Lei contra a discriminação racial
Intervenção do deputado António Filipe
25 de Março de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Antes de iniciar a apresentação do Projecto de Lei que agendámos para a Ordem do Dia de hoje, permitam-me que, em nome do Grupo Parlamentar do PCP, comece por enviar uma forte saudação aos trabalhadores portugueses que, hoje mesmo, correspondendo ao apelo da CGTP/IN, se manifestam em Lisboa, contra as propostas do Governo para alterar a legislação laboral que, tomando o partido pelo grande patronato, procuram reduzir e desregulamentar ainda mais o direito à segurança no emprego, aos salários e horários, às férias, à segurança social.

As propostas de lei sobre o trabalho a tempo parcial, sobre o direito às férias, sobre o conceito de retribuição e sobre o trabalho nocturno, que suscitam o justo protesto dos trabalhadores, são propostas, em primeiro lugar contra os jovens e contra as mulheres trabalhadoras, mas que mais cedo ou mais tarde, seriam, se fossem aprovadas, contra os interesses e direitos de todos os trabalhadores.

O PCP está inteiramente solidário com os trabalhadores que hoje se manifestam e afirma a sua disposição de tudo fazer nesta Assembleia para que não vá por diante mais esta ofensiva contra os direitos de quem trabalha.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O Grupo Parlamentar do PCP utilizou o seu direito potestativo para a fixação da Ordem do Dia desta Assembleia para promover o debate que hoje realizamos sobre o projecto de lei destinado a prevenir e combater a discriminação racial.

Este facto é significativo da importância que atribuímos a esta matéria. Desde que em 1982 a Assembleia da República aprovou a adesão do nosso país à Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adoptada em 1965 pelas Nações Unidas, é hoje a primeira vez que este órgão de soberania é chamado a pronunciar-se sobre uma iniciativa legislativa concreta, tendo por objectivo dotar a Ordem Jurídica Portuguesa com um instrumento legislativo destinado a combater todas as práticas de discriminação com base na raça, na cor, na nacionalidade ou na origem étnica.

O Projecto de Lei do PCP que hoje tenho a honra de apresentar é a primeira iniciativa legislativa apresentada em Portugal com esse objectivo. Iniciativa necessária e insistentemente reivindicada, designadamente pelos movimentos anti-racistas, pelas associações de defesa dos direitos humanos e pelas associações representativas dos imigrantes, existentes em Portugal.

Cumpre-me por isso agradecer, em nome do PCP, a todas as associações que aceitaram o nosso convite para contribuir com as suas opiniões e sugestões sobre este projecto, e particularmente à à Lisboa Azul e à Frente Anti-racista, que tiveram a amável iniciativa de entregar simbolicamente o CD "todos diferentes, todos iguais" a todos os grupos parlamentares, como expressão do seu apoio à aprovação desta lei, à Associação Cabo-verdiana que expressou publicamente o seu apoio aos projectos hoje em debate, e também ao SOS Racismo e à Associação Portuguesa dos Direitos dos Cidadãos que em 1996 dirigiram uma petição a esta Assembleia apelando à aprovação de uma lei contra a discriminação racial.

Quando em Novembro de 1997 aqui debatemos essa Petição, tive oportunidade de afirmar, em nome do PCP, que considerávamos inteiramente pertinentes as preocupações que a motivavam e que as propostas dela constantes deveriam merecer desta Assembleia a melhor ponderação.

Relativamente à matéria a inserir na chamada "lei de estrangeiros" e no diploma regulador do trabalho de estrangeiros em território nacional, dei conta das propostas legislativas já nessa altura assumidas pelo PCP. E no que se refere a outras matérias, comprometemo-nos a ponderar a sua pertinência e a estudar a viabilidade da sua inclusão nos diplomas legais adequados.

Comprometemo-nos e cumprimos.

A necessidade da aprovação de uma lei contra a discriminação racial não suscita qualquer dúvida.

A Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a que Portugal se vinculou, obriga os Estados partes, nomeadamente, a proibir e a eliminar a discriminação racial, sob todas as suas formas, e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica.

No âmbito desta Convenção, o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial apreciou um relatório sobre a sua aplicação em Portugal, tendo recomendado a intensificação das medidas no sentido de evitar o cometimento de actos de discriminação racial e xenofobia.

Aliás, também muito recentemente, em artigo publicado no Diário de Notícias, o Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas referiu a intenção da Comissão Europeia de propor duas directivas-quadro no sentido de combater as situações discriminatórias em vários campos, admitiu que o combate à discriminação racial venha a ser em breve objecto de iniciativas legislativas por toda a União Europeia, e concluiu que "faz sentido continuar a procurar aperfeiçoar a legislação existente em cada Estado-Membro".

É esse também o nosso entendimento. Faz todo o sentido aperfeiçoar a nossa legislação de combate à discriminação racial. Não para aliviar a consciência pesada da União Europeia pelas muitas malfeitorias que comete em matéria de direitos dos cidadãos não comunitários. Mas porque pensamos que esse aperfeiçoamento é justo e adequado.

A proibição da discriminação racial tem em Portugal pleno acolhimento constitucional. Desde logo no artigo 13º da Lei Fundamental, que se refere ao princípio da igualdade, segundo o qual, "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei" e "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social". Mas também no artigo 15º, que dispõe que "os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português", exceptuados os direitos políticos, o exercício de funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.

Acontece porém que o tratamento legislativo da discriminação racial, definida na Convenção Internacional como "qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na raça, cor, ascendência na origem nacional ou étnica que tenha como objectivo ou como efeito destruir ou comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício, em condições de igualdade, dos direitos do homem e das liberdades fundamentais no domínio político, económico, social e cultural ou em qualquer outro domínio da vida pública", tem sido disperso e lacunar.

Por isso, apesar da aplicabilidade directa do texto constitucional e de alguns progressos legislativos verificados aquando da última revisão do Código Penal e da eliminação de algumas, que não todas, as restrições injustificadas no acesso de estrangeiros ao emprego, subsistem situações em que a violação do princípio da igualdade e a prática de discriminações de origem racial, não se encontram expressamente previstas e sancionadas na legislação portuguesa.

Neste, como noutros aspectos, a realidade vivida pelos cidadãos fica muito aquém do que dispõe o texto constitucional, verificando-se que um vasto leque de práticas discriminatórias, por não merecerem qualquer previsão explícita na legislação ordinária, permanecem impunes, tornando muitas vezes ineficazes as garantias constitucionais dos cidadãos.

Daí que o primeiro objectivo do projecto de lei do PCP seja precisamente tipificar práticas discriminatórias, no emprego e no acesso ao emprego, no acesso à saúde, à habitação, à educação, na prestação de bens e serviços, no exercício de actividades económicas, no funcionamento da Administração Pública e prever as sanções adequadas perante a sua eventual violação.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Apresentamos este Projecto de Lei sem dramatismos. Portugal não é um país racista. Não temos, felizmente, no nosso país, problemas de cariz racista com a dimensão e a gravidade dos problemas que se manifestam nos Estados Unidos, na Alemanha, ou mesmo em França.

Mas temos problemas que não podemos negar. Com as dificuldades na integração social de algumas comunidades, com os obstáculos existentes no acesso de todos os cidadãos ao exercício de direitos económicos, sociais e culturais em condições de igualdade, e com tendências que se manifestam em alguns sectores da sociedade portuguesa para culpabilizar minorias étnicas, no seu conjunto, por problemas de criminalidade, pelos quais esses cidadãos são tanto responsáveis e são tanto vítimas como quaisquer outros.

A nossa atitude perante esses fenómenos, perante quaisquer práticas ou atitudes discriminatórias, não é a de fazer espectáculo político à sua custa, não é a de empolar artificialmente a sua dimensão, não é a de culpabilizar todos os portugueses pela sua ocorrência, mas também não é a de encolher os ombros ou de fechar os olhos perante a sua gravidade.

A nossa atitude perante quaisquer práticas ou atitudes discriminatórias é a de as enfrentar com firmeza, de as impedir, de evitar a sua repetição.

A não admissão de um trabalhador, a recusa injustificada de acesso a um qualquer local aberto ao público, ou a discriminação de uma criança na escola, com base na cor da pele ou no lugar onde nasceram, são atitudes inaceitáveis, cuja censura social tem de ser assegurada por todos e cuja censura legal compete exclusivamente a esta Assembleia assegurar. É precisamente disso que hoje tratamos.

O Projecto de Lei apresentado pelo PCP, visa prevenir a discriminação racial sob todas as suas formas e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais, ou culturais, por quaisquer cidadãos, em razão da sua pertença a determinada raça, nacionalidade ou origem étnica.

Considerando-se como práticas discriminatórias, para efeitos desta lei:

Para além de estabelecer as sanções contra-ordenacionais correspondentes a estas práticas e o elenco dos direitos e garantias dos lesados, o Projecto do PCP propõe ainda a criação de um Observatório sobre a Discriminação Racial, tenha ou não esta designação, a funcionar junto do Alto Comissário para a Imigração e as Minorias Étnicas, com a participação designadamente de representantes dos sindicatos, das associações de imigrantes e das associações anti-racistas.

É que, para combater com eficácia a discriminação racial não basta condená-la juridicamente. É preciso também criar instrumentos de recolha de dados sobre situações reais e sobre a aplicação das leis, sobre as queixas apresentadas pela sua violação, e que centralizem, trabalhem e encaminhem propostas para uma acção mais eficaz de combate à discriminação racial.

Senhor presidente,
Senhores Deputados,

A apresentação de um Projecto de Lei do PS que converge com o nosso no objectivo de combater a discriminação racial é um facto que saudamos e foi com gosto que aceitámos associar ao nosso agendamento o debate deste projecto, tal como faríamos a propósito de quaisquer outros que fossem apresentados sobre esta matéria.

Queremos porém registar desde já algumas divergências que teremos oportunidade, segundo espero, de debater mais aprofundadamente na especialidade e que dizem respeito, por um lado, à excessiva latitude com que o projecto do PS consagra as excepções à regra da não discriminação e a excessiva governamentalização da composição da Comissão Contra a Discriminação Racial que é proposta.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Esta iniciativa não é um acto isolado na intervenção política e parlamentar do PCP. Num quadro marcado por retrocessos profundos em matéria de direitos dos cidadãos não nacionais, decorrentes dos Acordos de Schengen e das orientações xenófobas prevalecentes na União Europeia, de que são exemplos as alterações à legislação sobre estrangeiros aprovadas pelos Governos do PSD e do PS, o PCP tem desenvolvido uma acção intensa e permanente pelo reconhecimento dos direitos dos imigrantes residentes em Portugal e por um posicionamento do Estado Português que respeite a dignidade de todos os seres humanos e que seja compatível com as nossas responsabilidades como país de imigração e de emigração.

Não posso a este respeito deixar de referir que o decreto-lei em vigor sobre a entrada, permanência, saída e expulsão de estrangeiros do território nacional, cuja apreciação parlamentar está pendente para discussão por iniciativa do PCP, é um exemplo da política negativa seguida pelo Governo em relação aos imigrantes e aos estrangeiros em geral. Política que se inspira numa submissa aceitação dos compromissos para a criação de uma Europa fechada; que não valoriza a especificidade da relação de Portugal com os países de língua portuguesa; que trata como potenciais delinquentes todos os imigrantes que demandem o nosso país; que esquece que a fusão de povos e culturas faz parte da génese do povo português e foi e é um factor de enriquecimento e vitalidade da sociedade portuguesa.

Mas voltando à questão que hoje nos ocupa, e para finalizar esta intervenção, relembro a excelente iniciativa que esta Assembleia tomou, de assinalar de forma memorável a passagem do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Essa Declaração que, no seu artigo 1º, proclama que "todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos" e que "dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros com espírito de fraternidade."

É em nome dessa razão e dessa consciência, que propomos à Assembleia da República a aprovação desta lei contra a discriminação racial.

Disse.