Apreciação Parlamentar do Decreto Lei
381/97 que cria um Novo Regulamento Consular
Intervenção do deputado José Calçada
20 de Fevereiro de 1998
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados
Desde 1987 que o PCP tinha vindo a reclamar a existência de um novo regulamento
consular, e fomos mesmo os primeiros a fazê-lo. O regulamento consular até há
pouco vigente, no seu núcleo essencial, e para além de legislação posterior
pontual e dispersa, data de 1920, pelo que, se algum respeito ainda nos merecia,
seria o respeito a que nos devemos sentir obrigados para com os anciãos... Não
é, esta, uma razão bastante em termos de lei, e nomeadamente em função da sua
inadequação à realidade. O Mundo mudou muito desde a segunda década deste século,
e quer a realidade consular, quer a da emigração, pouco têm a ver com as actuais.
O contexto sociológico e político é radicalmente diverso, e radicalmente diversos
os caminhos geográficos da emigração. Tudo obrigava à feitura do novo regulamento
consular.
E, por isso, tudo obrigava que ele fosse construído com a maior participação
possível, particularmente a das entidades obrigatoriamente competentes nesta
matéria. Nenhuma pretensa urgência legitima o carácter confidencial e quase
secreto com que o Governo elaborou esta Lei. Pode até dizer-se que quem aguardou
77 anos pela feitura de um novo regulamento consular, pode perfeitamente aguardar
mais uns meses ou mesmo mais um ano... Ou será que o "diálogo" não
vale isso?... Pelos vistos para o Governo e para o Senhor Secretário de Estado
das Comunidades, não vale mesmo! Como claramente decorre da substância da Lei,
muito do seu articulado tem a ver directamente ou indirectamente com o estatuto
profissional dos trabalhadores das missões diplomáticas e consulados portugueses
no estrangeiro. O Senhor Secretário de Estado José Lello não sentiu no entanto,
nem ao de leve, a necessidade ou a obrigação legal e constitucional de ouvir
a respectiva organização sindical. Não satisfeito com este claro espírito de
abertura, o Senhor Secretário de Estado reforçou-o mandando às urtigas, com
a mesma ligeireza, o Conselho das Comunidades Portuguesas, o qual constitui,
nos termos legais, um "órgão consultivo do Governo para as políticas relativas
à emigração e às comunidades portuguesas" Em termos de cumprimento da lei,
ou em termos de prática do diálogo - estamos conversados!
Mas não se trata apenas da estranha metodologia de trabalho que conduziu a este
Decreto Lei, e que não se reduz a questões de mero formalismo, antes configura
deficiências de subtância. O articulado do regulamento é abundante em generalidades
e lugares comuns bem pouco típicos da linguagem e dos conceitos que devem enformar
os dispositivos legais, e o seu preâmbulo é, a este respeito, perfeitamente
exemplar, ou quase caricatural. Diz-se, por exemplo, que ele se firma em regras
"flexiveis e elásticas" - adjectivação que, francamente, mais parece
inspirada em algum folheto publicitário de "lingerie" -, "porque
se quer proteger o novo regulamento consular da turbulência legislativa dos
nossos dias", o que mostra que os seus autores têm a saudável ambição de
que ele dure pelo menos outros 77 anos...
No artigo 19º diz-se que "poderá ser constituída junto de cada posto consular
de carreira uma comissão de acção social e cultural" e no artigo 20º definem-se
as respectivas funções. Quando se diz que "poderá ser constituída",
não ficam nada claros os critérios que condicionam uma tão grande latitude de
decisão: e quanto às funções atribuídas à comissão, são tal modo latas e dispersas
que ou colidem, ou se sobrepõem, ou duplicam, as do Instituto Camões, ou as
das Coordenações de Ensino, ou mesmo as do ICEP... Em contraste com estas funções
"por excesso", torna-se ainda mais evidente, e inaceitável, a falta
de uma clara função de apoio jurídico às comunidades, sistematicamente exigida
pelos nossos emigrantes.
Mas o que de todo este novo regulamento consular não podia deixar de prever
era a possibilidade da existência de mais uns lugarzinhos para os amigos - e
aqui o regulamento não os desaponta! À revelia de qualquer carreira dos trabalhadores
consulares, aí estão os artigos 21º e 77º permitindo o regabofe da nomeação
dos assessores consulares "por livre escolha ministerial". Ao diálogo
que já se viu o que deu, acrescenta-se assim a transparência. Bem, não há quaisquer
dúvidas de que é perfeitamente transparente o que se pretende com estas nomeações.
Só que se torna assim muito frágil a fronteira, que deveria ser nítida, entre,
por um lado, esta "transparência" e, por outro, o despudor e a governamentalização.