Hevia

Hevia
Gaitas para a era electrónica

Palco 25 de Abril - Sábado, 22 h

Poucas vezes tradição e modernidade se combinaram de forma tão feliz. Tambores e didgeridús australianos dão a mão às baterias mais enérgicas. Os ancestrais cantares das mulheres das montanhas da Europa partilham sons com os ritmos frenéticos do fim do milénio. A secular gaita alia-se à magia da electrónica. Tudo isso constitui parte essencial do trabalho com o que o gaiteiro asturiano José Maria Hevia inicia uma trajectória artística, que promete ser intensa, com um álbum onde os seus ancestrais fundem as raízes na mais radiante modernidade. Terra de ninguém é um disco que estava escrito há muitos anos e que nunca se tinha escrito. É a banda sonora de um povo no sopé da montanha e de qualquer rincão do planeta.

De Hevia, nascido em Villaviciosa em1967, só se conhecia até á data um tema de recorte muito tradicional, A procissão, que se incluiu no primeiro volume da antologia Nações celtas (1997). A primeira vez que soprou uma gaita de foles, a gaita, como simplesmente se diz em Espanha, o pequeno Angelillo contava apenas dez anos e deixou toda a sua família contristada. «Então, há que dizê-lo claramente, tocar gaita estava associado ao mais grosseiro homem da região», relembra, agora, divertido. E aponta: «Chamavam-nos A quinta do biberão e não éramos mais de 25 em toda a Astúria. A minha mãe chorou a primeira vez que actuei em público, porque a gaita era um símbolo rural, de romaria, próprio dos bêbados abancados junto à barraca da cidra».

Não corriam bons tempos para a tradição, mas o veneno da música popular havia sido inoculado: «A primeira vez que vi uma gaita, não o esquecerei nunca, tinha quatro anos e ia passeando com o meu avô, mineiro», relata. «Ele era um homem que não tocava nesse momento, mas permanecia abraçado à sua gaita. Essa imagem levou-me a pensar que este instrumento não é só a sua música: eu considero-o a própria representação do povo».

Desde aqueles tempos já remotos, José Ángel e a sua gaita constituíam um binómio indissolúvel. Hevia era inclusive um rapaz aplicado e licenciou-se em Filologia Hispânica («ficaria encantado se algum dia se estudasse filologia asturiana», suspira), mas o seu caminho ia por outros rumos bem diferentes; primeiro, como insaciável aprendiz de gaiteiro, mais tarde afadigando-se em concursos e certames por todo o país; por fim, lançando a semente com a fundação de diferentes escolas de gaitas. Hoje, Hevia pode orgulhar-se do primeiro prémio no Festival Intercéltico de Lorient de 1992 – talvez o encontro mais relevante de todo o calendário celta – e de dirigir meia dúzia de bandas de gaiteiros por toda a Astúria. «Dos 25 que éramos quando biberãos passámos a mais de 3000 gaiteiros na actualidade», conta orgulhoso.

Assentes convenientemente as raízes, gravar um disco próprio constituía um salto qualitativo importante. E Terra de ninguém supõe um passo em frente muito decidido. O seu autor partiu do repertório tradicional asturiano e transformou-o numa linguagem cosmopolita e universal. Sem contemplações nem mais limites que os da própria imaginação. «Os cânticos sampleados dos índios arapahoes venderam milhões de discos em todo o mundo. Porque não pode ser um êxito a toada tradicional, a que cantam os pastores enquanto tratam do gado?», raciocina Hevia.

Assim, os temas da Terra de ninguém sabem pouco de fronteiras. Se a neve, por exemplo, arranca com uma melodia asturiana, introduz elementos do gosto céltico e desemboca no tilintar de um alaúde árabe. Llaciana é uma bela música popular rejuvenescida que entronca na parte de acervo ibérico que a todos nos toca. E o Collectivu Etnográficu Muyeres salpica o disco de umas vozes que, contra todo o prognóstico, colocam Astúrias mesmo no coração do Sahara.

Parágrafo à parte merece um dos grandes achados do disco, esse artifício que nos créditos figura como «gaita electrónica Multimbrica» e que, fazendo gala do seu instinto didáctico, José Ángel define assim: «É para a gaita o que o teclado electrónico é para o piano». Trata-se de uma gaita MIDI que permite ao seu executante imitar o som do violino, da flauta, do acordeão, da sanfona, ou do que calhe, o que multiplica extraordinariamente as possibilidades do instrumento. O invento nasceu nas aulas de gaita de Hevia com um objectivo do mais prosaico: que o aluno pudesse praticar em casa com auscultadores para não incomodar a vizinhança. Agora, quase quatro anos depois, este músico prepara, graças à sua gaita MIDI, aulas em tempo real através da Internet. As fronteiras, uma vez mais, saltam em fanicos.

Entre umas coisas e outras, mais do que um purista levantará as mãos à cabeça, mas Hevia confessa-se muito pouco preocupado com isso. «O purismo é muito necessário, mas penso que deve ser compatível com a investigação com vista ao futuro», assegura. E conclui: «Não me importa que as gaitas do século XXI tenham uma forma um pouco diferente das actuais. O que não quero é que terminem nas vitrinas dos museus. Também houve um momento em que no instrumento se introduziu o tubo, e não creio que ao seu inventor se deva tratar como a um herege».