Regularização de cidadãos estrangeiros indocumentados
Intervenção do Deputado António Filipe
29 de Junho de 2000

 

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

Hoje não vamos falar de números. Vamos falar de pessoas. Vamos falar de muitas pessoas que procuram em Portugal o trabalho e os meios de sobrevivência que lhes faltam nos países onde nasceram e que, entre nós, se confrontam com uma lei hostil e se sujeitam a trabalhar e a viver na ilegalidade, sem direitos e sem regalias sociais.

Poderíamos estar a falar de centenas de milhares de portugueses que demandaram pelos quatro cantos do mundo o bem estar que em Portugal não conseguiam obter e que hoje constituem fortes comunidades portuguesas nos países que os acolhem. Estes nossos compatriotas sabem muito bem, por experiências próprias tantas vezes dolorosas, o que é viver e trabalhar longe do seu país, dos seus amigos, e quantas vezes longe das famílias, sabem muito bem o que são as discriminações no trabalho e na sociedade.

Não estamos a falar destes portugueses, mas estamos a falar de pessoas que, precisamente nas mesmas condições, demandam o nosso país em procura de trabalho e que Portugal, em nome dos direitos fundamentais que devem ser reconhecidos a todos os seres humanos e em nome do respeito que deve à sua própria identidade, tem a estrita obrigação de tratar com a mesma dignidade com que exige que sejam tratados os portugueses que vivem e trabalham além-fronteiras.

Mas não é isso que tem acontecido. Com uma lei de imigração que se limita a seguir obedientemente a cartilha de Schengen e que dá corpo a uma política de portas fechadas, completamente alheia à realidade, Portugal está hoje confrontado com o aumento crescente do número de ilegais e com todas as consequências humanas e sociais que daí decorrem.

O PCP sempre defendeu que a dupla condição de Portugal como país de emigração e de imigração deveria justificar uma orientação política de acolhimento e integração dos imigrantes na sociedade portuguesa marcada pelo respeito dos seus direitos cívicos, sociais e culturais, de apoio à sua integração harmoniosa e de valorização do seu contributo para o desenvolvimento do país. E por isso sempre criticou as políticas do actual Governo - e dos anteriores - que fazem um discurso de boas palavras dirigidas às comunidades de imigrantes, mas que actuam de forma repressiva e discriminatória sobre os imigrantes, deixando no entanto incólumes os grandes interesses económicos e empresariais que se alimentam das redes de imigração ilegal e do trabalho clandestino.

A situação dos ilegais em Portugal, a completa inadequação da actual lei de estrangeiros, e a necessidade de alterar a legislação portuguesa sobre estrangeiros e de encontrar soluções para os milhares de cidadãos que vivem e trabalham em Portugal em situação ilegal, tornaram-se realidades tão evidentes, que nem o Governo conseguiu fingir por mais tempo que as ignorava.

A apresentação pelo Governo à Assembleia da República de uma proposta para a revisão da Lei de Estrangeiros é acima de tudo a confissão de um fracasso. Ainda há bem pouco tempo ouvimos nesta Assembleia, da parte de membros do Governo e de Deputados do Partido Socialista, os mais rasgados elogios a esta mesma Lei e os maiores impropérios dirigidos aos Deputados que reivindicavam a sua alteração.

E esta Lei, que o Governo agora admite que não se pode manter como está, não é propriamente do início do século. A sua versão originária ainda não tem dois anos e a redacção que está em vigor não tem sequer um ano.

Acontece no entanto que as soluções adiantadas na proposta de revisão apresentada pelo Governo, também não respondem, com eficácia e com justiça, aos problemas dramáticos da imigração e da inserção dos imigrantes na sociedade portuguesa.

O que o Governo nos propõe são no essencial falsas soluções, paliativos e expedientes que, embora constituam um recuo assinalável e possam traduzir alguns progressos face ao quadro actual, são sobretudo uma tentativa de responder aos interesses de algumas empresas e sectores de actividade económica, como a construção civil e obras públicas, garantindo-lhes mão de obra temporária e a baixo custo, descartável quando não fizer falta e a quem não se reconhecem direitos normais de cidadania nem de vida com a respectiva família.

É esse o significado da nova categoria de imigrantes que o Governo se propõe inventar com as chamadas autorizações de permanência, que são temporárias, renováveis anualmente, e limitadas a 5 anos, representando para os seus titulares um estatuto de inferioridade em relação ao que as normais autorizações de residência possibilitam.

Para além disso, é de assinalar que a malha mais diversificada de soluções propostas na nova lei permanece enquadrada por um excessivo e inaceitável poder de decisão administrativo discricionário do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Este regime permitiria sempre ao Governo, mantendo um discurso oficial e genérico de respeito pelos direitos humanos, condicionar a legalização dos imigrantes em função de interesses económicos e dos seus compromissos políticos com a União Europeia, mas sem consideração ou respeito pelos seus direitos de trabalhadores e de seres humanos.

O PCP reafirma que não é esta a política de imigração de que Portugal precisa e que os próprios trabalhadores migrantes justamente reclamam. Combater a imigração ilegal e o trabalho clandestino, fonte de exploração desumana de tantos portugueses e estrangeiros, exige, entre outras medidas, uma política de imigração e uma Lei de Estrangeiros diferente e mais democrática.

Uma Lei que assegure o respeito pelos direitos de todos os trabalhadores, sem discriminações quanto à sua origem nacional e que trate todos os imigrantes como cidadãos de corpo inteiro, que aspiram justamente a uma vida melhor e querem ser respeitados na sua dignidade.

Uma Lei que não crie novas categorias de imigrantes com direitos mais condicionados, mas que aceite corajosamente estabelecer um enquadramento legal permanente que possibilite a regularização dos que, vivendo e trabalhando em Portugal, sofrem todos os dramas da ilegalidade, deixando de facto de alimentar as redes internacionais de abastecimento da imigração ilegal e do trabalho clandestino que a todos, trabalhadores portugueses ou imigrantes, prejudicam.

É em nome destes objectivos que o PCP apresenta neste debate dois projectos de lei, sobre a regularização de cidadãos estrangeiros indocumentados e de revisão global da Lei de estrangeiros, que correspondem aliás a compromissos eleitorais formalmente assumidos.

O primeiro projecto diz respeito à regularização dos cidadãos que permanecem em situação ilegal. A situação destes cidadãos indocumentados constitui uma flagrante violação de direitos fundamentais. Ninguém pode ignorar que as obras públicas do passado recente e do presente, foram - e são - em larga medida construídas com o suor de milhares de imigrantes ilegais. Só pela via da legalização e da integração social será possível pôr fim à exploração infame a que estes trabalhadores estão sujeitos e respeitar os seus direitos mais elementares.

O PCP propõe, por isso, que os cidadãos estrangeiros que se encontrem a residir em Portugal sem a autorização legalmente necessária obtenham a sua legalização desde que disponham de condições económicas mínimas para assegurar a sua subsistência e aos que, independentemente disso, tenham cá residido permanentemente nos dois anos anteriores à apresentação do requerimento.

Para o PCP, a solução para os imigrantes ilegais não pode limitar-se à abertura de um processo de regularização extraordinária, limitado no tempo, que, a prazo, acabe por deixar tudo na mesma, nem a mecanismos excepcionais, do tipo do actual artigo 88º. A vida já demonstrou que o recurso a esses mecanismos não garante a solução necessária para a regularização dos imigrantes ilegais.

Mas para além disso, o PCP considera essencial rever globalmente e Lei de Estrangeiros. Não se trata de consagrar uma política de portas escancaradas. Do que se trata é de, acentuando o combate à redes de imigração ilegal e a todos os que dela beneficiam, adoptar uma legislação de estrangeiros menos restritiva, menos discricionária e mais respeitadora dos direitos dos trabalhadores imigrantes e das suas famílias.

O que o PCP propõe é que sejam revogadas as disposições legais mais fortemente restritivas dos direitos dos estrangeiros, designadamente em matéria de acesso ao trabalho, que seja adoptado um regime mais aberto e menos policial de obtenção de vistos de trabalho, que seja possibilitada a concessão de autorização de residência aos cidadãos estrangeiros que tenham contratos de trabalho em Portugal, que seja reduzido o período de residência indispensável para a obtenção de autorização de residência permanente, que sejam limitados os poderes discricionários do SEF e garantido o efeito útil dos recursos das suas decisões.

Uma especial preocupação das propostas do PCP tem que ver com a situação dos menores. Propõe-se a extensão do direito ao reagrupamento familiar por forma a abranger os irmãos menores a cargo dos requerentes, confere-se uma especial protecção às crianças e aos menores quando desacompanhados, e impede-se a aplicação de penas acessórias de expulsão a arguidos que tenham filhos menores em Portugal.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

Este processo legislativo constitui uma oportunidade que não pode ser desperdiçada para melhorar a legislação portuguesa sobre estrangeiros e imigração. Mas para que esse objectivo seja alcançável, esta Assembleia não pode limitar-se a conceder ao Governo uma Autorização Legislativa para criar uma nova categoria de imigrantes com direitos reduzidos. O que se impõe é que a Assembleia da República proceda, ela própria, a um debate na especialidade, no qual sejam consideradas as várias propostas existentes e seja levada em conta a opinião dos próprios cidadãos imigrantes e das suas associações representativas.

Disse.