Quando se percorre uma biblioteca de música encontram-se muitas Histórias da Música. Ali se narra a evolução das formas pelas quais o homem foi organizando os sons que, da voz aos instrumentos e de uma maneira cada vez mais elaborada, foi aprendendo a produzir. A partir especialmente do século passado, estas Histórias da Música começaram a entrelaçar-se aqui e ali com a História dos homens, a narrativa e o estudo da vida das sociedades. Relacionaram-se as manifestações musicais com as condições sociais e económicas em que surgiram, relacionou-se a evolução sonora com outras manifestações de cultura e com a evolução técnica que permitiu inventar e melhorar instrumentos e métodos.
Mas as Histórias da Música continuaram a ser sobretudo isso — a história das próprias manifestações musicais em si próprias, de uma linguagem que pôde ultrapassar o seu carácter essencialmente efémero (a música, de facto, só existe naquele fugidio instante em que é produzida) no último milénio quando, primeiro, foi criando e aperfeiçoando notações que fixavam as notas na escrita e, há um século, se tornou possível o registo fonográfico.

Entretanto, ao lado desta música, existia uma outra a que intermináveis polémicas ainda não decidiram como definitivamente chamar: folclórica, ligeira, popular, tradicional. No fundo, o que essencialmente a caracteriza é o facto de lançar as suas raízes no povo, ao nível da criação, mas sobretudo ao nível do consumo.
Na sua expressão rural, folclórica, anónima, aceita-se essa abstracção que é um povo criador colectivo, afinal uma sucessão de criadores individuais que anonimamente aperfeiçoaram temas ao longo do tempo, correspondendo ao gosto de quantos os ouviam, tocavam ou cantavam; na sua expressão urbana, comercial, surgida no anonimato citadino tanto quanto na organização da cidade, gerou autores, intérpretes, salas, públicos.
Esta música do povo tem evidentemente, também ela, uma História. Mas com ela sucede um fenómeno particular: é que a sua própria essência, tanto quanto os sons, é — a própria História! Surgida e consumida por quem vivia e vive fundamentalmente um quotidiano de trabalho onde o passado é limitada memória oral e o futuro desconhecido temor ou esperança, esta música tem no quotidiano a sua razão de ser. Vive dele e para ele, conta-o substituindo a linguagem escrita da cultura dos poderosos, recorda-o desempenhando em adros ou lareiras o papel de crónicas e nobiliários das bibliotecas, é parte e pretexto da festa e da alegria, tanto quanto acompanha a morte e o trabalho.

Esta música, estes sons de dia a dia popular, sempre existiram nos vaudevilles ou nas canções de escárnio e mal dizer medievais, mas a sua capacidade de darem protagonização e serem elementos constitutivos da própria realidade popular revelou-os perigosos para os poderes. O catolicismo romano dominante remeteu a música para a sacralização da liturgia, impondo-lhe cânones tão estritos quanto os da própria doutrina. Foi preciso esperar séculos para que ela deles se libertasse.
Começou a fazê-lo ainda dentro do cristianismo quando a reforma luterana a libertou para a integrar na liturgia colectiva, transformando os fieis em coro participante e para eles compondo e escrevendo.
Mas seria há duzentos anos que, sob as pedras da Bastilha, ficava também a condenação da música profana e popular e sobre elas ganhava maior amplitude a sonoridade que contava e cantava uma liberdade conquistada e uma felicidade anunciada, mas que o futuro iria bem revelar mais dura e longínqua.
Se o hino Ein Fest Burg Ist Unser Got de Martinho Lutero (que os escravos negros do Sul dos Estados Unidos transformariam no espiritual A Mighty Fortress Is Our God!) é a pedra fundadora do coral popular que chega até hoje, La Carmagnole e Ça Ira constituem os marcos da canção popular que, até hoje também, acompanha dia a dia a História do mundo e dos povos.

Entre estas canções erguem-se as que os povos fizeram acompanhar os seus esforços para mudar a História. As que fizeram da música popular uma espécie de alta montanha, de minarete de muezzin¸ torre de campanário, atalaia cimeira de onde se lançam gritos de aviso, se divulga a experiência dos revezes, se contam heroísmos, se bradam palavras de estímulo e esperança.
Essas canções estiveram nas barricadas das revoluções de 1848 e da Comuna, nos underground railroad e no fim da escravatura americana, nas ruas de Berlim contra as SA hitlerianas, no Jarama com as Brigadas Internacionais, nas greves de todas as fábricas e todas as minas, nas veredas guerrilheiras de serras e reformas agrárias, no combate pela paz e, em Portugal, depois de se terem alistado na luta de meio século, deram sinal ao dia da liberdade.