, desde sempre, qual era o estatuto de Macau. Logo nos primórdios da presença portuguesa, a cidade de Macau é descrita, cerca de 1582, no “Livro das cidades e fortalezas que a Coroa de Portugal tem no Estado da Índia”, como estando em terra do rei da China. E em 1637, uma carta do Senado de Macau esclarece: “não estamos aqui em terra nossa, conquistada por nós, como são as mais fortalezas da Índia onde somos senhores... senão na terra do Rei da China, onde não temos um palmo de chão, mais que o sítio desta cidade, a qual, posto que é do nosso Rei, o dito sítio é do Rei dos Chineses”.

Não se pode confundir a situação singular de Macau no relacionamento entre o Ocidente e a China e na imensa história da aventura portuguesa no Oriente com a questão de Macau como parte incontestada da China. Nem se pode confundir esta questão com o que é a exclusiva responsabilidade portuguesa de valorizar e dar força ao seu legado histórico, cultural, social, humano, económico e patrimonial. O que vai ocorrer no dia 20 de Dezembro próximo não apaga a história, não é feito para a apagar e aí está a Declaração Conjunta a demonstrá-lo. E a força da permanência dos sinais do ser português mede-se, não pelas palavras que a Declaração contém mas não pode corporizar, mede-se sim pelas realizações e pela profundidade das raízes.
Mas o tempo que vivemos não é o dos lamentos sobre o que não foi feito. É o tempo de encarar com esperança o futuro.

Olhamos para o passado sem saudadas do Império. Deixamos esse encargo a outros. Os Impérios são o domínio de povos por outros povos. Todos os Impérios se fazem em nome do Bem e do Progresso, todos deixam atrás de si um terrível lastro.

Macau não foi a característica colónia do Império, foi o porto do encontro. Serviu a China como porta para as relações externas. Serviu os portugueses como plataforma para o comércio do Extremo Oriente até ao Japão. Portugueses aventureiros, a milhares de quilómetros da Pátria, traçando uma das mais ambiciosas aventuras humanas. Macau veio até hoje, empobrecida quando a voracidade do Império Britânico ganhou a mais vergonhosa das guerras, a guerra do Ópio, e se apropriou, pela força de um Tratado imposto, de Hong Kong. É justo que aqui se destinga Portugal. No seu começo, no século XVI, Macau não nasceu na ponta da baioneta. Nasceu na vertigem do comércio, e o comércio é uma das maiores realizações humanas. Cresceu no conhecimento, nas transferências de produtos e de tecnologias. Viveu o século XX como porto de abrigo. Foi assim porto de comércio, porto do encontro de culturas, porto de transferências, porto de abrigo. O sítio chinês da história de Portugal. O porto português da história da China.

Sombras neste passado ? Claro que as houve e algumas bem graves. Faltou a coragem de assumir os erros no tempo devido. Isso tem um preço que acaba sempre por ser cobrado.

Mas, repito-o, não é o passado, e sim o presente e o futuro que nos junta hoje aqui. Como está a gruta mítica de Camões, na terra de poetas como Camilo Pessanha, que é Macau?

Macau está nobilitada, com um enorme surto de obras públicas, limpa, com lindos jardins. Está tão valorizada a Igreja de Santo Agostinho como o Templo de A-MA. Novas vias foram abertas, vive a arquitectura marcante das pontes, o novo museu da cidade, o Centro Cultural ou a arte pública de artistas chineses e portugueses, entre estes, por exemplo, José Guimarães.

Participei na inauguração do novo edifício da Assembleia Legislativa de Macau, que até há pouco tempo funcionou nas instalações do Governador. A Presidente Anabela Richtie e o Governador Rocha Vieira sublinharam a qualidade e o significado do novo edifício como símbolo da separação de poderes. Avalizando o acto, estava o futuro chefe do Executivo da RAEM, dr. Edmund HO, e a futura Presidente da Assembleia Legislativa. Respirava-se confiança no futuro, apesar das dificuldades da crise económica asiática, que se sentem na zona, desde logo na vizinha Hong-Kong.

Esta confiança radica em factos concretos, na via negocial seguida (e que o PCP defende explicitamente desde o seu VI Congresso em 1965); na conhecida Declaração Conjunta; nos mecanismos jurídicos; económicos e sociais instituídos; nas personalidades que estão indigitadas; na vontade de cooperação de todas as partes. Claro que nada na vida está definitivamente conquistado e também não o estará esta aliança de confiança, mas Macau não pode hoje ser um palco para a especulação boateira ou para o pessimismo descrente. Pelo contrário, Macau é o palco de um enorme esforço dos macaenses seus residentes, sejam portugueses, sejam chineses, sejam macaenses em sentido estrito, sejam de outros países, particularmente asiáticos.

Macau tem as vantagens competitivas do seu relacionamento com Portugal e o Ocidente, e do seu rico património humano e cultural, da experiência da sua população.

Lembra o Professor Luís Filipe Barreto, num escrito de 1995, que “a Sociedade e a Cultura Portuguesas manifestam uma grande falta de informação, uma ausência de conhecimento rigoroso” sobre Macau. E que por isso, e cito, “não admira que Macau seja reduzida a cidade do jogo” e da “árvore das patacas”. Nestas referências críticas do Professor Luís Filipe Barreto está o pior da leitura portuguesa de Macau.

Celebramos hoje aqui a outra leitura: a do encontro de culturas, a do progresso humano e do respeito pela soberania, a da consagração das especificidades e autonomia.

Não estamos a celebrar o fim de uma era. Para nós, PCP, estamos a assinalar solenemente a continuação de uma amizade de raízes fundas. Estendemos os braços para uma cooperação de progresso e desenvolvimento.

De Portugal,

Saudamos os que estão e assumiram responsabilidades.

Saudamos os que agora vão assumir responsabilidades.
Saudamos a República Popular da China, a Região Administrativa Especial de Macau, e toda a população residente de Macau, seja qual for a sua nacionalidade.

Desejamo-vos felicidades, e dizemos: Contem sempre connosco!

Disse.