Declaração de voto sobre Lei de Bases da Educação
Intervenção de Luísa Mesquita
20 de Maio de 2004

 

A Proposta de Lei do governo relativamente ao ordenamento jurídico de todo o sistema educativo, aprovada hoje, exclusivamente, com os votos da direita parlamentar, constitui um enorme retrocesso no direito à educação, consagrado constitucionalmente desde Abril de 1976.

Todos os métodos serviram ao PSD e ao CDS/PP para destruir a importância estratégica da escola pública, de qualidade e para todos, como instrumento de política educativa indispensável à democratização da educação e ao desenvolvimento do país.

Todas as propostas apresentadas em sede de revisão constitucional e que a maioria não conseguiu ver aprovadas, foram injectadas agora no âmbito desta discussão, violando de forma despudorada a Constituição da República Portuguesa.

Derrotadas as tentativas de alteração à Constituição, o PSD e o CDS/PP optaram pelo contrabando constitucional.

Enquanto o texto constitucional no seu artigo 75º incumbe ao Estado o dever de criar “Uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”, a maioria cria uma rede nacional e única de ensino público e privado, desresponsabilizando o estado das suas obrigações constitucionais.

Continuando a desrespeitar o texto constitucional, a maioria consagra o financiamento do ensino particular à custa dos dinheiros públicos, reduz os seus deveres de fiscalização a que está obrigado, também pela constituição, pondo em causa o investimento urgente e necessário em todo o ensino público.

E porque a manta orçamental é curta, financia-se o privado e ignoram-se os deveres do Estado.

Por isso, enquanto a Constituição assegura a gratuitidade do ensino básico, que integra, até hoje, três ciclos, correspondentes a nove anos de escolaridade e ainda a progressiva gratuitidade de todos os graus de ensino, o texto aprovado pela maioria reduz a gratuitidade de toda a escolaridade obrigatória a aspectos meramente residuais, como taxas e emolumentos e retoma a proposta apresentada, e derrotada em sede de revisão da Constituição que pretendia “Estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino para os mais carenciados de meios económicos”.

A promoção da assistência e da caridadezinha, de má memória, substituem agora o princípio e o processo de democratização da educação.

Também a gestão democrática das escolas, consagrada no artigo 77º da Constituição que prevê ainda o direito de participação dos professores e dos alunos é aniquilada pela maioria.

O texto aprovado concede ao governo o poder de designação de gestores profissionais, que serão ou não professores, para comandar os agrupamentos de escolas que proliferam pelo país, constituídos, inúmeras vezes, à revelia da legislação em vigor, contrariando os pareceres das autarquias, das escolas e dos pais.

O primado da pedagogia dá lugar aos conselhos de administração das empresas escolares.

Diz a este propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira em edição anotada da Constituição da República Portuguesa que “as estruturas de domínio das escolas (órgãos directivos) devem legitimar-se democraticamente, de forma a acolher o pluralismo de interesses e opções dos elementos constituintes da comunidade escolar.
A gestão democrática das escolas pressupõe que a gestão escolar não compete de todo ou em parte, ao titular do estabelecimento escolar, ou a alguém por ele nomeado, mas sim a órgãos próprios da escola, eleitos pela colectividade escolar, com participação de professores e alunos”.

Também o direito ao ensino como garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar, previsto no artigo 74º da Constituição é gravemente lesado, nomeadamente no que diz respeito às restrições ao ensino especial a que só têm direito as crianças e os jovens com limitações que se manifestem “de modo sistemático e com carácter permanente”, podendo mesmo assim, ficar a cargo de pessoal não docente e não especializado, contrariando todos os compromissos e recomendações internacionais.

Ainda neste âmbito, o texto aprovado transforma a educação pré-escolar em assistência materno-infantil, ignorando a obrigação constitucional de criação de um sistema público de educação pré-escolar, capaz de responder às necessidades da população.

Finalmente é de registar a oportunidade perdida relativamente ao Ensino Superior.

O texto aprovado teve sobretudo um objectivo:
• agravar a discriminação negativa de que tem sido alvo o Ensino Superior Politécnico, impedindo-o de formar o seu corpo docente; impedindo-o de ter acesso a condições idênticas de investigação às existentes nas universidades e reduzindo a sua capacidade de formação de docentes do 1º, 2º e 3º ciclos para, exclusivamente, o 1º e 2º ciclos.

As instituições de Ensino Superior, que a maioria defende, não se distinguem pelos seus objectivos e capacidades de realização mas porque visam um estatuto social diferenciado.

O texto aprovado pelo PSD e CDS/PP defende ainda que o número de vagas disponíveis para o ensino superior passe a depender também de directivas comunitárias ou compromissos internacionais. Assim vai a soberania do país.

Como aqui dissemos recentemente, o governo de coligação e a maioria que o sustenta não pretenderam resolver nenhum problema da Educação mas sim destruir a gestão democrática nas escolas e a escola pública e de qualidade para todos, à revelia da Constituição da República Portuguesa.

Esta maioria absoluta ignorou os textos da oposição, apesar de, hipocritamente, os ter viabilizado na generalidade.

Esta maioria absoluta ignorou as recomendações do Sr. Presidente da República, as justas críticas do Conselho Nacional de Educação e os muitos contributos formulados nos debates realizados por todo o país.

Sem sustentação para as propostas apresentadas, demitindo-se do debate na especialidade, recusando qualquer melhoria, mesmo que cirúrgica, cabe-lhe, agora, e a partir de hoje, defender sozinha um conjunto de malfeitorias que não têm futuro.

Disse.