Ensino superior: Oito orientações para uma nova política
Conferência de Imprensa do PCP com a
participação de Edgar Correia
Comissão Nacional do Ensino Superior do PCP
13 de Março de 1997
O ensino superior tem sido justamente considerado como um sector estratégico no conjunto do sistema educativo. E o seu contributo para o desenvolvimento do sistema científico e tecnológico nacional apontado como absolutamente determinante.
Quase dois anos lectivos decorridos desde a tomada de posse do actual Governo, o balanço da acção do Ministério da Educação em relação aos problemas do ensino superior é, porém, desolador.
Enquanto partido da oposição, o PS acompanhou um diagnóstico muito crítico do panorama existente no ensino superior. E assumiu compromissos em relação à satisfação das principais reclamações que as instituições escolares e os seus protagonistas - os professores, os estudantes, os funcionários não docentes - de há muito vinham levantando.
Mantêm-se entretanto inalterados os principais problemas do sector - quer ao nível dos factores de qualidade do ensino e das condições para a investigação científica, quer dos factores democratizadores do acesso e do sucesso escolares. O montante do financiamento e os critérios e orientações para a sua atribuição continuam a constituir um grave constrangimento. Não teve lugar uma significativa expansão do ensino superior público nem foi estabelecido qualquer prazo em relação à eliminação do sistema de numerus clausus. Continua a ser favorecida a expansão do ensino privado, em grande parte sem qualquer qualidade, e não foram empreendidas medidas correctivas da situação herdada dos anteriores governos. E estão anunciadas, em relação ao futuro próximo, orientações e medidas de inspiração neo-liberal que, no essencial, representam a continuidade das políticas do PSD que conduziram o ensino superior à presente situação.
Na política do Governo em relação ao ensino superior são de destacar, em particular, os seguintes pontos:
Financiamento: manutenção da política dos anteriores governos de sub-financiamento do ensino público e de abusiva interferência no exercício da autonomia das instituições através dos mecanismos do financiamento; propósito de aumento das propinas e de alargamento significativo do financiamento público do ensino privado; em muitos casos, preço exorbitante, quando não financiado, das propinas dos cursos de pós-graduação.
Autonomia: proclamação verbal do seu respeito mas na prática prosseguimento e acentuação de mecanismos que limitam fortemente o papel dos estabelecimentos públicos de ensino superior (nomeadamente o financiamento das despesas de funcionamento através de uma fórmula, parâmetros e racios que promovem o economicismo, o conceito administrativo de "curso elegível", o financiamento atribuído a pessoas e desligado das instituições que integram).
Alterações à Lei de Bases do Sistema Educativo: iniciativa legislativa do Governo, não antecedida por qualquer debate e por isso fomentadora de divisões entre politécnicos e universidades, visando precipitar modificações conducentes à elitização do acesso a escolas do ensino superior universitário e ao encurtamento e embaratecimento economicistas, nomeadamente da formação inicial de professores.
Acesso ao ensino superior: o Ministério da Educação manteve as orientações dos anteriores governos do PSD; levou à prática o despacho de Couto dos Santos que agravou a selectividade da avaliação dos alunos do secundário e institucionalizou a realização de exames nacionais para a finalização desse grau de ensino; prosseguiu uma política de vagas no ensino superior que privilegia a oferta das escolas privadas, e estabeleceu um sistema de acesso ao superior particularmente injusto e mistificatório (modo de aplicação da "nota mínima").
Ensino privado: o saldo da acção governativa neste domínio é nulo, apesar dos compromissos pré-eleitorais do PS em relação à correcção dos problemas de falta de qualidade e de desrespeito por normas legais que se verificam em muitas escolas privadas e apesar, também, do despacho exarado pelo actual Ministro da Educação determinando a realização de inspecções rigorosas a todas as instituições deste sector; tem sido prosseguida uma política de liberalização da abertura de novas escolas e de novos cursos, sem garantias mínimas de qualidade do ensino e de credibilidade dos seus diplomas.
O PCP tem prosseguido o acompanhamento e a apreciação dos problemas do ensino superior. Duas linhas fundamentais condensam a postura política e ideológica dos comunistas: a crítica das orientações neo-liberais que têm vindo a conduzir à crescente desresponsabilização do Estado e à mercantilização dos saberes e da formação, com a correspondente diminuição do peso e a desvalorização do ensino público; e a elaboração e proposição de uma nova política educativa para o sector, consubstanciada num detalhado Programa de Desenvolvimento do Ensino Superior, bem como em diversas iniciativas legislativas e outras tomadas de posição. Remetendo para o que apresenta nesse Programa, que mantém plena actualidade, a Comissão Nacional do Ensino Superior do PCP sublinha a necessidade de adopção de um conjunto de políticas, necessariamente interligadas, assentes numa visão global do sistema prospectiva e coerente.
Neste enquadramento sublinha, entre as linhas de política democrática para o ensino superior, as seguintes orientações:
1ª - A integração num único sistema de ensino superior de todas as universidades e escolas politécnicas, com respeito pela identidade, especificidade e criatividade de cada instituição.
No quadro desse sistema único de ensino superior deverá haver lugar para soluções organizativas diferenciadas, conteúdos científicos e modelos pedagógicos muito diversos, modalidades distintas e formação, garantido que seja o respeito por regras gerais, que assegurem a qualificação profissional e a comparabilidade académica a nível nacional e internacional. Deverá ser consagrado um único grau de formação inicial de nível superior, independentemente da natureza da instituição que o confere, salvaguardados limiares universalmente aplicáveis. A atribuição de graus académicos dos diferentes níveis por qualquer escola do ensino superior, será apenas determinada pelos currículos, duração dos cursos, qualidade do corpo docente e avaliação do ensino. Os percursos escolares serão flexibilizados. Serão desenvolvidas articulações de âmbito geral (estruturas inter-institucionais de funcionamento democrático) ou entre escolas de natureza idêntica (escolas de engenharia, de formação de professores, etc.). E o sistema de ensino superior deverá ser territorializado, com funcionamento em rede de base regional que fomente processos de cooperação e de complementaridade entre instituições.
Será ainda estabelecida uma metodologia e critérios de base objectiva que regulem a fase de passagem do actual sistema binário (universitário e politécnico) para o futuro sistema único de ensino superior.
2ª - A defesa e o aperfeiçoamento da autonomia do ensino superior consagrada na Constituição e nas leis nºs. 108/88 e 54/90.
Autonomia do ensino público entendida: a) como capacidade do sistema e dos estabelecimentos que o integram, de definição e de concretização de objectivos próprios, no quadro das orientações nacionais de política educativa democrática; b) como garante da independência académica, da plena liberdade de aprender e de ensinar e da livre criação intelectual, científica e artística. E assente num quadro de financiamento público, suficiente e previsível, e no desenvolvimento de processos de auto-regulação democrática, a nível interno e na sua relação com a sociedade.
Reforço e aperfeiçoamento dos processos de direcção e gestão democrática nas instituições públicas de ensino superior e extensão aos estabelecimentos privados da intervenção democrática do corpo docente, discente e dos funcionários não docentes, com responsabilidades diferenciadas, nos domínios científico, pedagógico, administrativo, académico e disciplinar.
3ª - A aprovação de uma lei quadro do financiamento e da gestão orçamental e financeira do ensino superior público.
Consagração da responsabilização do Estado em relação ao financiamento integral do sistema de ensino superior público de modo a concretizar a progressiva gratuitidade estabelecida pela Constituição; a expandir o número de vagas e eliminar o sistema de restrições quantitativas globais no acesso (numerus clausus); a possibilitar a significativa elevação da qualidade do ensino; a abranger a generalidade dos domínios do conhecimento; a alargar as condições de frequência do ensino superior por trabalhadores - estudantes; a corresponder à relevância dos vários cursos baseada na satisfação das necessidades sociais e das aspirações pessoais; e a cobrir equilibradamente o território nacional.
Estabelecimento, para cada instituição pública, de orçamentos suficientes e estáveis, em base plurianual, assentes em critérios objectivos que cubram as componentes pedagógica, científica e cultural, compreendendo quer uma componente de funcionamento quer uma componente de investimento associada aos planos de desenvolvimento estratégico a cinco anos a acordar com o Ministério da Educação. Quanto ao orçamento de funcionamento de cada estabelecimento de ensino, ele deve ser ponderado de acordo com os seguintes parâmetros: número de vagas anualmente preenchidas; número de alunos anualmente diplomados; área científica dos cursos de bacharelato e licenciatura e duração dos respectivos planos curriculares; oferta de estágios curriculares ou profissionais ou de outras acções terminais equivalentes; número de alunos inscritos em cursos de pós-graduação, de mestrado e em doutoramento, tendo em conta as respectivas áreas científicas; número e qualificação de docentes vinculados; número de docentes vinculados em formação; número e qualificação de investigadores vinculados e em formação; valor do património móvel e imóvel afecto ao ensino e à investigação. Fixação de quadros de docentes, investigadores e outros funcionários com dimensões adequadas e gestão flexível.
Rejeição das propinas como forma de financiamento do ensino público e firme oposição ao seu aumento. A prestação de serviços por parte dos estabelecimentos públicos deve ser considerada como fonte supletiva de receitas. O financiamento por concurso de programas específicos deverá ser instrumento apenas utilizado para a prossecução de políticas governamentais cujo objectivo extravase as competências naturais e estatutárias do sistema de ensino superior e nunca como forma aberrante do seu financiamento corrente.
4ª - O prosseguimento e generalização dos processos de avaliação e acompanhamento das instituições de ensino superior.
Aprofundamento dos objectivos da avaliação e do acompanhamento do ensino superior, designadamente: promoção e garantia da qualidade do ensino superior e o seu ajustamento às necessidades de desenvolvimento do país; análise das causas do insucesso escolar em particular nos primeiros anos; promoção do sucesso escolar e da adequação profissional; promoção do auto-conhecimento e do conhecimento recíproco dos estabelecimentos de ensino superior; contribuição para a valorização e aperfeiçoamento do trabalho dos docentes, investigadores e outro pessoal em todas as vertentes do ensino, da investigação, da prestação de serviços; criação de instrumentos e disponibilização de informações e estudos que viabilizem a programação objectiva da política nacional do ensino superior.
Apreciação e prosseguimento dos processos de avaliação já realizados nas universidades públicas, com aferição de critérios e metodologias utilizados.
Prosseguimento do processo de avaliação no ensino politécnico público e generalização a todo o ensino privado da avaliação e acompanhamento das respectivas escolas.
Defende-se um sistema de avaliação comum a todo o ensino superior, independente face ao governo e a quaisquer grupos de interesses particulares e que dê plenas garantias de objectividade, de rigor e de isenção das suas apreciações.
5ª - Um novo e mais justo sistema de acesso ao ensino superior.
A finalização e a classificação do ensino secundário não deve depender no futuro de exames nacionais, mas apenas dos processos e resultados da avaliação interna conduzidos nas próprias escolas. O numerus clausus, no sentido de restrição quantitativa, de carácter global, no acesso ao ensino superior público, deve ser eliminado no prazo máximo de três anos lectivos. O acesso ao ensino superior deve ser realizado no preciso quadro actualmente definido pela Lei de Bases do Sistema Educativo: exigência de habilitação com curso secundário, ou equivalente, cumulativamente com prova de capacidade para a frequência do ensino superior, devendo a prova ou provas de avaliação dessa capacidade ter âmbito nacional e ser específicas para cada curso ou grupo de cursos afins. Os júris para a elaboração das provas específicas devem integrar professores do ensino secundário e do ensino superior, sendo garantida a adequação dessas provas aos programas efectivamente leccionados no ensino secundário. A nota de candidatura aos estabelecimentos públicos e privados do ensino superior deverá ser calculada: 50% correspondente à média das classificações obtidas na prova ou provas nacionais de acesso (específicas) e 50% correspondente à média das classificações obtidas nos 10º, 11º e 12º ano de escolaridade. Para minorar os efeitos da eventual contaminação da nota da candidatura ao superior com classificações do ensino secundário anormalmente baixas ou elevadas, consoante os estabelecimentos frequentados pelos alunos, deverá proceder-se à correcção estatística das classificações do ensino secundário, que assegure uma maior justiça relativa, com base na comparação destas com as obtidas nas provas nacionais de acesso (específicas).
Enquanto estiver em vigor o sistema actual, baseado em exames nacionais para finalização do ensino secundário e acesso ao ensino superior, o Ministério da Educação deve pelo menos assegurar que para diminuir a contingência dos exames, cada exame nacional tenha duas oportunidades de realização cumulativas, sendo tomada em consideração a nota mais elevada obtida pelo aluno, no caso de ter optado por comparecer nas duas oportunidades. E que os alunos deverão ser distribuídos aleatoriamente, em princípio por concelho, pelas salas, de forma a garantir condições de igualdade na realização dos respectivos exames.
6ª - Uma significativa elevação e alargamento da acção social escolar.
A acção social no ensino superior deve comportar duas formas distintas e complementares de apoios: apoios gerais a todos os estudantes, decorrentes da função social do ensino superior, nos domínios da alimentação, assistência médica e medicamentosa, apoio para transportes, elementos de estudo e material escolar, informações e procuradoria, entre outros; e discriminações positivas traduzidas na atribuição de bolsas de estudo e na concessão de alojamento, destinadas a viabilizar a frequência do ensino superior por parte de quantos manifestem capacidade para tal mas não disponham dos necessários recursos económicos, assegurando assim a expansão do sistema e uma mais efectiva igualdade de oportunidades no acesso e frequência dos diversos graus do ensino superior. A acção social escolar deve ser extensiva ao ensino superior particular e cooperativo enquanto se mantiver o regime de restrições quantitativas globais no acesso ao ensino superior público (numerus clausus). O número de bolsas de estudo para estudantes, como instrumento de suprimento de carências sócio-económicas e estímulo, deverá ser largamente aumentado e o seu montante elevado para possibilitar a efectiva satisfação das necessidades da população estudantil.
Deve ser assegurada a legítima representação dos estudantes nos órgãos de decisão da acção social, designadamente nos seus conselhos administrativos. Os órgãos de competência pedagógica dos estabelecimentos de ensino devem também poder contribuir para a orientação da acção social, no âmbito das respectivas instituições.
Devem ser reactivados os serviços médico-sociais e integrada a assistência médica e medicamentosa no Serviço Nacional de Saúde.
O financiamento da acção social escolar deve ser objecto de legislação específica, distinta da que estabeleça o financiamento das instituições públicas do ensino superior. Rejeita-se em absoluto que a possibilidade de contracção de empréstimos bancários por parte de estudantes seja considerada matéria do domínio da acção social escolar.
7ª - Defender a qualidade e os direitos educativos dos alunos do ensino privado.
O reconhecimento da legitimidade da existência de instituições privadas de ensino superior, porque assenta no respeito pelos princípios constitucionais e legais que regem o sector educativo, não autoriza uma política oficial de permissividade face a situações de falta de qualidade e de cedência a lobbies de interesses.
Devem ser tornados públicos os relatórios das inspecções realizadas em 1996 e das subsequentes medidas determinadas pelo Ministério da Educação. O lançamento de um processo credível de avaliação do ensino privado deve ser assumido como imediata prioridade. No caso de escolas em que se verifique um grave e continuado incumprimento das disposições legais vigentes e a qualidade do ensino ministrado e a credibilidade dos diplomas conferidos se encontrem seriamente afectados, deve ser considerado o seu encerramento, antecedido da transferência dos respectivos estudantes para escolas do ensino público, com equivalências e planos de estudo a aprovar pelos órgãos científicos competentes, e com assunção pelo Estado da responsabilidade de criar condições para a finalização do percurso escolar dos alunos.
As acumulações de serviço docente entre ensino público e ensino privado devem limitar-se às situações abrangidas por protocolos públicos de cooperação entre instituições, fixando-se e fiscalizando-se de forma efectiva o número limite máximo por semana de horas lectivas ou ocupadas com outras actividades.
Deverão ser fixadas regras mínimas comuns ao ensino público e ao ensino privado para a contratação de docentes e para a respectiva carreira docente.
8ª - Dignificação e valorização das carreiras docentes
A política em relação às carreiras docentes e aos respectivos estatutos remuneratórios constitui um instrumento muito importante para a promoção da qualidade do ensino superior, pois dela dependem, no essencial, as qualificações do corpo docente e a sua adequação às necessidades do ensino e da investigação; a intensidade da dedicação dos docentes às suas instituições e os incentivos à melhoria do seu desempenho; bem como o grau de independência com que trabalham e com que intervêm na vida das escolas e na procura de soluções para os problemas do país.
Assim, é necessário concretizar a revalorização salarial das carreiras docentes, de forma a torná-las mais atractivas para os mais qualificados. Devem ser mantidas ou alargadas as condições para a obtenção dos graus académicos ou para a preparação de provas, tanto no universitário como no politécnico. Deve ser atribuído vínculo estável à função pública aos docentes, após um período inicial máximo de 3 anos de contrato, como forma de aumentar a sua liberdade e independência de criação e de participação. O reconhecimento e a recompensa do mérito individual dos docentes não devem continuar limitados administrativamente pelo congelamento dos quadros, de forma a que sejam mantidos incentivos permanentes à melhoria das suas qualificações e do seu desempenho no ensino, na investigação, na gestão e na ligação à sociedade. Deve ser valorizada a componente pedagógica da actividade dos docentes e devem ser regulamentados de forma adequada os concursos e as provas, de modo a garantir a transparência e a equidade de processos.
A Comissão Nacional do Ensino Superior do PCP, para além de chamar a atenção para a particular importância do projecto de Lei Quadro do Financiamento e Gestão Orçamental e Financeira do Ensino Superior Público apresentado pelo PCP na presente sessão legislativa, anuncia a próxima concretização de outras iniciativas:
Referem-se, designadamente:
- Realização de uma Audição sobre a autonomia do ensino superior e o seu aperfeiçoamento, que terá lugar em 8 de Abril na Assembleia da República.
- Reponderação e apresentação de anteriores posições legislativas do PCP sobre acção social escolar e sobre um novo e mais justo regime de acesso ao ensino superior.
- Promoção de um encontro sobre os problemas do ensino superior no decorrer do terceiro período lectivo.
- Iniciativa em torno dos problemas do ensino privado, com o objectivo de defender a sua qualidade e os direitos educativos dos alunos.