Declaração Política
Intervenção de Bernardino Soares
22 de Setembro de 2004

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,


A declaração de ontem da Ministra da Educação é o último capítulo da trapalhada em que os Governos PSD/CDS-PP envolveram este processo. Há muitos meses que se vêm acumulando atrasos, erros, compromissos de datas nunca cumpridos, numa instabilidade permanente para dezenas de milhares de professores, para centenas de milhares de estudantes e famílias, que merecem a nossa solidariedade.

A situação criada pelo Governo tornou a abertura do ano lectivo num caos nunca visto depois do 25 de Abril e terá evidentemente consequências em todo o ano lectivo. É mais um grave episódio de uma política de ataque à escola pública, que sofre novamente as consequências da acção de um Governo que a despreza e a quer enfraquecer.

Ontem quase todos reconheceram que a solução adoptada pelo Governo era a única possível, mesmo parecendo absurdo recorrer ao processamento manual nos dias de hoje, por ser o único processo que efectivamente garante a conclusão do concurso.
Mas sendo assim é legítimo perguntar se esta decisão não se impunha há várias semanas atrás, quando já era claro que não eram fiáveis as sucessivas garantias de resolução do problema, que terão sido dadas pela empresa responsável pela elaboração do programa informático.

Um Governo que sabia que se vinham acumulando há meses falhas na solução contratada e que mesmo assim não se certificou da sua validade e nem sequer procurou encontrar alternativas só pode qualificar-se como um Governo irresponsável e incompetente.

Este gravíssimo exemplo do concurso de colocação de professores ilustra bem o desastre das políticas de privatização das funções do Estado. Em vez de garantir a capacidade da estrutura do próprio Ministério da Educação para levar a cabo esta importante tarefa, a obsessão privatizadora levou a que o Governo entregasse o processo a uma empresa privada. Com isso o Governo colocou-se completamente nas mãos desta empresa no que diz respeito ao programa informático, que não tinha capacidade para controlar e em relação ao qual não tinha qualquer alternativa. Está bem à vista o resultado da política do Governo para a administração pública e para as funções do Estado, de que este caso constitui um exemplo paradigmático.

Neste momento importa sem dúvida reunir o mais depressa possível as condições adequadas para a abertura do ano lectivo. Importa ponderar as medidas necessárias para atenuar os efeitos do atraso do seu início em todo o ano lectivo, no percurso escolar dos estudantes e no funcionamento das escolas.
Por isso, ao propormos a realização de um inquérito parlamentar sobre este processo de colocação de professores, afirmamos desde já que ele só deve iniciar-se depois de iniciado de facto o ano lectivo, para que todos os esforços se concentrem até lá neste objectivo.

Mas esta situação exige um profundo apuramento das responsabilidades técnicas e políticas e das razões que conduziram a este inaceitável descalabro.

Quem sinceramente queira apurar até às últimas consequências as responsabilidades neste processo não pode recusar a realização deste inquérito parlamentar. Por isso são preocupantes as declarações do Deputado Guilherme Silva quando diz que é preferível que o Governo tome providências para o apuramento de responsabilidades. Mas a verdade é que não bastam as providências tomadas pelo Governo em causa própria. Diz também que um inquérito parlamentar seria inevitavelmente politizado. Certamente no decurso de um inquérito parlamentar haverá opiniões divergentes e outras convergentes sobre o objecto do inquérito, mas isso faz parte da vida democrática.

Sr. Deputado Guilherme Silva, um inquérito parlamentar é um importante instrumento da fiscalização política do Governo pela Assembleia da República, que é um pilar fundamental do nosso sistema democrático. O Governo pode e deve nomear uma entidade independente para apurar responsabilidades, sobretudo no plano administrativo, mas isso não colide com a realização de um inquérito parlamentar.
Por isso o desafio que aqui deixamos é que todas as bancadas e em especial a maioria parlamentar aceitem democraticamente a realização de um inquérito que é indispensável para encontrar os erros e as responsabilidades neste processo.

Dirijo-me também ao Sr. Presidente da Assembleia para lhe dizer que conhecemos as suas reservas em relação ao actual regime das comissões de inquérito parlamentar, que aliás já tomámos a iniciativa de alterar, mas não podemos aceitar que isso passe a significar qualquer amputação das competências de fiscalização política da Assembleia da República. Isso seria uma grave auto limitação da intervenção do Parlamento, que, em nossa opinião, não pode ter o aval do seu Presidente.

Este inquérito parlamentar impõe-se porque há muitas questões sem resposta: que medidas foram tomadas ou não ao longo destes meses na estrutura do Ministério de forma a garantir o acompanhamento da colocação de professores; como se justifica a entrega do processo de colocação dos professores a uma empresa privada, que garantias havia da sua capacidade, que processo foi utilizado na sua escolha, existem ou não mecanismos sancionatórios para as sucessivas falhas desta empresa que até agora não mereceu qualquer reparo do Governo; depois dos primeiros erros detectados que medidas foram tomadas para os resolver, porque não se concluiu mais cedo pela inoperacionalidade do sistema, etc., etc.

O que não pode vingar é a teoria de que o anterior Governo não pode ser responsabilizado porque já não está em funções e de que o actual também não pode porque só está em funções há dois meses. Ninguém afinal seria responsável. Mas independentemente de responsabilidades mais individualizadas, o que está claro é que este processo é filho da maioria de direita e dos seus dois governos e não pode agora por ela ser enjeitado.

Se o Primeiro-ministro está a pensar resolver o problema da responsabilização política demitindo a actual Ministra da Educação após a conclusão do processo, desde já lhe dizemos que isso não é suficiente. Que independentemente das mais que prováveis responsabilidades da actual equipa do Ministério da Educação por não ter sabido encontrar uma solução para o problema que estava criado, há outros responsáveis. É responsável o Governo anterior pela situação que criou ao escolher este processo, apesar dos sucessivos alertas de diversos agentes educativos. E é responsável o próprio Primeiro-Ministro, que curiosamente ontem desapareceu do mapa e, ao contrário de outros momentos em que até dizia receber telefonemas hora a hora com o ponto da situação, só esteve disponível para falar do que já estava concretizado e ameaçar a Ministra da Educação com a sua responsabilização política se as aulas não abrissem na data marcada. O Primeiro-ministro e o Governo são inteiramente responsáveis por esta situação. Aliás na sua primeira reunião em 19 de Julho o Governo definiu a questão da abertura do ano lectivo como uma das primeiras prioridades. Pelos vistos o Governo nem as suas primeiras prioridades é capaz de concretizar.

Os alunos, os professores, os pais e todos os portugueses têm direito ao escrutínio público e plural que só uma Comissão de Inquérito na Assembleia da República está em condições de garantir. A grave situação a que o país assiste torna a realização deste inquérito parlamentar uma exigência democrática e de transparência a que ninguém se pode furtar.

Disse.