Projecto de Lei n.º 164/VII, do PCP, que altera a Lei n.º 70/93, de 29 de Setembro, sobre direito de asilo
Intervenção do deputado António Filipe
8 de Outubro de 1997

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

Os últimos anos têm sido marcados por um profundo e lamentável retrocesso da legislação referente ao direito de asilo em vários países europeus. Da Convenção de Dublin, sobre a determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de asilo apresentado num estado membro das Comunidades Europeias, assinada em 15 de junho de 1990 e recentemente entrada em vigor; da Convenção de Aplicação dos Acordos de Schengen, assinada em 19 de Junho de 1990; do chamado terceiro pilar do Tratado da União Europeia; da evolução legislativa e da prática concertada dos vários Estados, tem resultado uma orientação determinada e sistemática no sentido de restringir de forma drástica as possibilidades de acesso ao estatuto de refugiado em países da União Europeia.

A Convenção de Dublin, ao estabelecer regras meramente processuais para a determinação do estado responsável pela análise de um pedido de asilo, recorrendo a conceitos formais como o de "país seguro" ou de "país terceiro de acolhimento", tem como resultado prático a negação a muitos requerentes de asilo do direito a ver os seus pedidos analisados. Faz com que muitos cidadãos vejam os seus pedidos de asilo recusados num país e não os possam apresentar em países que nos termos da lei respectiva lho poderiam reconhecer. Conduz inclusivamente a situações de repatriamento ou de envio de refugiados para outros países, sem cuidar de saber se esses cidadãos serão efectivamente acolhidos ou se ficará salvaguardada a sua segurança.

A Convenção de Aplicação dos Acordos de Schengen chega mesmo ao ponto de estabelecer sanções a aplicar às companhias aéreas que transportem cidadãos em situação irregular, quando se sabe que a fuga para o estrangeiro em situação irregular funciona tantas vezes como único recurso de quem procura fugir a perseguições.

A pretexto da segurança, da supressão das fronteiras internas, do combate ao crime organizado e da pressão migratória, uma "Europa" construída a partir destas bases ameaça tornar-se um espaço de desumanidade e xenofobia e onde começam a ser perigosamente postos em causa direitos e garantias dos cidadãos que são conquistas históricas do nosso património civilizacional e motivo de orgulho para todos os democratas.

Uma "Europa" construída sob os pilares de Maastricht, Schengen e Dublin, é uma fortaleza xenófoba, que procura esconjurar os seus flagelos sociais culpabilizando os estrangeiros e os sectores sociais mais fragilizados e espalhando perigosas sementes de racismo e intolerância.

Em matéria de direito de asilo, a evolução que desde o início da presente década se tem verificado, assume aspectos particularmente chocantes. Os requerentes de asilo, para além de serem perseguidos nos seus países de origem em consequência das suas actividades em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, passaram também a ser tratados com desconfiança nos países a que se dirigem procurando obter o estatuto de refugiados, como se fosse cada um deles um potencial criminoso.

A pretexto da necessidade de conter a imigração ilegal têm sido adoptados mecanismos legais e procedimentos práticos de denegação pura e simples, já não apenas do reconhecimento do direito de asilo, mas da própria apreciação do pedido, com preterição de direitos e garantias fundamentais dos requerentes. A pretexto do combate à imigração ilegal, passaram todos os requerentes de asilo a ser tratados como imigrantes clandestinos.

Perante esta evolução, várias organizações de carácter humanitário têm vindo a alertar para a gravidade da situação criada e para a necessidade de serem adoptadas garantias mínimas dos requerentes no procedimento relativo aos refugiados. A reflexão desenvolvida nos últimos anos por instituições como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Amnistia internacional e particularmente no plano nacional, o Conselho Português para os Refugiados ou a Obra Católica das Migrações, constituem valiosos instrumentos de trabalho para a necessária alteração da legislação vigente em matéria de direito de asilo e dos refugiados.

Em Portugal, a evolução legislativa acompanhou deploravelmente a tendência restritiva em voga nesta última década. A Lei n.º 70/93, de 29 de Setembro, presentemente ainda em vigor, introduziu um conjunto de disposições que carecem de urgente revisão, por serem manifestamente atentatórias dos direitos e garantias mais elementares dos requerentes de asilo e por serem desconformes com a dimensão de direito fundamental que a Constituição Portuguesa atribui ao direito de asilo.

A aprovação desta lei em 1993, foi um exemplo típico da diligência com que os Governos PSD alinharam na construção da fortaleza xenófoba europeia e representou um grave retrocesso na consagração do direito de asilo em Portugal.

Isso para além de a discussão aqui realizada em 1993 ter sido conturbada pelo clima de guerrilha institucional que o governo PSD instalou contra o Presidente da República de então e pelo terrorismo argumentativo a que esse Governo recorreu para camuflar perante a opinião pública a realidade dos seus propósitos.

O Projecto de Lei do PCP sobre Direito de Asilo que hoje se encontra em debate e que aqui apresentámos pela primeira vez no passado mês de Fevereiro, retoma as posições que o PCP defendeu quando exprimiu a sua oposição à aprovação das alterações legislativas introduzidas em 1993 e propõe a correcção dos aspectos mais negativos que marcam a legislação actualmente em vigor, em nove pontos fundamentais:

1º ponto: O PCP propõe a revogação das disposições referentes ao processo acelerado de decisão, que constitui porventura o aspecto mais grave da legislação vigente sobre Direito de Asilo.

Com esta forma de processo, foi conferido ao Ministro da Administração Interna o poder discricionário de, em apenas 4 dias, recusar qualquer pedido de asilo, com preterição de direitos elementares dos requerentes. Este processo tem uma instrução meramente policial, é decidido de forma exclusivamente administrativa e arbitrária e não confere possibilidades práticas de recurso.

Assim, se o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras entender que as alegações de um requerente são destituídas de fundamento; se o requerente for proveniente de país considerado "seguro" ou "terceiro de acolhimento"; ou se o SEF invocar motivos não especificados de "segurança pública"; é quanto basta para que o requerente de asilo seja expulso sem que o seu pedido seja concretamente analisado. Tal forma de processo é inconstitucional e deve consequentemente ser revogada.

2º ponto: O PCP propõe a eliminação das referências a "países terceiros de acolhimento" e "países seguros". A denegação automática do estatuto de refugiado que se opera pelo simples facto de um cidadão requerente ser originário de qualquer país considerado "seguro" ou "terceiro de acolhimento" inviabiliza a apreciação concreta do pedido de asilo e pode conduzir a um repatriamento que ponha em causa a segurança ou mesmo a vida do requerente. Acresce que a determinação por cada Estado dos países "seguros" ou "terceiros de acolhimento" releva de critérios de política externa muitas vezes estranhos a razões humanitárias.

3º ponto: O PCP propõe a reposição do regime de concessão de asilo por razões humanitárias.

A legislação portuguesa sobre Direito de Asilo aprovada em 1980 concedia este direito aos cidadãos impedidos ou impossibilitados de regressar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual por motivos de insegurança devida a conflitos armados ou a sistemática violação de direitos humanos que aí se verificassem. Tais razões, a partir de 1993, passaram a ser atendíveis tão só para efeitos de concessão de um regime especial de autorização de residência distinto do estatuto de refugiado. Sendo certo que a consagração constitucional do direito de asilo não obriga a abranger estes casos, a verdade é que também os não exclui. E se em 1980 existiam razões para consagrar o reconhecimento do estatuto de refugiado por razões humanitárias, não existem hoje menos razões para a sua reposição.

4º ponto: O PCP propõe a revogação, por inconstitucional, da disposição que possibilita a recusa da concessão de asilo "sempre que a segurança interna ou externa o justifiquem ou quando a protecção da população o exija, designadamente em razão da situação social ou económica do país".

Tendo o direito de asilo o estatuto constitucional de direito fundamental, este só pode ser restringido nos casos em que a própria Constituição o preveja. Ora, a Lei Fundamental não prevê qualquer cláusula de restrição deste direito, nem os fundamentos de recusa constantes desta norma - tão vagos e insindicáveis como " a situação social e económica do país" - podem funcionar, à luz da Constituição, como cláusulas de restrição de direitos fundamentais.

5º ponto: O PCP propõe a consagração do carácter automático - em vez da simples possibilidade - da extensão dos efeitos da concessão de asilo ao cônjuge e aos filhos menores solteiros ou incapazes, do requerente ou, sendo este menor de 18 anos, ao pai e à mãe.

6º ponto: O PCP propõe que a entidade competente para analisar os pedidos de asilo e apresentar propostas sobre a sua concessão seja uma entidade independente.

O Comissário Nacional para os Refugiados, que presentemente detém tais competências, sendo embora um magistrado judicial, funciona no âmbito do MAI e é nomeado em Conselho de Ministros sob proposta ministerial. Não reúne portanto as condições de independência que diversas recomendações internacionais sobre a matéria consideram fundamental.

Propõe assim o PCP que as competências do Comissário Nacional para os Refugiados sejam atribuídas a um órgão colegial (solução que vigorou aliás entre 1980 e 1993), tendo porém a natureza de entidade pública independente.

7º ponto: O PCP propõe a consagração de uma disposição legal relativa a garantias mínimas dos requerentes de asilo, contemplando designadamente o direito a dispor de intérprete, quando necessário, para compreensão das suas razões por parte das autoridades; a oportunidade de apresentar todos os factos e circunstâncias relativas aos seus casos, bem como os meios de prova de que disponham; o direito a recorrer a advogado, a beneficiar de assistência judiciária e a entrar em contacto com as organizações não governamentais que se ocupam dos problemas relativos aos refugiados.

8º ponto: O PCP propõe a atribuição aos representantes do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ou do Conselho Português para os Refugiados do direito de serem informados sobre o andamento dos processos que acompanhem e de contactar pessoalmente os requerentes de asilo, podendo aceder livremente a zonas reservadas nomeadamente nos aeroportos.

9º ponto: Finalmente, o PCP propõe a consagração do efeito suspensivo automático do recurso contencioso que seja interposto de uma decisão administrativa que negue a concessão do direito de asilo. A não ser assim, a decisão administrativa que recuse o direito de asilo poderá ter como consequência o abandono forçado do território nacional por parte do requerente, retirando efeito útil ao próprio recurso e determinando desde logo a irreversibilidade da decisão.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Está hoje também em apreciação nesta Assembleia, o Proposta de Lei sobre direito de asilo que o Governo anunciou no início da presente legislatura mas que só no passado mês de Maio deu entrada na Mesa.

Esta Proposta de Lei representa uma decepção face às expectativas que o Governo alimentou quanto às suas intenções de revisão da legislação sobre asilo, tendo inclusivamente em conta a gravidade da situação existente e as críticas que o PS aqui fez em 1993 à lei aprovada pelo PSD.

É que, se há aspectos do regime legal vigente que a presente Proposta de Lei se propõe alterar num sentido positivo, o que é facto é que esta Proposta de Lei não se afasta, em aspectos cruciais, da matriz da Lei que o PSD há quatro anos aqui fez aprovar.

É verdade que no plano do apoio social aos requerentes a Proposta de Lei introduz alguns progressos; É verdade que as consequências drásticas do processo acelerado são um tanto minoradas, ainda que ligeiramente, sobretudo quanto aos prazos aplicáveis. É verdade também que a questão do reagrupamento familiar é tratada em termos mais razoáveis. É verdade ainda que os recurso que sejam interpostos para o STA face a decisões que recusem o reconhecimento do direito de asilo têm efeito suspensivo automático.

Mas não é menos verdade que a Proposta de Lei deste Governo, não só mantém em vigor disposições legais que o PS tanto criticou ao PSD, como propõe a aprovação de novas disposições que são inaceitáveis. Senão vejamos:

Em primeiro lugar, o regime de processo acelerado previsto na lei do PSD é substituído na Proposta de Lei do PS por uma fase de admissibilidade do pedido, da competência do SEF, e que, tal como no processo acelerado, assenta em decisões discricionárias da parte dos serviços.

Basta que o SEF considere que se verificam causas de exclusão "manifestas"; ou que as alegações do requerente são "destituídas de fundamento"; ou que o pedido é "claramente fraudulento", para que o requerimento não seja admitido e consequentemente não seja analisado. Trata-se de um processo que será um pouco menos acelerado, mas que é ainda assim, inaceitável.

Mas particularmente grave é o regime aplicável aos casos em que o pedido de asilo seja apresentado nos postos de fronteira, na sequência de entrada irregular no território nacional. Nesse caso, o SEF decide da admissão do pedido no prazo de 5 dias, e em caso de não admissão, pode o requerente pedir, em 24 horas, a reapreciação do caso pelo Comissariado Nacional para os Refugiados, que decidirá nas 24 horas seguintes. Só que, nestes sete dias, o requerente é obrigado a permanecer na zona internacional do aeroporto.

Lê-se e não se acredita. Se uma disposição destas for aprovada, resta esperar que, tal como fizeram aquando do célebre caso "Vuvu", o senhor ministro José Vera Jardim e o senhor secretário de Estado António Costa intercedam judicialmente contra tal atentado aos direitos humanos e à Constituição da República.

Em segundo lugar, o Governo reconhece a importância de prever a eficácia suspensiva automática do recurso que seja apresentado perante o STA, face à recusa do direito de asilo. Mas já não reconhece o mesmo efeito suspensivo aos recursos que sejam apresentados perante o Tribunal Administrativo de Círculo, face à decisão de não admissão do requerimento. Não é compreensível esta disparidade de critérios.

Em terceiro lugar, a Proposta de Lei continua a fazer depender o reconhecimento do direito de asilo, ou mesmo a admissibilidade do pedido, de critérios que não decorrem de qualquer consideração humanitária, mas antes de meras considerações de política externa, ou mesmo de oportunidade.

Em quarto lugar, a solução proposta pelo Governo para a composição do Comissariado Nacional para os Refugiados, é verdadeiramente abstrusa. Propõe o Governo que tal Comissariado seja composto por um Magistrado Judicial, um Magistrado do Ministério Público como adjunto do primeiro, e um licenciado em Direito com funções de assessoria. Os dois magistrados seriam nomeados pelo Governo mediante designação dos respectivos Conselhos Superiores. O terceiro seria simplesmente de nomeação governamental. Um simples "boy".

Esta proposta suscita várias objecções. Primeira, a de que não é pelo facto de um órgão ser composto por magistrados que se torna independente. Os magistrados a integrar o comissariado não exercerão as funções de magistrados, mas de titulares de um órgão da Administração Pública. Segunda, a de que não é adequado que os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público sejam envolvidos na designação de membros que hão-de integrar órgãos a funcionar na órbita governamental. Terceira, a de que, sendo as magistraturas independentes, não se percebe porque é que o magistrado do ministério público há-de ser o adjunto do magistrado judicial.

Finalmente, é de lamentar que o Governo não aproveite esta iniciativa legislativa para retomar o bom princípio eliminado em 1993 de que o direito de asilo pode ser reconhecido por razões humanitárias. Também neste caso o Governo PS segue integralmente as pisadas do PSD.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Não restam apesar de tudo dúvidas de que estamos hoje em condições de debater esta matéria com mais serenidade do que em 1993. Há hoje melhores condições para deixar claro que estamos a falar de Direito de Asilo, não estamos a falar de imigração ilegal; que estamos a falar de cidadãos perseguidos pelas suas convicções políticas e pela sua luta em defesa dos direitos humanos, não estamos a falar de criminosos; que estamos a falar de razões humanitárias, não estamos a falar de conveniências de política externa.

Quando em 1993 exerceu o seu direito de veto sobre um primeiro Decreto desta Assembleia sobre Direito de Asilo, o então Presidente Mário Soares chamava a atenção na sua mensagem, para as nossas "especiais responsabilidades na ponderação de um novo regime legal sobre direito de asilo e estatuto de refugiado. Está na nossa memória a experiência recente e, por isso, temos de usar de generosidade e abertura, com as cautelas necessárias, capazes de garantir na prática a solidariedade de que ontem beneficiámos e que hoje não devemos regatear". Sobretudo num momento - acrescentava mais adiante - "em que deveremos contrariar e prevenir, com serenidade e firmeza e com sentido humanitário, as tentações do chauvinismo e xenofobia que se vão manifestando no velho continente".

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O voto que hoje fazemos é o de esta Assembleia aprove, em matéria de direito de asilo, uma verdadeira mudança de rumo em relação aos maus caminhos seguidos em 1993, no sentido de um regime legal mais justo e humano. Daremos, para isso, o nosso melhor contributo.

Disse.