Estabelecimento de normas sobre acessibilidade das pessoas com deficiência e com mobilidade condicionada no meio urbano e edificado
Intervenção de Jorge Machado
1 de Fevereiro de 2006
Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 123/97, de 22 de Maio, é sublinhado «o imperativo da progressiva eliminação das barreiras, designadamente urbanísticas e arquitectónicas, que permita às pessoas com mobilidade reduzida o acesso a todos os sistemas e serviços da comunidade, criando condições para o exercício efectivo de uma cidadania plena».
A mobilidade é um dos elementos determinantes no exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e é um garante da igualdade de oportunidades e da acessibilidade aos serviços de natureza social e colectivos mínimos (saúde, educação, justiça), cujo exercício pleno depende também da existência de condições físicas que não representem obstáculos que o dificulte ou diminua.
Para além de todos estes aspectos, a inexistência de condições de acessibilidade para todos representa necessariamente um factor de frustração e uma barreira à realização pessoal, que têm ainda associados custos humanos, familiares e sociais inaceitáveis.
O principal problema do Decreto-Lei n.º 123/97 revela-se não no texto da lei mas na sua aplicação. Efectivamente, são inúmeros os casos de não aplicação desta lei, quer em edifícios do poder local e central quer a nível dos edifícios onde estão instalados os serviços públicos.
Falamos de casos tão flagrantes como o desta própria Casa. A Assembleia da República, apesar das rampas e equipamentos de que dispõe, tem ainda obstáculos físicos que dificultam o acesso de uma cadeira de rodas eléctrica de grandes dimensões ao edifício e, principalmente, a sua deslocação dentro deste.
O principal motivo aventado para o não cumprimento da lei é a falta de verbas para efectuar as remodelações necessárias nos edifícios públicos. Este é, aliás, o motivo assinalado até pelo próprio gabinete do Ministério da Segurança Social e do Trabalho do governo PSD/CDS-PP quando, em 7 de Maio de 2004, em resposta a um requerimento apresentado pelo PCP sobre esta matéria, afirmou que «os casos de adaptação superveniente requerem um investimento avultado e acrescido, por suscitar regras de execução técnica sensíveis, mormente quanto aos edifícios em áreas urbanas e em edifícios antigos». O que equivale a dizer que o problema está devidamente identificado mas que, em relação a ele, nada foi feito, apesar das sucessivas interpelações do PCP e das organizações das pessoas com deficiência.
Em sede de discussão do Orçamento do Estado, a indicada para a discussão destes problemas, é de notar o corte orçamental ao Secretariado Nacional para a Reabilitação das Pessoas com Deficiência, bem como a rejeição das propostas do PCP, por parte do PS e do PSD, que contemplavam o reforço das verbas para a construção de unidades residenciais dotadas do meios, equipamentos e condições de acessibilidade para satisfazer as necessidades específicas das pessoas com deficiência e o reforço das verbas para o Secretariado Nacional com vista à eliminação das barreiras arquitectónicas.
É ainda curioso que hoje discutamos um projecto de lei que altera a legislação em vigor, e, por outro lado, surja um comunicado do Conselho de Ministros que dá a nota da aprovação de dois decretos- lei, um que aprova o regime da acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, via pública e edifícios habitacionais, revogando o Decreto-Lei n.º 123/97, de 22 de Maio, e outro que cria o fundo de apoio à investigação para a reabilitação das pessoas com deficiência.
Ora, colocam-se algumas dúvidas. Por que razão vem o Governo, sabendo do agendamento desta discussão, aprovar, em resolução do Conselho de Ministros, dois diplomas, esquivando-se à sua discussão nesta Assembleia, versando exactamente sobre as mesmas matérias, fazendo antever desde já o impedimento de que este processo legislativo, pela sua importância e dimensão e porque regulamenta o exercício de direitos, liberdades e garantias, seja determinado por este Plenário?
Aliás, importa relembrar que este processo não contou sequer com a audição dos cidadãos portadores de deficiência nem das suas organizações representativas. Será que o Governo recorre ao decreto-lei para fugir à discussão nesta Assembleia?
Quanto ao PSD, convinha que explicasse porque razão o anterior governo recorreu a uma sociedade de advogados para elaborar um projecto de lei. O governo não teria os meios suficientes para o fazer?
Outras dúvidas surgem. Sabendo este partido, e tendo-o já reconhecido, que o problema essencial reside na aplicação da lei e não no seu normativo, não vemos este partido pugnar pela resolução dos problemas reais mas, antes, apresentar um projecto de diploma que não está isento de contradições.
Desde logo, ao atribuir a competência do licenciamento e fiscalização a uma mesma entidade que pode, ela própria, ser objecto quer desse licenciamento, quer dessa fiscalização, o que quer dizer que as câmaras municipais se irão fiscalizar a elas próprias.
Outra contradição deste diploma traduz-se na reversão das coimas a aplicar para as próprias câmaras municipais, uma vez que, sendo elas próprias as infractoras, a coima reverte precisamente para as câmaras municipais. Isto é, as câmaras municipais vão-se autofiscalizar e, ainda por cima, a coima reverte para elas próprias.
Ademais, a criação do fundo de apoio à pessoa com deficiência, apresentado aqui como um grande passo nas políticas antidiscriminatórias, em nosso ver, não tem grande relevância prática nesta matéria.
Relembramos que foram aprovados, na generalidade, projectos que determinam medidas contra a discriminação com base na deficiência, estando aí previstos mecanismos de adopção destas políticas de controlo e fiscalização, de sensibilização e de responsabilização do Estado como primeiro cumpridor. A criação de um fundo, no âmbito do projecto de lei que ora se discute, só faria sentido se a existência deste obviasse às situações criadas pelo incumprimento do que este projecto prevê. Isto é, o dinheiro das coimas deverá ser aplicado aos fins da própria lei, a adaptação física dos edifícios.
Por outro lado, cremos que este projecto dá um passo significativo no que concerne à obrigatoriedade da aplicação das normas de acessibilidade nos espaços privados (acessos às habitações e seus interiores) e também na actualização dos montantes das contra-ordenações, apesar de não fazer distinção entre pessoas singulares e pessoas colectivas.
Outros pontos positivos são a consagração do direito à informação e do princípio da publicidade dos pedidos de licenciamento ou autorização de obras para cumprimento das normas de acessibilidade.
Porque estão em causa direitos das pessoas, porque consideramos que este é o local em que a matéria deve ser discutida, o PCP não inviabilizará este projecto. Contudo, alterações substanciais deverão ser introduzidas pelos motivos já aduzidos, por forma a que esta seja uma lei exequível e que garanta, indubitavelmente, a eliminação das barreiras arquitectónicas no meio urbano.
Por isso, pugnaremos essencialmente, como sempre fizemos, pela aplicação da lei que for aprovada, para que a vergonha do passado não se repita e para que não estejamos neste mesmo local, dentro de 9 anos, a discutir esta mesma matéria.