Deslocalização de empresas
Intervenção do Deputado Lino de Carvalho
13 de Março de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Nos últimos tempos têm-se multiplicado de forma profundamente preocupante os casos de empresas que a pretexto de deslocalização da sua produção ou de processos de reestruturação encerram e abandonam as suas unidades produtivas, desviam equipamento, deixam de pagar salários, despedem os seus trabalhadores.

Os exemplos são diários e abrangem diversos sectores de actividade. É o têxtil, vestuário e calçado mas também o sector eléctrico e electrónico, o sector automóvel, o sector alimentar, etc. A luta e a denúncia dos trabalhadores têm permitido que alguns destes casos tenham ganho dimensão pública, atraído a atenção da comunicação social e num caso até do próprio Presidente da República. Foi, por um lado, o encerramento da unidade portuguesa de Castelo de Paiva do grupo inglês de calçado C & J Clarks envolvendo 588 trabalhadores, que optou pela Índia e pela Roménia, repetindo o que já tinha feito em Arouca então envolvendo 368 trabalhadores. E foi também o da empresa de confecções Bawo, em Estarreja, com 80 trabalhadores, cuja administração se preparava, pela calada da noite, para transferir clandestinamente equipamentos para a sua fábrica no Egipto e que só a vigília dos trabalhadores, 24 horas por dia, impediu que se consumasse.

Mas infelizmente os casos são muitos mais para além daqueles que chegam às páginas dos jornais ou aos écrans da televisão. É a Gerry Weber, multinacional alemã de confecções, instalada em Figueiró dos Vinhos, que lançou no desemprego 111 trabalhadores e rumou para a Roménia e Tunísia. É a ECCO’let, dinamarquesa, de calçado, que quer despedir os seus 180 trabalhadores da fábrica de S. João de Ver, em Santa Maria da Feira. São, ainda no têxtil, vestuário e calçado, a Schoeller, alemã, que lançou no desemprego, em Vila Real, 200 trabalhadores. A ARA, também alemã, em Seia, com 300 trabalhadores. A Vestus, de capitais holandeses e suecos, no Seixal, 414 trabalhadores. A Melka, em Palmela, 170 trabalhadores. A Goela Fashion, Santo Tirso, multinacional alemã, 137 trabalhadores com transferência da produção para a China e a Eslováquia. A multinacional suíça ERES, no Fundão, encerrada, 500 trabalhadores. A israelita Bagir, em Coimbra, despedimento colectivo de 283 trabalhadores. Mas se olharmos para o sector eléctrico e electrónico aí temos a Lear, de capitais norte-americanos, em Valongo e em Palmela, sendo que no segundo caso está em curso um processo de redução de pessoal envolvendo uma parte dos seus 1.469 trabalhadores, quando a empresa se tinha obrigado, pelo contrário, a criar 4.000 novos empregos. Ou o caso, mais atrasado, da Indelma, também no Seixal. Que apesar dos apoios que recebeu e sem cumprir aquilo a que se tinha obrigado, saiu para a Lituânia. Ou o processo em curso da Alcoa, ainda no Seixal, dedicada à produção de cablagens para a indústria automóvel, envolvendo 1.600 trabalhadores e em curso de transferência de uma parte da sua produção para a Hungria. Mas também, senhores deputados, a Schneider, que já transferiu parte da sua produção para França, temendo-se pelo seu encerramento e o futuro dos seus 160 trabalhadores. Ou a NEC, ainda do sector eléctrico, que se mudou para o Japão deixando atrás de si 290 trabalhadores no desemprego. Ou a Yazaki Saltano, em Ovar, onde também se teme, face às ameaças de encerramento, pelo emprego dos seus 2.200 trabalhadores. Ou a Philips, em Ovar, que parece preparar a sua saída para a Eslováquia e onde estão em causa 800 postos de trabalho. Ou a Delphi, em Oeiras, deslocalizada para a África do Sul, com o desemprego de 450 trabalhadores. Ou a Samsung, em Sintra, 300 trabalhadores, deslocalizada para a Hungria. E estes são somente alguns exemplos de casos mais recentes sucedidos este ano ou no ano de 2002. Mas não desconhecemos também que neste momento há igualmente empresas portuguesas, designadamente de têxteis e calçado, que também encaram deslocalizar-se para países como a Índia, o Vietname e outros países do sudeste asiático.

No total, desde 1999, mas com particular incidência nos dois últimos anos, e num levantamento recente feito pela CGTP-InterSindical Nacional e por nós próprios, estima-se que entre empresas que deslocalizaram o todo ou parte da sua produção ou há noticias de que o pretendem fazer, que encerraram a pretexto de reestruturações, que promoveram despedimentos colectivos, que alienaram ou transferiram equipamentos, o número total ascende a mais de 200 envolvendo mais de 50.000 trabalhadores. E entre elas estão muitas que nem sequer honraram os contratos que tinham assinado com o Estado português para investimentos que beneficiaram de apoios financeiros e outros da Comunidade e do nosso País, como foram os casos da Texas Instruments, na Maia, da Indelma no Seixal, da Lear, em Palmela ou, de acordo com o que foi noticiado, da C & J Clarks, em Castelo de Paiva.

O encerramento de empresas e os despedimentos colectivos ou operações de redução de pessoal por deslocalizações ou a pretexto de reestruturações revela-se tanto mais gravoso quanto parece acentuar-se em períodos de crise económica e, seguramente que a isso se deve uma parte substancial do aumento de desemprego que tem vindo a ocorrer no nosso País e que está prestes a atingir o meio milhão de trabalhadores.

Estes comportamentos assentam sobretudo numa concepção depradadora de um certo tipo de investimento empresarial que procura obter o máximo de lucro no menor período de tempo possível à custa do saque dos recursos dos territórios onde se instalam explorando a mão de obra barata e esgotando todos os apoios financeiros e institucionais possíveis, após o que demandam outras paragens repetindo os seus feitos e deixando atrás de si um rasto de desemprego, depressão, crises sociais. E não é um fenómeno que atinja somente sectores tradicionais de mão de obra intensiva ou fraca produtividade. Há comportamentos destes em empresas de tecnologia avançada. Como há comportamentos em empresas que têm produtividades elevadas. Este último é o caso, por exemplo, das unidades portuguesas da C & J Clarks, as mais produtivas do grupo. E são comportamentos, além do mais, que significam actividade de concorrência desleal em relação àquelas empresas que investem, assumem os compromissos, criam emprego, produzem valor acrescentado, contribuem para o desenvolvimento regional e nacional. Este é o investimento que interessa a Portugal. Não o primeiro.

Dir-se-á, esta não é uma questão exclusiva do nosso País e não pode ser resolvida somente dentro das fronteiras nacionais. Em parte, é verdade. De facto, o que se está a viver, cada vez de forma mais ampliada, são as consequências de uma desregulada globalização do sistema económico capitalista assente em opções neo-liberais mas que conduzem à penalização dos países de economias mais frágeis, como a portuguesa. Países como a França, o Luxemburgo ou a Alemanha, por exemplo, têm mais possibilidades de absorver o impacto destes processos do que Portugal.

Sem dúvida que há uma questão de fundo jamais resolvida pelas políticas económicas de diversos governos e que, aliás, já tinha sido equacionada no relatório Porter: a da definição de um modelo de desenvolvimento, de um perfil de especialização produtiva para Portugal que não assente numa política de baixos salários, baixas qualificações, forte exploração da mão de obra. Nunca se percorreu esse caminho de forma sustentada e duradoura. Pelo contrário. Mesmo hoje, quando o Ministro da Economia recusa esta opção nos seus discursos para português ler a verdade é que, lá fora, a orientação oficial de captação de investimento estrangeiro assenta exactamente na oferta de um País de baixos custos salariais e de uma legislação laboral cada vez mais liberal e desprotectora dos direitos dos trabalhadores. Foi, aliás, esse mesmo o teor da intervenção do Ministro da Economia em Davos e é isso que mais ressalta dos folhetos de captação de investimentos da recém criada Agência Portuguesa de Investimentos. A demonstração que este caminho não serve é o facto de apesar do Governo oferecer mão de obra barata, nova legislação laboral, mais benefícios fiscais, as multinacionais continuarem a encerrarem, a reestruturarem-se, a deslocalizarem-se, a efectuar despedimentos colectivos, a lançarem milhares de trabalhadores no desemprego, milhares de famílias em crise.

O nosso projecto de lei não pretende, nem isso está nas nossas mãos, resolver esta questão de fundo. Ela diz respeito às opções de quem governa e são essas opções que têm conduzido a economia portuguesa para becos sem saída.

Mas pretendemos, isso sim, dar um contributo sério para introduzir alguma regulação e disciplina nos processos de deslocalização e reestruturação de empresas.

Assim, o Projecto de Lei que apresentamos, na sequência aliás da Resolução n.º 75/99, de 30 de Março de 1999, aprovada por unanimidade por esta Assembleia a partir também de uma iniciativa do PCP, procura intervir em duas direcções principais: por um lado, internamente, na definição de condições mínimas para o investimento contratualizado e suportado por ajudas públicas, na penalização pelo incumprimento dos compromissos assumidos e na criação de melhores garantias para os trabalhadores e regiões afectadas; por outro, na adopção de medidas no plano comunitário.

Propomos, por isso,
• Que todo o investimento suportado por ajudas públicas seja obrigatoriamente sujeito a contrato escrito onde figure, nomeadamente, um nível mínimo de incorporação nacional (o que dificulta o processo de deslocalização, permite criar valor acrescentado e estimula o desenvolvimento da nossa própria indústria), um tempo mínimo de estadia do investimento, nunca inferior a cinco anos a regular em função da dimensão do investimento; o volume e o perfil de emprego a criar;
• Que uma empresa que viole as condições contratuais a que se obrigou reembolse e indemnize o Estado português e o município ou municípios afectados num montante a fixar judicialmente segundo o princípio da proporcionalidade e tendo em conta as consequências económicas e sociais do seu acto;
• Que estas empresas fiquem impedidas de apresentar candidaturas a ajudas públicas nos cinco anos subsequentes à deslocalização ou reestruturação e que os respectivos bens fiquem sujeitos a arresto judicial;
• Que o gestor ou gestores das empresas em causa respondam civil e criminalmente pelas consequências sociais a que os seus actos derem causa;
• Que os trabalhadores alvo de processos de despedimento colectivo tenham direito, no mínimo, a uma indemnização fixada no dobro do montante máximo previsto na lei geral, sem prejuízo de outros montantes devidos pela ilicitude do despedimento;
• Que toda a intenção de deslocalização, transferência, encerramento de estabelecimento ou empresa ou despedimento colectivo seja previamente comunicada às estruturas representativas dos trabalhadores com uma antecedência mínima de 180 ou 365 dias conforme a dimensão do investimento e no quadro dos procedimentos de informação e consulta previstos em directivas da União Europeia;
• Que, nestes casos, as estruturas representativas dos trabalhadores tenham acesso a toda a informação necessária à verificação e análise dos fundamentos técnicos, económicos ou outros apresentados para a deslocalização ou reestruturação;
• Que seja criado um Fundo Extraordinário de Apoio à Criação de Emprego, cujas receitas serão constituídas, entre outras, pelo produto dos reembolsos e indemnizações que as empresas que se deslocalizem sejam obrigadas a pagar e por dotações do Orçamento de Estado;
• Que o Fundo tenha como objectivo apoiar a recuperação da actividade económica e consequente manutenção ou criação de postos de trabalho e, neste quadro, possa ser também aplicado em iniciativas de criação de emprego promovidas e apresentadas pelos trabalhadores sujeitos a processos de despedimento.

E reconhecendo a necessidade de se actuar simultaneamente no plano internacional, propomos ainda que o Governo

• Informe a Comissão Europeia, a OCDE e a Organização Mundial do Comércio de todas as empresas que se deslocalizarem em condições irregulares e que promova junto das instâncias judiciais, nacionais e comunitárias, os competentes processos;
• Proponha ao Conselho Europeu, no prazo de noventa dias após a aprovação do projecto que apresentamos, que tome as medidas necessárias à harmonização das condições que devem regular o investimento estrangeiro;
• Proponha igualmente a criação efectiva de um Observatório Europeu Permanente com vista à verificação e fiscalização dos processos de deslocalização de empresas.

Finalmente propomos

• Que o Governo torne público os contratos e ajudas públicas outorgadas a empresas protagonistas de processos irregulares de deslocalização.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Suspeito que a maioria irá dizer que a nossa proposta, a ser aprovada, provocaria desconfiança nos investidores ou afastamento do investimento estrangeiro. Não é verdade. Ainda recentemente a França, por exemplo, aprovou, em Janeiro último, uma lei, a Lei de Modernização Social, que igualmente contem normas visando intervir nesta matéria. E não consta que tenha provocado desconfiança ou afastamento do investimento. E existe já hoje, no plano internacional, um debate sério onde é generalizadamente reconhecida a necessidade de serem criadas normas mínimas de regulação do investimento estrangeiro. Toda a gente já percebeu que não há discursos sobre a competitividade que possam ter qualquer sucesso quando as economias e as empresas se defrontam com processos de investimento beduíno. Haverá sempre um lugar no mundo onde é possível pagar-se menos, explorar-se trabalho infantil ou mal pago, beneficiar-se de nulos custos ambientais.

A própria União Europeia dispõe já de algumas normas e directivas que, embora timidamente, abrem portas para alguma regulação e penalização das entidades que cometam irregularidades na execução de projectos de investimento apoiados por subvenções e para a intervenção dos trabalhadores nos processos de deslocalização, reestruturação ou despedimento colectivo. Finalmente, o investimento sério, aquele que interessa ao País agradecer-nos-á se tomarmos medidas que o protejam de uma concorrência desleal, pouco séria e que nada de sustentado acrescenta ao nosso País. E não venham também argumentar com alegadas medidas que o Governo teria tomado recentemente porque elas nada têm a ver com as matérias de que trata o nosso Projecto de Lei.

Temos consciência de que o tema das deslocalizações e reestruturações que levam ao encerramento de empresas e ao desemprego de milhares de trabalhadores é grave e exige uma intervenção legislativa que o regule, tanto no plano nacional como internacional.

O Projecto de Lei que apresentamos é um contributo sério e inovador para atacar este problema. Que a Assembleia o debata de forma também séria são os nossos votos.

Disse.