Sessão Solene Comemorativa dos 500 Anos
da Chegada de Vasco da Gama à Índia
Intervenção do deputado José Calçada
15 de Junho de 1998
Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Ministro da Cultura em representação do Senhor Primeiro Ministro,
Senhores Membros do Governo,
Senhor Presidente da Comissão Mundial Independente para os Oceanos,
Senhoras e Senhores Ilustres Convidados,
Senhoras e Senhores Deputados:
Se morrer com a idade de Cristo Nosso Senhor é sinal de bem-aventurança, até
nas bem-aventuranças sou dado a humildemente sofrer os mistérios de Deus. Porque
nunca como nesta hora eu fui tão falho de alguém. Repentemente, é como se desde
Sines nunca a ampulheta do tempo houvesse sido virada, e tu não estás aí jazendo
nesse caixão, e eu não estou contigo nesta igreja de São Francisco de Angra,
antes me vejo a seguir-te pelas colinas junto ao mar, eu e tu com as espadas
de madeira que nenhum corsário venceria. Os pescadores olham-nos lá de baixo,
da praia, e acenam-nos, e gritam-nos qualquer coisa que o vento não permite
que nos chegue, de um modo ou de outro crianças não são nunca dadas a ouvir
o que adultos lhes dizem. Salvo quando lhes contam histórias, e Estêvão, o nosso
Pai, sabia contá-las, e contava-nos de quando andara como espião em Marrocos
ao serviço de El-Rei, disfarçado de mercador e vendendo fruta seca do Algarve,
e, de tão maravilhados, nunca nos perguntámos se o que nos contava traria brilho
acrescentado da sua própria imaginação. Sei hoje que o nosso Pai nem imaginar
poderia o que entretanto eu e tu pela nossa vista pudemos de experiência conhecer.
Se com os portugueses hoje se aprende mais em um dia do que em cem anos com
os Antigos, todas as fábulas de ontem nos aparecem assim como modestas. Dêmos
por isso graças ao Senhor, sendo certo que bem dispensaríamos os grandes sofrimentos
que para tal tivemos de passar, e mormente para mim o de te ter aí morto. Eis,
Paulo, para o que eu me não aprontei. Preparara-me tão só, com Deus e com os
homens, para chegar à Índia, tal como El-Rei me havia ordenado, e para de lá
voltar com especiarias e com cristãos, mais com as primeiras do que com os segundos,
e esta ordem a temos já por cumprida. Mas nunca cuidei de subir a estas ilhas
dos Açores por tão infausto sucesso, que não para que os alisados nos conduzissem
cansada mas serenamente à vista dos belos montes que de Sintra se chamam. Nicolau
Coelho, que à nossa frente seguiu, estará já a receber as honras que me estariam
primariamente reservadas. Mas não me há qualquer ciúme, ou agravo, ou amargura,
antes o alívio de as vir a receber depois, de modo mais natural e menos festivo.
O que Deus Nosso Senhor com isto me quer dizer, porque Deus quer sempre dizer-nos
alguma coisa com o que nos diz, é que esta obra da Índia é a de todos nós, e
que o nosso destino neste mundo é por todos nós edificado, seja ou não o nosso
limitado juízo capaz de o entender desde logo. Sabemos do silencioso ressentimento
a que Bartolomeu Dias se votou por lhe não ter sido propiciado concluir aquilo
a que se julgava com direito; sabemos da lonjura da Etiópia onde foi Pero da
Covilhã forçado a permanecer. Providenciasse Deus convencê-los a um e a outro,
já que para tal humanamente me falham engenho e meios, que nada mais me coube
do que singrar o caminho que eles para mim já haviam verdadeiramente descoberto,
e outros para eles antes deles. E os que por graça de Deus a Lisboa tornam,
o devem também a todos aqueles que raramente verão seus nomes nomeados, e que
jazem nas profundezas do grande mar oceano, degredados feitos heróis pelas tempestades,
clérigos feitos cobardes pelos medos, marujos feitos almirantes sem certidão,
e as famílias colhendo de todos por herança mais lutos e lágrimas do que honras
e privilégios. Foram estes os que apartaram o mundo em duas metades iguais com
os de Castela, e logo o tornaram uno em um só oceano de um lado e do outro do
grande cabo austral da África, indo contra a riqueza dos turcos, e dos italianos
de Génova e de Veneza, e assim ganhando o comércio da Etiópia, da Arábia, da
Pérsia e da Índia. Assim partimos o mundo, juntando-o; assim juntámos os homens,
partindo-os.
Os círios que rodeiam o teu caixão, Paulo, já quase todos se apagaram. E chamam-me
do barco... Os ventos correm para Lisboa e o mar para lá do monte da baía de
Angra começa a encarneirar. Mas não me vou sem que te deixe um sonho, uma história
como as que do nosso Pai ouvíamos quando em Sines jogávamos com as nossas espadas
de madeira... Sonhei que um dia - e, mais do que um sonho, talvez fôra revelação
-, num dia não muito afastado de nós, um marinheiro português dará encontro
com uma ilha a que chamam de Utopia, e onde mulheres e homens conseguem a aventurança
entre si, sem que forçados sejam uns contra os outros a dividir o mundo ao meio,
ou em quaisquer partes. Paulo, meu irmão: prouvera a Deus Nosso Senhor que com
esta nossa viagem já fôra pequenamente começado o caminho para a tão ditosa
ilha de Utopia. Assim seja!
Disse.