Reforma dos Impostos sobre o Rendimento
Intervenção de Octávio Teixeira na
Assembleia da República
11 de Outubro de 2000
Senhor Presidente
Senhores Membros do Governo
Senhores Deputados
O debate que agora se inicia releva da maior importância. Ele significa, a final, que da aparente unanimidade sobre a necessidade da reforma em que pareciam convergir todas as forças políticas, se passa agora a uma fase de concretização da reforma, em que ressaltam as muitas e profundas divergências de soluções apresentadas e defendidas por cada partido político.
E importa sublinhar, por que há quem o pretenda escamotear, este novo patamar em que entramos tem origem no PCP. Ao fazer uso de um seu direito potestativo, agendando o seu projecto de lei sobre a Reforma dos Impostos sobre o Rendimento, e ao autorizar que outros projectos sobre idêntica matéria pudessem ser discutidos e votados no mesmo momento, o Grupo Parlamentar do PCP conseguiu, desde já, dois resultados a assinalar: obrigou outros grupos parlamentares e o Governo a apresentarem as suas propostas concretas para essa reforma; e impôs que, de uma vez por todas, se passe das palavras aos actos. E esperamos que a estes se venha somar um terceiro e decisivo resultado, o de a curto prazo o país, e em especial os trabalhadores por conta de outrem, virem a dispor de um novo e mais justo regime de tributação dos rendimentos.
O início da reforma fiscal vem com muitos anos de atraso, cinco dos quais da responsabilidade do PS. Nenhum da responsabilidade do PCP, que por ela há muitos anos se bate. Pelo contrário, foi o PCP que esteve na sua origem.
Há quem pretenda menorizar o significado do processo que hoje iniciamos, com o pretexto de que se não trata de uma reforma global do sistema fiscal. Não têm qualquer razão.
É evidente que a reforma fiscal de que o país necessita se não esgota nos impostos sobre o rendimento, e que o processo que se vai iniciar deverá, desejável e necessariamente, ter continuidade noutras áreas do sistema fiscal. Pela parte do PCP, consideramos que à reforma dos impostos sobre o rendimento deve seguir-se de imediato a reforma dos impostos sobre o património, abrangendo o património mobiliário, e, num terceiro passo, a reforma do sistema de financiamento da Segurança Social pública. Sem esquecer o imposto automóvel e o imposto sobre os combustíveis.
Mas continuamos a pensar que a prioridade deve ser dada aos impostos sobre o rendimento, por ser nestes que mais gritantes são a actual política de "favores fiscais" e a inaceitável afectação dos princípios da igualdade e da justiça fiscais.
Senhor Presidente
Senhores Deputados
Os projectos e proposta hoje em discussão duplamente se podem dividir em dois grupos.
Em primeiro lugar, e atendendo à orientação política que os enforma, temos por um lado os projectos do PSD e do CDS, que visam uma tributação dos rendimentos de capital mais favorável que a dos rendimentos do trabalho, a pretexto do incentivo à poupança, omitindo que os rendimentos da maioria dos portugueses não permitem qualquer poupança. Do outro lado encontram-se os projectos de lei do PCP, do BE e a proposta do Governo (embora quanto a este corra o risco de estar a ser demasiado benévolo como veremos à frente), que se inspiram numa perspectiva de maior equidade e justiça fiscais.
Em segundo lugar, os projectos distinguem-se pela sua abrangência. De um lado os projectos do PSD, do CDS e do BE, com propostas de natureza muito pontual, eventualmente subsidiárias da ideia de que não é necessária uma reforma fiscal ampla, mas tão só algumas medidas mais ou menos desgarradas, nalguns casos moralizantes. De outro lado o projecto do PCP e a proposta do Governo que se inserem na perspectiva de uma reforma fiscal de maior fôlego, alterando substancialmente o regime de tributação dos rendimentos.
Daqui decorre que o processo de reforma que agora iniciamos terá, necessariamente, de assentar basicamente no nosso projecto de lei e na proposta do Governo.
Por isso que a estes projectos dediquemos agora a nossa atenção.
O conteúdo essencial do projecto de lei do PCP pode sintetizar-se da seguinte forma: tem por objectivo fundamental promover a justiça fiscal e acabar com os favores fiscais ao capital e aos altos rendimentos. Por isso alarga as bases de tributação, fazendo pagar impostos a quem tem capacidade contributiva e deve pagar, mas actualmente não paga. Combate frontalmente as principais fontes da fraude e da evasão fiscal que campeiam nas empresas e nos detentores de mais elevados rendimentos, incluindo a derrogação do sigilo bancário para efeitos fiscais. Acaba com o regime de favor actualmente concedido aos bancos, às seguradoras, às mais-valias em acções e outros valores mobiliários, aos dividendos, e elimina os benefícios fiscais ilegitimamente concedidos a rendimentos e operações financeiras. Finalmente, quer através da alteração da tabela de taxas do IRS, quer pela via do aumento da dedução específica pelos rendimentos do trabalho (sintomaticamente é o único projecto que o faz, sendo certa que esta é uma medida essencial para desagravar os rendimentos mais baixos!), promove uma acentuada diminuição da carga fiscal sobre os rendimentos dos trabalhadores e das suas famílias.
Em relação à proposta do Governo, não temos dúvidas em afirmar que, na generalidade, representa um avanço face à situação actual, na via de maior equidade e justiça fiscais, do alargamento da base tributária e de combate à evasão fiscal. Mas em alguns aspectos esses avanços são tímidos. E noutros, que reputamos de muito importantes, não há avanço nenhum!
Julgamos necessário que o Governo vá mais longe na determinação e vontade política em atacar as fontes da injustiça fiscal.
Entendo que na actual fase do processo, o que mais pode ajudar a concretização de uma boa reforma fiscal é sermos claros e directos.
Há múltiplas propostas do Governo que registamos positivamente, que convergem com muitas das soluções por nós apresentadas ou têm o nosso acordo de princípio, ainda que em alguns casos necessitando de discussão e aperfeiçoamentos em sede de especialidade. Sobre essas não vale a pena perdermos tempo. A título exemplificativo, refiro as matérias relativas aos preços de transferência, às medidas anti-abuso no domínio da subcapitalização das empresas, ao regime simplificado de tributação, às medidas tendentes a limitar as possibilidades de utilização indevida das zonas francas, a inversão do ónus da prova e o recurso à avaliação indirecta dos rendimentos em determinadas situações. Ou, ainda, as relativas às remunerações acessórias e as pagas em espécie, a mais consistente definição dos rendimentos de capitais, a abertura à tributação separada dos cônjuges e à tributação conjunta das uniões de facto, a introdução do conceito de residente fiscal nas Regiões Autónomas ou a criação de um processo especial, da competência dos tribunais tributários, a ser tramitado como processo urgente.
Mas não são os muitos pontos de convergência que aqui e agora importa enfatizar.
Porque entendemos que é tempo de avançar na concretização, porque estamos firme e seriamente empenhados em conseguir uma reforma fiscal digna desse nome, julgo que o que mais importa neste momento é clarificar desde já as nossas principais dúvidas e as divergências mais significativas resultantes da compaginação do projecto do PCP com a proposta do Governo.
Em relação às dúvidas quero explicitar desde já as seguintes.
A junção, em IRS, das actuais categorias B, C e D numa única categoria de rendimentos empresariais, não nos suscita objecção de princípio, pois parece linear que deve haver tratamento fiscal igual para rendimentos de idêntica natureza. Importa, porém ter presente que na actual categoria B se integram muitos trabalhadores que não exercem, de facto, uma actividade profissional independente sob a forma empresarial, pelo que, em nosso entender, a tributação dos falsos "recibos verdes" desejavelmente deverá ser equiparada à tributação dos trabalhadores por conta de outrem.
No que concerne às mais-valias de partes sociais e de outros valores mobiliários, o nosso entendimento é o de que o regime de tributação deve integrar-se no regime geral, visando a globalidade da declaração de rendimentos do contribuinte e a submissão da totalidade dos rendimentos à tabela de taxas única. Poderá ser tida em consideração a natureza não recorrente que estes rendimentos tendem a assumir. Mas importa que em sede de especialidade analisemos soluções de menor favor fiscal que o proposto pelo Governo.
Porque do nosso ponto de vista se apresentam como tímidas as propostas do Governo, igualmente teremos de procurar uma solução mais adequada para a derrogação do sigilo bancário (designadamente no que concerne a previsão de recurso com efeitos suspensivos) e para a tributação do sistema bancário, no que respeita ao pretendido (pelo Governo) período de transição de "meio favor fiscal" durante dois anos para as provisões relativas aos riscos gerais de crédito como quanto a outras componentes expressamente previstas no projecto de lei do PCP.
Tal como consideramos necessário analisar em sede de especialidade as matérias relativas à chamada dupla tributação económica, à fixação de um indexante para o limite máximo de juros de suprimentos considerados como custos para efeitos fiscais ( de forma a evitar que sob essa capa sejam feitas efectivas distribuições de dividendos), à limitação do reporte de prejuízos a rendimentos das mesma natureza e à introdução do princípio da presunção de rendimentos para o exercício de cargos de administração e de gestão em empresas e instituições com fins lucrativos.
Em relação às divergências mais notórias entre o projecto de lei do PCP e a proposta do Governo, considero imprescindível explicitá-las de forma muito clara.
E ninguém, a começar pelo Governo, pode tentar responder-nos com a acusação de qualquer fundamentalismo por parte do PCP. Nem sequer com o argumento de se tratar de propostas de cariz excessivamente ideológico.
Fundamentalmente por duas ordens de razão.
Por um lado, porque estas matérias estão na essência das mais gritantes injustiça fiscal e política de favores fiscais que existem no sistema em vigor.
Por outro lado, porque as nossas propostas nessas matérias são sufragadas quer pelo Relatório da Comissão de Desenvolvimento da Reforma Fiscal (que o próprio Governo definiu como devendo ser a espinha dorsal da reforma), quer pelo Relatório Sobre a Reavaliação dos Benefícios Fiscais, quer pelo Relatório da Comissão de Revisão do IRS.
Se há algumas propostas do Governo em relação às quais o Governo declaradamente não tem a certeza de serem as melhores, quero afirmar-lhe que, em relação a estas, o PCP tem a certeza de que as suas próprias propostas são as melhores. Porque são elas que prosseguem a unidade do imposto, a equidade e a justiça fiscal.
Essas divergências de fundo são três.
A primeira refere-se à necessidade, que sustentamos, do englobamento pleno dos rendimentos provenientes de dividendos de acções, bem como dos juros de obrigações e de outros instrumentos financeiros similares. Só assim é possível concretizar o princípio fundamental de que cada um deve ser tributado de acordo com a sua capacidade contributiva. E se em algumas situações, este princípio pode colidir com o objectivo do princípio da simplicidade (como é o caso dos juros dos depósitos), é para nós inequívoco que, sem prejuízo da procura do equilíbrio possível, deve prevalecer o objectivo primeiro da igualdade e da justiça. (Tenha-se presente, aliás, que os reformados são fortemente lesados pela taxa liberatória que incide sobre os magros juros que recebem.)
A segunda divergência reporta-se aos benefícios fiscais de que actualmente gozam aplicações financeiras muito concretas. São eles os concedidos aos planos de poupança em acções (que, aliás, o Governo previa eliminar na proposta de autorização legislativa apresentada em Junho passado), aos dividendos de acções cotadas em Bolsa, aos dividendos de acções de empresas reprivatizadas e às aquisições de acções em ofertas públicas de venda realizadas pelo Estado. Para o PCP, e tal como consta do nosso projecto, estes benefícios devem ser revogados. A sua manutenção, como propõe o Governo, viola flagrantemente o princípio da equidade fiscal, e por acréscimo os da eficiência económica e da simplicidade. Não há pois nenhuma razão para que subsistam.
A terceira grande divergência tem a ver com a tabela de escalões e de taxas do IRS. Ou melhor, com o facto de o Governo não apresentar qualquer alteração dessa tabela na sua proposta de reforma dos impostos sobre o rendimento.
O senhor Primeiro-Ministro terá dito que "não podemos ser ingénuos ao ponto de dar aos outros a possibilidade de viabilizarem a reforma fiscal, mas depois chumbarem o Orçamento do Estado".
Manifestamente, esta é a pior maneira de o Governo abordar a reforma fiscal. O senhor Primeiro-Ministro e o seu Governo têm de entender, e assumir sem subterfúgios, que a reforma fiscal vale por si mesma, que é uma reforma urgente e imprescindível para que outras reformas necessárias tenham lugar na sociedade portuguesa. Recusamo-nos a encarar a reforma fiscal, a que o próprio Governo do PS se comprometeu há cinco anos, como um meio instrumental para o Governo fazer passar outras propostas suas, quaisquer que elas sejam.
Mas é, igualmente, o caminho mais armadilhado que o Governo pode escolher para defender a viabilização do seu Orçamento. Porque esta atitude do Governo só pode querer significar a falta de confiança que ele próprio tem nos méritos intrínsecos da proposta de Orçamento do Estado que se prepara para apresentar à Assembleia da República na próxima semana. E se é ele o primeiro a manifestar dúvidas ...
Pela parte do PCP quero ser muito claro: não é com atitudes que, numa linguagem mais rude, legitimamente podem ser encaradas como uma "chantagem" sobre os partidos da oposição, pior, sobre os trabalhadores por conta de outrem que suportam duramente a iniquidade fiscal que campeia em Portugal, que se pode servir o objectivo de uma reforma estruturante como é a reforma fiscal.
A posição do PCP sobre esta matéria é cristalina: para nós, o processo parlamentar da reforma fiscal é totalmente autónomo do processo orçamental, e empenhar-nos-emos para que o primeiro inclua as tabelas do IRS. Posicionamo-nos e votaremos um e outro de acordo com os seus méritos próprios.
No que respeita à reforma dos impostos sobre o rendimento, defenderemos e bater-nos-emos por aquelas nossas propostas que se opõem às do Governo. Sem deixarmos de nos pautar, como sempre, pelo sentido da responsabilidade. Mas com a certeza que temos de que o País necessita e exige uma reforma que, em aspectos importantes, não se fique por remendos e meias soluções ou alguns retoques em excepções e isenções que passem ao lado do essencial, isto é, da coerência e da justiça do sistema fiscal.
Conhecidos que são os projectos do PCP e do Governo, julgo ser possível concretizar agora esta importante reforma. Espero que o Governo a não venha a inviabilizar. A responsabilidade política seria sua, e só sua.
Disse.