Evocação do Dia da Memória do Holocausto, do Antisemitismo e do Racismo
Intervenção de Luísa Mesquita
26 de Janeiro de 2006
Sr. Presidente,
Sr. as Deputadas e Srs. Deputados:
Quando as tropas soviéticas libertaram o campo de concentração de Auschwitz, na tarde de 27 de Janeiro de 1945, encontraram gigantescas pilhas de roupa de adultos e de crianças e toneladas de cabelos humanos que eram utilizados posteriormente.
No decurso da II Guerra Mundial, a unidade japonesa 731, que se dedicava aos estudos de guerra bacteriológica e química, produziu experiências em seres humanos vivos, expôs prisioneiros ao gás mostarda, ao calor escaldante e a temperaturas abaixo de zero, enquanto se observavam as reacções até à morte.
Os campos de internamento nos Estados Unidos, durante a II Guerra Mundial, aprisionaram milhares de imigrantes japoneses e seus descendentes, até ao final da guerra.
Evocar hoje os 50 milhões de mortos, os extermínios em massa, os horrores das câmaras de gás e os terríficos campos de concentração só tem sentido se a sua sinalização ajudar a entender o presente e garantir um futuro de opções diferentes.
É por isso que lembrar o Holocausto para os povos que aspiram à liberdade, à democracia, à paz, à independência e à cooperação não só tem significância como nos interpela perante a acelerada militarização das relações internacionais e os crescentes atentados a direitos e liberdades fundamentais, não raras vezes hipocritamente invocados para justificar estratégias de cariz securitário e opções belicistas.
Hoje, os bombardeamentos indiscriminados sobre populações civis, o uso de novas armas de destruição massiva, a prática de torturas e prisões arbitrárias configuram vontades que activam memórias de extermínio.
Extermínio repetente, sistemático e calculista dos indesejáveis e dos incómodos. Foi esta, também, a doutrina racista e fascista de Hitler e dos seus seguidores, que não visou só os judeus mas também os comunistas, os pacifistas, os negros, os ciganos, os deficientes, os pobres, os diferentes.
A extinção dos partidos políticos, a perseguição aos opositores do regime, a instalação de campos de concentração na Alemanha e nos países ocupados não constituem, infelizmente, factos históricos que possamos arquivar e esquecer para sempre nos anais da humanidade.
As imagens muito recentes e ultrajantes que o mundo viu das prisões iraquianas, depois da invasão dos Estados Unidos e dos seus parceiros, e a situação dos prisioneiros de Guantanamo alertam-nos, quotidianamente, para a indispensabilidade e para a exigência de nos afirmarmos como actores principais de um mundo outro, cujo relacionamento entre os povos se construa no respeito mútuo, na cooperação e na procura do progresso.
É por isso também que o branqueamento dos factos mais terríveis da história da humanidade constitui, em primeiro lugar, um cárcere muito perigoso que pode pôr em causa o presente e não ajuda à construção de um futuro de paz e de justiça.
Mas, em segundo lugar, evidencia a necessidade do exercício da vigília permanente das mais importantes conquistas civilizacionais, porque a passividade, a inércia, a ausência de intervenção na defesa corajosa e empenhada dos valores da liberdade e da democracia podem sujeitar o mundo a facturas terríficas e duradouras. Os factos confirmam-no.
As fogueiras inquisitoriais queimaram António José da Silva, em Portugal. As obras de Freud, Max e Einstein foram queimadas em praça pública na Alemanha hitleriana. Mas a fogueira repetiu-se no Chile de Pinochet.
E é por isso que recordar para condenar o horror e a tragédia do Holocausto é insuficiente se, simultaneamente, não compreendermos que os perigos estão aí de forma inquietante e que, ao questionar-se o direito à dignidade social do ser humano, se pronuncia uma discriminação, cuja praxis política não condena com veemência, antes se compromete.
Mas se a memória é uma componente vital na defesa da liberdade da cooperação entre todos os povos do mundo e da paz, não é menos importante a educação sustentada por estratégias dos direitos e das liberdades fundamentais, formando cidadãos capazes de julgar com espírito crítico e criativo o meio social em que se integram e de se empenharem na sua transformação, em prol de uma sociedade mais justa e, logo, mais pacífica.
Até porque, Sr. as e Srs. Deputados, transcorridos mais de 60 anos, são inúmeras as tentativas de reescrita da História, alguns porque nutrem a esperança de ver apagada a sua cumplicidade, outros porque se consideram actores únicos num planeta que pretendem dominar.
Falsificações, adulterações, omissões, silêncios, em suma, instrumentos que ignoram as causas económicas e sociais da guerra e os objectivos que a determinaram, que lembram, por exemplo, o extermínio nazi mas esquecem o extermínio de Hiroshima.
Mais de 60 anos depois, num mundo necessariamente muito diferente, mantêm-se, no entanto, estratégias bipolares de domínio, escaladas de agressões à autonomia e soberania dos povos, apropriações indevidas dos recursos do planeta e uma guerra sem tréguas aos direitos e à liberdade dos que mais sofrem.
Os perigos estão aí, mas na acção, na resistência e na luta de todos os povos está a esperança de um mundo livre da barbárie, de um mundo de cooperação e de paz.