Relatório sobre o combate à fraude e evasão fiscais
Intervenção de Honório Novo
1 de Março de 2006

 

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro,

a sensação que me dá quando leio o relatório é que ele e o Governo «têm mais olhos que barriga», permita-me a expressão popular. A começar pela informação que é prestada, que deveria ser mais bem documentada e que, em muitos casos, é parcial.


Não digo que não é útil, mas é parcial.
Vou dar-lhe só três exemplos. Quando se fala em aumentar o número de inspectores — aliás, o Sr. Ministro falou nisso — fala-se em mais cerca de 600, mas, na verdade, nada se diz quanto aos objectivos. Isto é, do ponto de vista do Governo, qual é a relação óptima entre o número de inspectores e dos habitantes a atingir? É apenas ultrapassar a Espanha? Se o objectivo é esse, é bem pouco, Sr. Ministro.


Quanto à regularização tributária de elementos patrimoniais no exterior, o famoso RERT, qual foi de facto o volume de receitas obtido? Que parte desses capitais repatriados foram aplicados, por exemplo, em dívida pública? Mais importante ainda: o Governo pretende recuperar esta medida para o presente ano e para os anos seguintes?


O terceiro exemplo de deficiente informação diz respeito ao balanço da dívida. Diz-se que foi recuperado um determinado volume de dívida, mas nunca se refere a dívida contraída no respectivo ano. Assim, gostaríamos de saber qual o montante da dívida contraída em 2003, em 2004, em 2005, para percebermos qualé o saldo líquido e se a dívida aumenta em termos líquidos, ou não, apesar do combate em curso.


Sr. Ministro, onde o relatório é claramente insatisfatório é naquilo que projecta para o futuro. Por exemplo, fala em política de «tolerância zero» e nem um parâmetro existe para a caracterizar. O que é?

Se é zero, Sr. Ministro, a economia paralela vai ser zero do PIB? Quando? No fim do seu mandato ou no final do «mandato» dos seus netos? Não se percebe!


Fala em plano estratégico para a justiça e eficácia fiscal e não o descreve, não o caracteriza, não o enuncia.


Sr. Ministro, nada se diz sobre a eventual abordagem sobre a eliminação de benefícios fiscais — que também era necessário fazer nesta sede — e anunciam-se avanços no sigilo fiscal, mas quase nada vai mudar.

Por que razão mantém a função suspensiva na maior parte dos processos? Por que se propõe manteros actuais mecanismos na dependência fundamental dos contribuintes eventualmente faltosos? Por que razão fica muito aquém daquilo que a própria legislação belga propõe?


Finalmente, há uma pergunta irrecusável que gostaria de lhe fazer. Há cerca de cinco meses, os noticiários falaram no «Furacão na banca», na «operação Furacão». Sr. Ministro, cerca de cinco meses passados, o que se sabe sobre esta operação? Nem uma linha nos jornais, nem um parágrafo nos jornais!


É verdade que o Governo vai dizer que está em segredo de justiça, mas será que o Governo não tem nada de relevante para nos dizer sobre o desenvolvimento desta processo, desta «operação Furacão»? Era importante que hoje, quando se discute o relatório sobre o combate à evasão fiscal, tivéssemos alguma novidade substancial sobre a evolução desta operação.

(...)

Senhor Presidente

Senhoras Deputadas

Senhores Deputados

O Relatório sobre o combate à fraude e evasão fiscais é um documento com que o Governo pretende confirmar uma aposta política que afinal está bem longe de constituir uma prioridade governamental.

Apesar da administração fiscal revelar dados positivos na criação de sistemas informáticos mais adequados, de bases de dados únicas ou com campos comuns, nas metodologias de recolha, tratamento e cruzamento atempado de informação e, consequentemente, na adopção dos respectivos procedimentos de liquidação e cobrança, pode dizer-se que no fundamental isso não resulta de uma acção prioritária deste Governo. A evolução que se indicia é muito mais o resultado de um processo global de informatização dos serviços, que aliás tem sido demasiado lento, e que deveria já estar concluído há bastante tempo se tivesse sido – e nunca foi – prioridade política para sucessivos Governos, incluindo o actual.

O Relatório sobre o “Combate à fraude e evasão fiscais” mostra, contudo, alguma informação deficitária para permitir avaliar com inteira profundidade e rigor a evolução verificada nesta área determinante da actividade da administração tributária.

Diz-se que há aumentos na cobrança de receitas e que tal resulta em parte do aumento da eficiência fiscal mas nada é quantificado nem qualificado;

fala-se de um “plano para controlar as actividades transfronteiriças” em resultado das diferenças do IVA entre Espanha e Portugal mas nada se diz sobre os resultados deste controlo. Mais grave: nada se diz sobre os prejuízos fiscais resultantes da passagem do IVA de 19% para 21%;

anuncia-se que o combate ao crime fiscal se traduziu num aumento significativo do número de detenções e de arguidos mas nunca se referem nem os dados de partida nem os resultados fiscais desses processos especiais.

Mas onde o relatório é claramente insatisfatório é na apresentação de metas e objectivos de curto e médio prazo.

O que se anuncia no relatório são muito mais orientações do que compromissos e objectivos definidos. É um relatório cheio de boas intenções mas vazio de calendarização e de programação.

Fala-se, por exemplo, de reforçar “substancialmente o combate à economia paralela”. Mas, não obstante reconhecer que esta representa mais de 22% do PIB, o relatório não apresenta objectivos, não anuncia sequer quantos pontos percentuais pretende o Governo diminuir o peso da economia paralela em Portugal. Sobre isto o Governo nada diz, nem sequer que o objectivo de legislatura possa, por exemplo, ser remeter o valor da economia paralela para o valor médio comunitário (que ronda os 17% do PIB)!

Mas onde o Governo quase atinge a fronteira do ridículo e do inaceitável é anunciar no seu relatório uma “Política Fiscal de Tolerância Zero a atingir no ano 2008” ! Habituado às frases de propaganda mediática, o Governo vem falar de “tolerância zero” em matéria fiscal sem caracterizar um único – sublinho – um único parâmetro do que seja ou possa vir a caracterizar tal objectivo.

Esta postura é tanto mais inaceitável quanto o relatório do Governo passa ao lado de elementos centrais do combate à evasão e à fraude fiscais.

Em primeiro lugar a eliminação do sigilo bancário. Vem o Governo dizer que vai propor nova legislação a aprovar até final deste ano, isto é, legislação para entrar em vigor depois de mais de ano e meio de acção governativa.

Só que para além da demora, o que se anuncia é profundamente limitado e claramente incapaz de produzir efeitos positivos desejáveis no combate à fraude fiscal. Será porventura capaz de produzir alguns efeitos dissuasores junto de alguns contribuintes faltosos de pequena dimensão (ao promover a derrogação do sigilo bancário quando existam reclamações). Mas a verdade é que nada se vai alterar no combate ao crime fiscal e ao branqueamento de capitais de larga escala, à evasão fiscal concertada!

O Governo deixa o essencial de fora. E o essencial e necessário seria generalizar a consulta de elementos bancários para finalidades fiscais. O Governo serve-se de todos os artifícios para não assumir este objectivo central de combate à fraude fiscal: continua a insistir na audiência prévia dos contribuintes, (em situações em que estão em causa o controle de benefícios fiscais ou regimes fiscais privilegiados, a divergência notória entre as declarações e os acréscimos patrimoniais, em situações evidentes de manifestação de riqueza ou até na comprovação da aplicação de subsídios públicos), e continua a admitir os efeitos suspensivos da interposição judicial. No fundo, o Governo opta deliberadamente por abdicar dos instrumentos e procedimentos que podiam tornar eficaz o combate à evasão e à fraude fiscais de grande escala.

E, ao que parece, o Governo, apesar de invocar legislação estrangeira, nem sequer parece querer eliminar o segredo bancário na evasão de impostos sobre o património ou na verificação de comportamentos fiscais em sede de IVA ou de impostos especiais sobre o consumo!

Um outro elemento relevante que não é, nem de perto nem de longe abordado neste relatório governamental, é a questão da justiça fiscal. E não colhe o argumento de que este é um relatório sobre o combate à evasão fiscal onde não cabe tratar directamente essa questão.

Quanto a nós o Governo tem a obrigação de fazer associar o combate à evasão e à fraude discais à necessidade de eliminar progressivamente os factores de injustiça fiscal existentes, designadamente os que decorrem do elevado volume de benefícios fiscais injustificados que continuam a vigorar em Portugal e que beneficiam sectores de actividade com elevadíssima rentabilidade económica.

Quando se fala em combate à fraude e à evasão tem necessariamente de se enquadrar objectivos de equidade fiscal. E não se podem tratar questões de justiça fiscal com os factores de desequilíbrio e de privilégio fiscal que continuam impunes em Portugal.

A postura que o Governo assume neste Relatório quanto ao sigilo bancário, as hesitações, a tibieza e as omissões no combate à evasão e à fraude, a previsão mais segura que é possível fazer-se é que a dívida fiscal poderá continuar a aumentar bem acima do que se vai conseguindo recuperar. É que, enquanto não houver verdadeira vontade política, a luta contra a fraude e a evasão nunca será verdadeiramente eficaz.

Disse.


(...)


Sr. Presidente,
Sr. Ministro de Estado e das Finanças,
Sr. Secretário de Estado,
Sr.as e Srs. Deputados:

Procurou o Governo mostrar com este relatório que a sua prioridade política em matéria fiscal é o combate à fraude e à evasão fiscais.


A verdade é que o relatório pode ser, e é certamente, uma boa peça com objectivos mediáticos, mas é muito limitado, e em certos aspectos é mesmo inaceitável, quanto ao objectivo da obtenção de resultados claros e decisivos no combate ao crime fiscal e no combate ao branqueamento de capitais, sobretudo, de larga escala.
O Governo começa por nem pela rama abordar a questão da injustiça fiscal. Nem de forma acessória


toca na questão central de introduzir equidade no sistema fiscal, em especial pela redução de benefícios fiscais ilegítimos ou pela redução de benefícios fiscais não justificados concedidos a actividades económicas fortemente lucrativas.


Noutro plano, o Governo propõe alterações, a nosso ver, muito limitadas no âmbito do sigilo bancário, que, passe a expressão, mais parecem operações de «maquilhagem» do regime actual do que a tradução de uma real vontade política de generalizar aquela que é, quanto a nós, a necessária e urgente libertação do sigilo bancário para finalidades fiscais. E esta é que é, era e seria uma medida essencial.


Vai continuar, portanto, o actual sistema, que mantém a dependência da vontade do contribuinte fiscalizado.


Vai continuar, portanto, e no fundamental, o sistema que privilegia as funções suspensivas. Vai, no fundo, prosseguir, Sr. Ministro, em Portugal, um dos regimes mais retrógrados de derrogação do sigilo bancário que existe entre os países membros da União Europeia.


As propostas e orientações essenciais inseridas neste Relatório permitem na verdade confirmar quanto o combate à fraude e à evasão fiscais não constitui uma prioridade política do actual Governo.


Vimos o que se passa relativamente ao sigilo bancário, mas também podemos verificar a mesma perspectiva num conjunto de iniciativas e orientações que ou não são calendarizadas ou são mal caracterizadas, limitando-se ao enunciar de uma mão-cheia de boas intenções, sem consequências práticas nem compromissos assumidos perante o País e perante esta Câmara, o que seria essencial.


Já falei, e volto a fazê-lo, da política de «tolerância zero», objectivo nunca caracterizado, mas é, sobretudo, no anunciado combate acrescido à economia paralela que se limita, no fundo, Sr. Ministro (lendo o Relatório da pág. 1 à pág. 28), a uma espécie de profissão de fé, sem objectivos nem metas a alcançar.


Tudo isto mostra bem o contexto em que surge este Relatório e confirma os objectivos do Governo.


Mas, pelos vistos, este debate mostra também os objectivos da maioria parlamentar com a divulgação e apresentação deste Relatório. E o objectivo – este debate mostra-nos claramente — é transformar a apresentação de um documento que tem aspectos importantes e positivos, que não decorrem da intervenção do Governo, relatório esse que deve ser factual, com informações técnicas rigorosas e abrangentes, com objectivos programados e calendarizados, numa espécie de peça de propaganda para servir a estratégia mediática do Governo.


Uma nota em jeito de síntese final: o Governo pode, apesar de tudo, contar com o PCP para uma discussão aberta e alargada, sem preconceitos, sobre as fórmulas e os procedimentos que permitam um eficiente e generalizado combate ao crime e à evasão fiscais de larga escala.

Continuaremos sempre a insistir neste combate. Continuaremos sempre a intervir, propondo alterações e melhorias para combater a fraude, designadamente em matéria de sigilo bancário.

Mas o que o Governo não quererá é que o PCP colabore neste debate suscitado por ele, que — passe a expressão popular que me permito utilizar, com licença da Presidência desta Assembleia — mais parece um «faz-de-conta» de combate à evasão e à fraude fiscais.