Debate de urgência sobre o regime disciplinar
para o ensino básico e secundário
Intervenção da deputada Luísa Mesquita
08 de Janeiro de 1998
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
O debate de urgência que decorre hoje, motivado por um projecto de diploma do
Governo que veio a público recentemente e que pretende consagrar como objecto
a formulação de um "código de conduta" e a explicitação de
um "estatuto" para os alunos do ensinos básico e secundário,
parece indiciar que o problema fundamental do sistema educativo é a insurreição
disciplinar nas escolas portuguesas - e desta errada constatação até ao desejo
do PP de uma escola repressiva, foi um golpe de mágica.
Se em 1912 Durkeim ainda afirmava que "Toda a educação consiste num esforço
contínuo para impor à criança modos de ver, de pensar e de agir, ...",
hoje, em matéria de educação e pedagogia, o objectivo fundamental é assegurar
às crianças e aos jovens uma formação que tenha em conta a sua personalidade,
o seu futuro e o reforço do respeito dos direitos e das liberdades fundamentais.
No entanto, as medidas adoptadas pelo Governo do PS, têm-se evidenciado de tal
modo inadequadas, que têm permitido a alguns demagogicamente a apresentação
de propostas que põem em causa a defesa da escola pública de qualidade e questionam
o direito à educação e ao ensino em condições de igualdade de oportunidade de
acesso e sucesso escolares.
Quanto ao projecto de diploma, merece-nos dois tipos de reflexão:
O primeiro tem que ver com a metodologia utilizada pelo Ministério da Educação
para a sua apresentação pública, e o segundo com a validade pedagógica do conteúdo.
A senhora Secretária de Estado da Educação e Inovação, confrontada com as críticas
generalizadas ao projecto, considera que não há razões para se preocupar, até
porque, afirma "Em Portugal há pouco hábito de debate".
É esta leitura da sociedade portuguesa que explica o comportamento repetente
do Ministério da Educação.
Dá conhecimento à comunicação social do projecto, determina que o dia 15 constitui
o terminus do debate, e, porque em Portugal não há debate, não considera
importante dar conhecimento do texto aos Sindicatos, às Associações representativas
dos professores, dos pais e encarregados de educação, dos alunos, ou simplesmente
enviar o documento para as escolas, atempadamente.
Mesmo assim, sem tempo para reflectir e debater, é aquilo que se vê.
Imagine-se agora que o Ministério da Educação era mesmo defensor do diálogo,
ouvia os parceiros sociais, avaliava as suas propostas, construía opiniões que
fundamentassem as decisões. Mas não o é, nem o fez, e é reincidente no incumprimento.
Se quanto à discussão pública o Ministério da Educação denunciou, mais uma vez,
a sua incapacidade para cumprir qualquer Pacto Educativo com respeito pelos
interlocutores, no que se refere à substância do diploma, é no mínimo um texto
de literatura surrealista. Identificado o objectivo primeiro, que segundo o
projecto é "construir uma escolar de qualidade, capaz de garantir a todos
o direito à educação e a uma justa e efectiva igualdade de oportunidades no
acesso e sucesso escolares," é inconcebível que, segundo os seus autores,
este objectivo passe sumariamente pela estratégia da normalização de regras
de conduta dos alunos, ou pela punição dos mesmos, quando os normativos disciplinares
não forem cumpridos.
E mesmo a este nível é irrealista.
Afirma-se no preâmbulo que são necessárias "respostas claras consistentes
e sistemáticas da escola, da família e da comunidade." Comecemos pelas
escolas sem biblioteca, sem espaços próprios para os alunos, sem espaços cobertos
ou descobertos para actividades extra-curriculares, sem bar ou sem refeitório
e com salas para 20 alunos onde é necessário colocar 40. E as famílias que se
confrontam diariamente com problemas de desemprego, de habitação, de saúde e
de pobreza. E na comunidade, onde estão as instituições especializadas e apetrechadas
para enfrentar as consequências do que enunciámos ou para resolver as causas.
Onde estão os recursos humanos e materiais acrescidos para responder aos problemas
sociais que são transportados, cada vez com mais intensidade, para o interior
da escola.
A tudo isto responderá o código de conduta explícito no regulamento da escola?
Claro que não, e o Governo e o Ministério da Educação sabem-no.
Vale a pena agora reflectir sobre alguns dos itens que constituem os direitos
dos alunos e que deverão integrar o regulamento. Dos catorze destacamos três,
embora a leitura seja a mesma para os restantes:
Ter acesso a uma educação de qualidade que permita a realização de aprendizagens
bem sucedidas;
- Beneficiar de actividades e medidas de apoio específicas, designadamente no
âmbito de intervenção dos serviços de psicologia e orientação escolar e vocacional;
- Beneficiar de apoios e complementos educativos adequados às suas necessidades
específicas.
Formulam-se os direitos, mas ignoram-se as condições necessárias ao seu exercício
e que são da responsabilidade do Ministério da Educação que não as garante na
grande maioria das escolas.
Seria indispensável que hoje, o Governo desse números sobre os serviços de psicologia
e orientação escolares existentes, sobre os apoios e complementos educativos
e depois os comparasse com a totalidade de alunos e escolas do país.
Então constataríamos que este diploma se dirige a um sistema educativo virtual
que em nada se assemelha ao sistema educativo português.
Se até aqui identificámos a ausência de sentido entre o discurso do diploma
e a realidade do país, a partir do capítulo IV a situação é outra.
Não tendo o Ministério da Educação dúvidas quanto à ausência de condições de
trabalho para alunos e professores na maioria das escolas, e não tendo o Governo
do PS tomado medidas para inverter esta situação, só lhe restou uma alternativa
- enviar para a escola e para a família todas as responsabilidades na resolução
dos problemas, desresponsabilizando-se cada vez da construção de uma escola
pública de qualidade.
É esta a filosofia sempre subjacente às exíguas medidas tomadas pelo Governo
em matéria educativa.
A proposta de lei do ensino pré-escolar retirava ao Governo a responsabilidade
de criar uma rede pública de educação pré-escolar.
A lei do financiamento do ensino superior desresponsabiliza o Governo em matéria
de investimento e cobra o ensino superior aos alunos, através das propinas.
O decreto-lei dos curricula alternativos desresponsabiliza o Governo na obrigatoriedade
de garantir a igualdade de oportunidades e responsabiliza os alunos pelo seu
insucesso, excluindo-os dos curricula regular.
E nesta filosofia se enquadram também as medidas educativas disciplinares.
Não temos tempo para analisar individualmente a validade pedagógica de cada
uma, no entanto, há incorrecções de fundo que é indispensável referir.
A tipificação dos comportamentos em leve, grave e muito grave é uma proposta
inútil.
O mesmo comportamento pode ser diferentemente evidenciado e ter diferentes consequências
e como tal diversa avaliação.
Mas pior ainda que esta inutilidade é a mundividência que enforma as medidas
punitivas, concretamente a transferência de turma, as actividades úteis à comunidade,
a transferência de escola e a expulsão, cujo valor remediativo é no mínimo duvidoso.
Quanto à transferência de turma, estamos convictos de que é impensável a sua
concretização.
Os autores desta medida não pensaram nas consequências que a mesma terá na turma
donde o aluno é excluído, na turma onde o aluno é colocado como punido e por
isso segregado e muito menos no aluno.
Só assim é possível propor esta medida pseudo-educativa e pseudo-disciplinar.
E as actividades úteis à comunidade?
Quem estará disposto a obrigar o aluno a cumprir este castigo porque de castigo
se trata?
As tarefas do conteúdo cívico deverão integrar o currículo e nunca constituírem
punições realizadas em horas extraordinárias não previstas no horário.
Finalmente, quanto à transferência de escola e à expulsão. Nem uma, nem outra
constituem novidade, e, até hoje, não existem estudos que permitam avaliar do
seu benefício pedagógico.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
Consideramos que o único mérito deste projecto de diploma é a reflexão que provocou.
Não é possível reconhecer-lhes outros benefícios.
Ao Ministério da Educação valerá a pena lembrar que de intenções já tínhamos
um "Pacto" cheio e que cada vez mais são urgentes as acções.
Acções que estão fora das possibilidades da escola e que são da responsabilidade
do Governo.
Acções que não ignorem, como o projecto o faz, que a gravidade das situações
vividas nas escolas excede o quadro simplista da indisciplina.
Acções eficazes, capazes de responder às necessidades, aos anseios e às expectativas
da comunidade educativa, e não uma listagem de procedimentos, alguns já em prática
e cuja ineficácia é reconhecida.
Acções pedagógicas que não decorram de uma concepção da educação individualista
e anti-social, que não transformem a escola em espaço de segregação e penitência,
mas acções pedagógicas que façam da escola espaço de socialização, de superação
das desigualdades económicas, sociais e culturais, de solidariedade e de responsabilidade.
Disse.