Debate relevante de interesse político sobre "A Organização Mundial do Comércio"
Intervenção do deputado Agostinho Lopes
24 de Novembro de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O Governo português e a Organização Mundial do Comércio

Se havia questão que merecia um grande debate nacional, susceptível de promover a definição de uma estratégia e objectivos nacionais, conforme os interesses do País, eram as novas negociações da OMC.

Lamentavelmente, o Governo do PS, repetindo também nesta matéria o comportamento do Governo PSD/Cavaco Silva, em 1993, fez sobre as negociações da OMC que se iniciam dentro de dias em Seattle, um pesado muro de silêncio.

O que sabem os cidadãos portugueses destas importantes negociações? Nada ou quase nada!

Qual a estratégia negocial do Governo português? Que objectivos tem defendido nos Conselhos de Ministros da União Europeia onde estas questões têm sido discutidas? Que estudos sobre as consequências para Portugal dos resultados dessas negociações? O que sabem os partidos da oposição sobre as posições do Governo PS relativamente à OMC? Que consulta foi feita às organizações sociais de trabalhadores, empresários, agricultores? Com que informação do Governo estão a intervir os deputados portugueses no Parlamento Europeu?

É claro que há aqui uma dificilmente explicável subtracção ao País, e em particular à Assembleia da República, de informação e de exigência de participação.

É assim ocultado ao povo português o necessário debate sobre questões essenciais para a sua vida hoje e o seu futuro colectivo amanhã, como País independente!

Amanhã virão dizer aos agricultores que a culpa não é do Governo mas das imposições da OMC.

Amanhã virão dizer aos empresários têxteis que os seus problemas resultam das posições que a União Europeia assumiu na OMC.

Amanhã virão dizer aos jovens que a degradação ambiental, um planeta cada vez mais sujo e irreconhecível nada tem a ver com a política do PS, mas com a decisão da OMC.

Amanhã virão dizer aos trabalhadores e ao povo que a falta de emprego e de qualidade de vida é inevitável porque são incontornáveis os impactos da OMC.

Amanhã mandarão para Angola, Moçambique e Guiné mais uns sacos de arroz, umas toneladas de peixe congelado ou uns contentores de medicamentos, cheios de pena do atraso e miséria desses países, nada dizendo sobre as suas responsabilidades numa OMC que pretende retirar a dezenas de países e povos do mundo o direito a terem uma agricultura, uma indústria, serviços públicos de saúde e educação capazes de assegurarem níveis mínimos de dignidade humana. Mas eles, mais uma vez, não terão culpa, porque a culpada será a OMC.

Mas não se enganem. Haverá milhares de mãos a apontar os culpados.

É lamentável que este debate só agora surja na Assembleia da República, e só após a exigência do PCP para que ele se efectuasse.

E é após a sua marcação na agenda parlamentar que começaram a surgir na comunicação social portuguesa algumas notícias e informações do Governo sobre o assunto.

Mas não é admissível que o «pessimismo» com que o Governo aborda a Cimeira, referido pelo conselheiro da missão portuguesa junto da OMC, ou a «lamentação» sobre o uso que fez a União Europeia do «cheque em branco dado a Bruxelas», possa iludir alguém sobre as responsabilidades do Governo pelos maus resultados do que acontecer. (O que, naturalmente, esperamos que não suceda!

E não é admissível, porque o Governo, contrariamente a outros países da União Europeia, não mobilizou, não envolveu a dita «sociedade civil», não informou nem procurou o diálogo e a convergência com os partidos da oposição, apesar da abordagem deste problema, pelo menos desde 30 de Março de 1998, nas reuniões do Conselho.

O que está em causa nas negociações da OMC?

Particularmente em foco estão as seguintes questões:

A segurança alimentar, na sua dupla acepção – o direito de cada país a uma produção agrícola razoável para a alimentação do seu povo, ou seja, o direito a ter uma agricultura e a exigência de produtos agro-alimentares saudáveis, não agressivos da saúde humana. Segurança alimentar que é explicitamente posta em causa pela liberalização dos mercados agrícolas, pela redução da protecção às produções nacionais, pela concepção dos «produtos agrícolas» apenas como «mercadoria» semelhante a qualquer produto industrial. Segurança alimentar posta em causa por aqueles que não desistem de fazer da «alimentação» uma arma.
Avançado relativamente às negociações está o ministro Capoulas Santos que, no recente fim-de-semana, anunciou em Aveiro o projecto de liquidação de 70% das actuais explorações produtoras de leite, pelo afastamento da produção de todos os agricultores até 4 vacas, que abrem assim espaço/quotas a favor dos «agricultores competitivos».

A liberalização acrescida do comércio de produtos não agrícolas constitui uma orientação forte da União Europeia. Na sua comunicação, a Comissão propõe, mesmo que não avance mais nada, a «redução a zero» pelos países desenvolvidos das taxas aduaneiras à quase totalidade dos produtos originários dos países menos desenvolvidos. O que levanta um conjunto de interrogações. Qual é o conteúdo preciso dessa classificação dos países menos desenvolvidos? Há nesta matéria coincidência de interesses entre Portugal e os países mais industrializados da União Europeia? Está avaliado o significado e definidas as condições em que a China entra na OMC? Quem e como vão ser fiscalizadas as regras de uma mais livre e mais aberta concorrência? Como? Se nem ao nível do mercado único da União Europeia essas regras são respeitadas.

A total liberalização do mercado de serviços e, em particular dos serviços públicos, como a educação e a saúde. Vamos assistir em Portugal à generalização nos serviços de saúde, do que aconteceu nos serviços de hemodiálise, monopolizados por empresa transnacional? É imaginar muito admitir ver no futuro um painel de peritos da OMC pronunciar-se a favor do direito de escolas privadas de uma empresa transnacional de serviços de educação não permitirem o ensino de teorias evolucionistas de Darwin?! Tal como hoje nos querem impor uma alimentação à base de produtos OGM, ou de carnes com hormonas!

A «propriedade intelectual», na sua relação com o comércio (TRIPS – Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), tal como os direitos de autor e de criação, denominações de origem e proveniência geográfica, marcas comerciais, patentes e projectos industriais. Para lá de outros aspectos, representa a tentativa de apropriação pelas transnacionais da agro-química do património de gerações de agricultores do mundo inteiro e da biodiversidade do planeta, através do estabelecimento de patentes de sementes e propágulos em simultâneo com os esforços para impor o uso dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM).
Um caso «notável» de propriedade intelectual. Em 28 de Outubro a União Europeia, que devia dar o exemplo, aprovou a revisão da directiva comunitária relativa ao fabrico de chocolate, permitindo a substituição parcelar (até 5%) da manteiga de cacau por outras gorduras vegetais. Grave é que o Governo de um país como Portugal, que tem uma duríssima batalha a travar em defesa das suas denominações de origem, como a do vinho do Porto, que tem as relações históricas com África que são conhecidas, e em particular com os PALOP, produtores de cacau, tenha sido cúmplice desse assalto à propriedade intelectual de países pobres!

A total liberalização e protecção dos investimentos do grande capital financeiro, com a tentativa de recuperação e integração do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) na OMC.
Apesar das posições cuidadosas face ao naufrágio do AMI, expressas no Documento da Comissão e das cautelas presentes na Resolução do Parlamento Europeu, diversos objectivos e conceitos - «não discriminação», protecção dos investimentos», «clima empresarial estável e transparente» - evidenciam os riscos de recaída no AMI, particularmente quando não se afirma como direito imprescritível a capacidade dos países de acolhimento, a regulamentar o exercício da actividade económica no seu território.

A identidade e diversidade cultural dos povos, através do tratamento das actividades culturais como pura e simples mercadoria.
Sendo uma questão de interesse relevante, a chamada «excepção cultural» não pode servir de contrapartida para fazer passar todo o outro contrabando liberalizador. Os perigos para a actividade cultural são reais. Basta atentar no alcance e monstruosidade da alínea 27 da Resolução do Parlamento Europeu que «Recomenda a instituição de um sistema de arbitragem para aprovar os subsídios às línguas e culturas minoritárias que sejam, ao mesmo tempo genuinamente necessárias e distorçam a concorrência internacional na menor medida possível». Monstruosidade aprovada com os votos do PS e PSD no Parlamento Europeu!
Será estranho ver um futuro onde um painel de peritos da OMC inquire o Estado português sobre os apoios concedidos para a defesa da cultura e do dialecto mirandês?

A limitação e condicionamento das normas de trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e das normas ambientais, ao «bom funcionamento» do mercado planetário e interesses do capital transnacional.
É lamentável não se afirmarem como objectivos/normas centrais, a atravessarem transversalmente todos os dossiers e sectores da negociação da OMC: o pleno emprego, o direito ao trabalho estável e dignamente remunerado, as resoluções das Conferências de Copenhague e de Pequim; o integral respeito pelos acordos multilaterais do ambiente, nomeadamente os decorrentes das Conferências do Rio de Janeiro e de Quioto.

Os problemas do desenvolvimento e a OMC

Quando as principais forças económicas e políticas do planeta pretendem dar mais um passo (ou vários) no caminho da liberalização, era bom que se olhasse para o que decorreu desde 15 de Abril de 1994, com a criação da OMC, em Marraquexe.

São os relatórios das agências especializadas das Nações Unidas que demonstram que «a receita mágica da liberalização comercial» não resultou e fez dos países em vias de desenvolvimento e com economias emergentes as suas principais vítimas.

As respostas a estas questões, ao direito de todos os países e povos do mundo a um desenvolvimento autónomo (o que não significa autárcico), equilibrado e sustentado, não está certamente no prosseguimento a todo o vapor da liberalização dos mercados e a regulamentação monopolística do poder, do saber, da distribuição da riqueza.

Os arautos (do neoliberalismo) clamam que o remédio está na liberdade de acesso pelos países pobres aos mercados dos países ricos, no acesso aos mercados públicos e na sua privatização, na total liberalização da circulação dos capitais financeiros.

Mas escondem o que se esconde por debaixo dessas receitas com conhecidas e desastrosas consequências.

Escondem, por exemplo, que 43% das exportações agro-alimentares brasileiras são controladas por 17 empresas multinacionais, e que quem enriquece com essas exportações são os respectivos accionistas e não os milhões de sem terra, que continuam a lutar no Brasil por um pedaço de terra que lhes dê uma vida digna.

Escondem que quem vai ganhar com a abertura do mercado europeu da banana, decidida e imposta pela OMC a pedido dos EUA, são as companhias norte-americanas Chiquita e Dole Food, e não os camponeses e os povos indígenas da América Latina.

Escondem que o dossier TRIPS pretende consolidar o domínio monopolista dos conhecimentos científicos e técnicos pelo mundo desenvolvido, obrigando os países pobres a pagarem caro as transferências tecnológicas e a modernização dos seus aparelhos produtivos.

Escondem que a apresentação do combate ao «dumping social e ambiental» como proteccionismo inaceitável, é feito em defesa das transnacionais que exploram essa mão-de-obra ou obtêm lucros elevados da exploração das florestas tropicais.

São assim inteiramente justificadas as posições e as preocupações de milhares de ONG que, dando voz a um larguíssimo movimento de opinião pública mundial, contestam a abertura destas novas negociações da OMC. E contestam, não porque as coisas estejam bem. Mas para que seja feita uma avaliação da situação do planeta e das consequências do Acordo do GATT de 1993. Querem uma moratória a todo o processo de novas negociações.

Considerações finais e algumas propostas do PCP

Feitas as considerações atrás referidas, tal não significa oposição do PCP a um acordo geral e global do comércio internacional, dando um conteúdo, objectivos e funcionamentos novos a uma OMC reformulada.

Um acordo precedido por um largo debate, permitindo a real intervenção dos povos e países, das organizações sociais. Um acordo que assegurasse a democraticidade e a transparência das negociações e funcionamento das instituições da OMC. Um acordo que tivesse por objectivo a construção de uma Nova Ordem Internacional, justa, equilibrada e democrática, «assente na cooperação entre povos e países soberanos e iguais em direitos, orientada pelos valores da paz, da democracia, do progresso social e da amizade entre os povos», recusando a globalização comandada pelo capital transnacional e ofensiva dos direitos dos povos e dos equilíbrios ambientais».

Esse acordo imporá a avaliação das consequências da actual globalização capitalista.

Esse acordo exigirá o primado da soberania e interesse de cada Estado, respeitando as suas especificidades, necessidades e o papel fundamental dos seus sectores produtivos e públicos.

Esse acordo exigirá a completa alteração dos actuais mecanismos e regras de regulação dos diferendos - dos ditos “Paineis”.

Esse acordo exigirá a contemplação obrigatória do respeito generalizado por condições sociais e ambientais.

Esse acordo imporá o não tratamento de muitas actividades unicamente a partir do conceito de «mercadoria», como a agro-alimentar e a cultural, entre outras.

Esse acordo imporá o respeito e a promoção de acordos preferenciais com países com menor desenvolvimento.

Esse acordo exigirá o controlo dos mercados financeiros, com a introdução da Taxa Tobin, a recusa de um novo «AMI», reformulado ou com outro nome, na OMC; a luta contra legislação extraterritorial.

É neste sentido que o PCP apresenta hoje nesta Assembleia um Projecto de Resolução.

Disse.