Prevenção
e tratamento do sobreendividamento das pessoas singulares
Intervenção de Bruno Dias
8 de Janeiro de 2004
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
O tão falado “endividamento das famílias”, que no passado recente se tornou objecto de novas atenções e debates, mereceu oportunamente da parte do PCP o alerta para os riscos decorrentes da intensificação que neste fenómeno se tem vindo a verificar nos últimos anos.
Para nós, o problema verdadeiramente preocupante não está na ideia genérica do recurso ao crédito – mas sim nas situações cada vez mais frequentes e dramáticas a que vamos assistindo, relacionadas com a impossibilidade de pagamento da(s) dívida(s). É essa a questão central do problema do sobreendividamento.
Um problema, aliás, tantas vezes associado a autênticas espirais de dívida, em que o consumidor contrai novos empréstimos, de forma a pagar os anteriores.
Sendo certo que é escassa a informação estatística pormenorizada sobre a realidade concreta deste problema, é conhecido o diagnóstico com os dados mais recentes, publicados pelo Observatório do Endividamento dos Consumidores, que nos indicam que, numa década, a taxa de endividamento das pessoas singulares passou de 20% para 97% do rendimento disponível.
E estamos a falar de uma evolução verificada até 2001, já que a estimativa do Observatório para o momento actual neste domínio apontava para um valor claramente superior à totalidade do rendimento.
Estamos sem dúvida perante uma situação que é das mais graves da União Europeia, com a agravante de que a urgência do problema não teve ainda respostas concretas no plano legislativo – respostas que já avançaram em países como a França ou a Bélgica.
Foi justamente para reflectir e debater as diversas vertentes deste problema que o Grupo Parlamentar do PCP levou a efeito aqui na Assembleia da República, no passado dia 6 de Maio, uma audição pública sobre «o endividamento dos consumidores e das famílias portuguesas».
Nessa iniciativa, pudemos contar com a participação de diversos responsáveis e especialistas nesta área, instituições de defesa dos direitos do consumidor, organizações sindicais, centros de informação autárquica ao consumidor, o Instituto do Consumidor, para além do próprio Observatório do Endividamento dos Consumidores, entre outros. E aí confirmámos as razões do nosso alerta, perante informações como a do aumento gradual e incessante do rácio de incumprimento do crédito bancário.
A este nível, a evolução mais desfavorável verifica-se no crédito a bens de consumo e outros fins – e veja-se que, nesta vertente, a finalidade para a qual se regista a segunda mais grave situação é justamente a relacionada com despesas de saúde, quase igual à compra de electrodomésticos.
Já conhecíamos há muito tempo a tese do «quem quer saúde paga-a». Agora surge a variante de «quem quer saúde… endivida-se»!
No entanto, não ignoramos que a situação claramente maioritária no endividamento em Portugal é aquela que se prende com a aquisição de habitação própria, correspondendo a 78%, numa proporção que tem vindo a crescer ao longo dos últimos anos. É este o copo que transborda quando sobre ele recai a “gota de água” do crédito ao consumo. E assim sucede o sobreendividamento.
E é aqui que se coloca com mais acuidade o problema do impacto das variações das taxas de juro – as quais, recorde-se, constituíram em dado momento uma oportunidade para responder à necessidade concreta do acesso à habitação, tendo atingido mínimos históricos em Dezembro de 2002.
Isto é: as famílias responderam à evolução do mercado de crédito. E o que é certo é que, em muitos casos que nada tiveram de irracionalidade ou má fé, aquelas famílias, aqueles consumidores, acabaram enredados em difíceis situações de sobreendividamento. E isto porque se abateu sobre eles o drama do desemprego, por exemplo. Ou pelo surgimento de um problema de saúde. É assim que nascem muitas histórias dos chamados “novos pobres”.
Mas não esquecemos, naturalmente, a extrema agressividade com que têm vindo a ser desenvolvidas tantas campanhas de marketing, transacções eivadas de omissões e facilitismos, e que se revelam autênticas armadilhas, tal é a falta de transparência e de clareza com que os processos são conduzidos.
Daí que seja indispensável tomar medidas concretas.
Medidas que avancem de forma eficaz, descentralizada, para a prevenção e o combate ao fenómeno do sobreendividamento, assentando numa acção conjugada ao nível da consciencialização dos consumidores sobre os potenciais riscos do recurso ao crédito e endividamento, numa vertente de pedagogia e preparação para evitar este tipo de situações.
Mas também numa acção efectiva de defesa dos direitos e interesses do consumidor, fiscalizando no concreto a garantia de informação transparente da parte das instituições financeiras sobre as condições e consequências da contracção de empréstimos – desde logo eliminando, nos contratos de crédito, as cláusulas lesivas dos interesses dos consumidores, através de um maior controlo por parte das autoridades competentes.
Nesta vertente, diga-se, colocam-se dúvidas sobre a eficácia real da concretização de uma rede de centros de informação e apoio aos consumidores nesta matéria, quando a base de apoio que os Centros de Informação Autárquica ao Consumidor constituem corresponde a pouco mais de 50 dos municípios portugueses. E a rede complementar das sociedades sem fins lucrativos dificilmente dará resposta ao todo nacional.
Por outro lado, ao nível do tratamento, é necessária uma resposta concreta para enfrentar as situações existentes de sobreendividamento dos consumidores e das famílias. E neste plano, já foram abordadas pela minha Camarada, Deputada Odete Santos, diversas considerações que traduzem a reserva e a preocupação do PCP sobre as soluções apontadas no projecto de lei em apreço, designadamente no tocante às implicações para os Julgados de Paz.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
Com tudo o que foi dito do sobreendividamento, há uma referência que tem que ser feita – é a da raiz mais profunda do problema.
É que enquanto este modelo económico, social, cultural, continuar a ser seguido por sucessivos governos, enquanto o flagelo do desemprego e da precariedade continuarem a alastrar, enquanto o poder de compra das famílias deste país continuar a decair, enquanto o sacrossanto mercado continuar a ter rédea solta – e com ele, os poderosos interesses do grande capital – enquanto tudo isto se mantiver, não serão de facto resolvidas as causas reais deste tipo de situações.
Para uma resposta efectiva e verdadeira a estes fenómenos, será incontornável a exigência de uma inversão desta linha de rumo. E essa exigência o PCP não vai certamente abandonar.
Disse.