Software livre e patentes de software
Intervenção de B runo Dias
23 de Setembro de 2004
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
Há duas perguntas a que o Parlamento é chamado a responder neste debate.
Queremos ou não avançar com medidas concretas para o desenvolvimento do software livre no nosso país?
Estamos contra ou a favor da consagração das patentes de software na União Europeia?
São estas as questões centrais que estão em causa na discussão destes projectos de resolução do PCP. E, mesmo não estando no topo da agenda mediática, são questões fundamentais para o nosso futuro colectivo.
Sabemos o papel inegável da inovação na área da informática para o desenvolvimento tecnológico do nosso país. Sabemos também que é cada vez maior o universo dos seus utilizadores. E sabemos ainda que há nesta área um domínio avassalador do chamado software proprietário.
O que muita gente não imagina é o grau de vulnerabilidade em que os utilizadores se encontram perante esse software, e perante quem o produz. Na esmagadora maioria destes casos, ninguém pode garantir o que de facto acontece num computador enquanto ele está a ser usado.
Há informação que pode ser transferida sem o sabermos, há operações que podem ser activadas sem se dar por isso. E há sobretudo uma perigosa dependência para a futura utilização dos nossos próprios recursos.
Porque ninguém sabe que operações algorítmicas, funções, sub-rotinas, etc, são desencadeadas por um software... cujo código é proibido conhecer!
E tudo isto pode acontecer nas nossas casas, nas empresas, na Administração Pública, em sectores estratégicos, até mesmo num órgão de soberania como o Parlamento.
Se dúvidas houvesse quanto a esta matéria, aí está – infelizmente! – o processo de colocação de professores a dar-nos razão, e a alertar-nos para a necessidade imperiosa de aplicar e desenvolver soluções alternativas, que nos ofereçam mais transparência, mais segurança, e muito mais liberdade.
E Senhor Presidente, Senhores Deputados,
Não estamos aqui a falar de software gratuito! Aliás, a confusão que alguns fazem, quando se traduz a expressão do inglês “free software”, resulta de não se ter em conta exactamente o conceito que está na base deste movimento: não se trata de uma questão de preço, mas sim de uma questão de liberdade.
O software livre é, já hoje, uma solução alternativa, credível e com provas dadas. Há experiências que o demonstram, um pouco por todo o mundo. São conhecidos os inúmeros casos de governos locais, regionais, nacionais, de instituições públicas, civis e militares, de empresas privadas.
E mesmo no nosso país, embora a estratégia oficial assumida pelo Governo nesta matéria nem sequer apresente essa área de actuação, a verdade é que há experiências pioneiras de aplicação de software livre, com uma avaliação largamente positiva.
É o caso de câmaras municipais como a de Arraiolos ou de Barcelos, os Serviços Municipalizados de Almada, o Exército Português, o Instituto Nacional de Estatística. Casos que vêm demonstrar que é fundamental que o Estado Português avance de forma integrada para a concretização de iniciativas.
Assinalamos também a intervenção da Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação, que ontem mesmo lançou um interessante estudo sobre o software de fonte aberta em Portugal; bem como da Associação Nacional para o Software Livre, que tem lutado pelo desenvolvimento e divulgação destas soluções, e que apoiou publicamente a proposta do PCP.
Esta Assembleia já recusou no passado a opção de decretar a obrigatoriedade geral e abstracta do software livre. Mas o que aqui propomos é a adopção de medidas concretas que permitam, antes de mais, contrariar a discriminação que na prática continua a existir em relação a este software.
É uma opção fundamental, mesmo ao nível da economia. Quem (como a maioria) tanto fala em defender as empresas, tem aqui uma excelente oportunidade para passar à prática! Viabilizar as propostas do PCP é defender o futuro das empresas nacionais do sector. Tanto em relação ao software livre, como em relação à política comunitária de patentes neste domínio.
Aliás, recebemos há pouco um parecer emitido pela Associação Nacional das Empresas das Tecnologias de Informação e Electrónica, manifestando uma profunda preocupação sobre este «cenário de aceitação ilimitada das patentes de software, com as inerentes consequências negativas para o sector nacional».
Foi esse o sentido das centenas de mensagens que recebemos nos últimos dias, apoiando as iniciativas do PCP e apelando à sua aprovação. Foi esse o testemunho que recolhemos na primeira Audição Parlamentar realizada na Internet, numa página que contou em apenas quatro horas com perto de duas mil visitas e uma centena de intervenções. Uma iniciativa que valeu a pena, pelo contributo que trouxe à divulgação e à reflexão em torno desta matéria.
Recusar, sem subterfúgios, a opção que se pretende impor na União Europeia no sentido de consagrar a patenteabilidade dos programas de computador é uma questão da máxima relavância no momento actual.
Estamos numa etapa decisiva para esse processo. No passado dia 18 de Maio, o Conselho Europeu adoptou por maioria qualificada uma posição comum que viabiliza as patentes de software, bastando para isso que a patente em causa possa ter uma aplicação no comércio ou indústria.
O que no futuro isto significa na prática é uma sentença de morte para as micro, pequenas e médias empresas deste sector – nomeadamente as do nosso país. E é incompreensível que o Governo português tenha apoiado essa posição para uma futura directiva.
Mas há novidades.
É que na Holanda, país que defendeu com unhas e dentes a proposta da Comissão, os deputados do Parlamento Nacional decidiram, pela primeira vez na História da União Europeia, vincular aquele Governo a uma alteração do sentido de voto sobre esta matéria, para que deixe de apoiar a posição que está sendo construída no Conselho Europeu – e assim se junte à Espanha, à Áustria, à Itália e à Bélgica.
Ou seja, aconteceu em Julho, na Holanda, o que nós propomos que aconteça hoje aqui. Com uma razão acrescida: é que a alteração do sentido de voto do Governo português, tal como a propomos, fará a diferença que falta para a contagem da maioria qualificada – e as opções no Conselho Europeu terão de ser reconsideradas.
Estamos para além da simples questão de apoiar ou não a política do Governo. De resto, vale a pena recordar que, na votação que teve lugar no Parlamento Europeu sobre esta matéria, os deputados do CDS-PP votaram ao lado dos comunistas, recusando esta perigosa opção das patentes de software.
Votaram bem nesse dia – não se esqueçam de hoje votar bem outra vez!
Há uma possibilidade real neste debate, e nesta votação, de contribuir de forma decisiva para contrariar a perspectiva de bloqueio à inovação e ao desenvolvimento tecnológico, de desincentivo à investigação; e optar por um caminho de liberdade e de progresso.
Basta que as Senhoras e os Senhores Deputados viabilizem estas propostas do PCP. É esse o desafio que deixamos.
Disse.
(...)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Luís Campos Ferreira,
Ouvi com atenção a sua intervenção e denotei uma recusa ou uma resistência relativamente às propostas que defendemos e uma intenção de perder aqui uma oportunidade decisiva no processo não apenas nacional mas tambémcomunitário e registo também que se referiu apenas a um dos dois projectos de resolução que estão em debate, o projecto de resolução n.º 254/IX. Espero que atitude da sua bancada e da maioria não seja de levar tudo raso e que todos os Deputados não sigam o seu exemplo.
O Sr. Deputado interveio dizendo que podemos ficar descansados, nada de alarmismos, e que não vale a pena considerarmos que isto das patentes não vale para o software enquanto tal, e esta expressão do programa de computador enquanto tal é a repetição de um argumento que já vem em catadupa da Comissão Europeia desde o tempo do Comissário Bolkenstein e levanta-nos um problema: é que esta discussão estafada, bizantina, acerca do programa de computador enquanto tal e deste conceito, uma espécie de software puro, supostamente sem qualquer relação com a indústria, é, pura e simplesmente, uma «cortina de fumo» para esta discussão.
É que, Sr. Deputado, não há dois tipos de algoritmos, não há algoritmos minerais e algoritmos vegetais, não há algoritmos que só possam ser usados para a indústria e outros que só possam ser usados para tudo menos para a indústria, uns que podem ser patenteados e outros não.
Não é preciso mudar o título à proposta de directiva, basta sabermos ao que vem, basta sabermos os objectivos. E aquilo que sabemos é que o senhor não pode garantir, ninguém pode garantir, aliás ninguém com bom senso e com rigor acredita que uma linha de comando usada na programação de um suposto invento técnico industrial, como o ABS que o senhor referiu na sua intervenção, nunca mais na vida possa vir a ser usado por um outro programa de computador, desses que o senhor falou e qualificou de alinhamento e ideia do pensamento humano, pelo contrário, essa consideração cai pela base quando se olha hoje para a realidade deste sector e se vê o grau de convergência que as várias plataformas tecnológicas têm cada vez mais nos nossos dias, diferentemente de 1973, como saberá e como admitirá.
Portanto, consagrar que se pode registar a patente de um algoritmo ou de uma linha de programação com o simples argumento de que ela será usada na indústria é impedir que livremente se utilize esse mesmo algoritmo daqui a dois, três ou quatro anos numa outra utilização em termos de um qualquer programa informático que nada tenha a ver com a indústria.
Portanto, quando o Sr. Deputado diz que não está em causa o patenteamento de programas de computador, em vez de ler apenas o memorando que recebeu do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, aconselho-o a ler o memorando, que também chegou a todos os partidos, da associação nacional das empresas do sector, em que figura o fundado receio de que se avance, a breve trecho, por um sonho de aceitação ilimitada das patentes de software.
Sr. Deputado, isto não o preocupa de todo em todo?!
(...)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Gonçalo Capitão,
Acabou a sua intervenção
referindo um medicamento. Ora, é exactamente aí que queremos chegar: mais vale, até nas referências,
usar a designação genérica.
Quando nós falamos de software mais vale dizer processador de texto do que o nome do programa. É
um exemplo que vale a pena seguir, designadamente até como regra para os manuais escolares que o
senhor referiu. Citou um caso positivo mas essa prática devia ser regulamentada e consagrada, pelo que
este nosso projecto é um contributo para se avançar nesse sentido.
O Sr. Deputado recomendou-me a leitura do Programa do Governo, que já fiz, naturalmente, e eu respondo-
lhe com a recomendação de uma outra leitura, não muito diferente, a do Plano de Acção para a
Sociedade da Informação, que corresponde à Resolução do Conselho de Ministros n.º 107/2003. Verá
que não encontra aí uma única referência à expressão «software livre».
De facto, foi a preocupação da ausência de uma estratégia efectiva de desenvolvimento integrado desta
vertente, em termos de desenvolvimento tecnológico, que nos levou a avançar com este nosso projecto,
acolhendo as preocupações, em alguns aspectos, se calhar, demasiado preocupadas, passe a expressão,
relativamente àquilo que definimos como incentivo, por exemplo, à Administração Pública, à administração
local, às empresas ou ao associativismo. Nunca nos passaria pela cabeça dizer que, a partir de agora,
quem quiser concorrer a um programa de incentivo tecnológico só pode utilizar esta opção, aquilo que
defendemos é que passe a haver uma liberdade que não existe, porque, de facto, na prática, existe essa
discriminação. É o quotidiano da Administração Pública que aponta para esta evidência e o que existe são
projectos-piloto, casos pontuais.
Não tivemos qualquer problema em propor a correcção, o aperfeiçoamento da formulação do texto
que apresentámos, porque não se altera, no essencial, o seu sentido e o seu objectivo. Por isso, nós próprios
tomámos a iniciativa de apresentar a proposta de alteração ao projecto de resolução.
Pela nossa parte, Sr. Deputado Gonçalo Capitão, apenas um último apelo, digamos assim, neste debate.
O Sr. Deputado falou na interoperabilidade como uma das preocupações deste Governo, em termos do
sistema de software. Aproveitando até o sítio onde o Sr. Deputado está sentado, pois está mesmo ao lado
do seu colega de bancada Luís Campos Ferreira, faço-lhe o seguinte apelo: a bem da interoperabilidade,
talvez o Sr. Deputado ainda possa fazer um último esforço para conseguir convencer o seu colega a recusar
a política europeia de patentes de software.
(...)
Sr. Presidente
, Srs. Deputados:
O essencial do debate está feito e as posições estão clarificadas — sabemos o que vai acontecer —, mas há uma questão que gostaria de colocar ao Sr. Presidente e aos Srs. Deputados, que tem a ver com o próprio exemplo que esta Assembleia dá em relação à matéria que estamos a discutir.
Uma das referências que ouvi nos últimos dias a propósito do debate que foi sendo travado sobre esta
temática, chamou-me a atenção para o facto de o Parlamento, na sua página na Internet, apenas disponibilizar
para os cidadãos os diplomas num certo formato de ficheiro electrónico, ou seja, eles só são acessíveis
a quem tem um certo tipo de programa de computador. Todos nós estamos mesmo a ver que o
Microsoft Word é o programa que pode abrir os documentos que a Assembleia disponibiliza!
Em breve, o PCP tomará a iniciativa de apresentar a esta Assembleia um conjunto de propostas que
permitam a esta Casa avançar com estudos e com iniciativas no sentido da adopção de medidas concretas
para aplicar também — pelo menos não pôr «à porta da rua» — este tipo de soluções de software livre,
que, pelo menos, tragam a oportunidade e a liberdade de os cidadãos que preferem esses outros sistemas
acederem também à informação que a Assembleia tem para disponibilizar.
Pensamos que este é um contributo para que a Assembleia da República seja a Casa de todos e para
que todos possam aceder à informação que ela disponibiliza.