A nova Orgânica do Teatro Nacional de S. Carlos e suas implicações
Intervenção da deputada Luísa Mesquita
17 de Fevereiro de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,

Este debate de urgência, proposto pelo CDS/PP, não sendo um acto de contrição, quer pelo silêncio que assumiu perante a extinção das orquestras sinfónicas da R.D.P. e do Teatro Nacional de São Carlos, quer pelo silêncio que assumiu desde o início até ao terminus do processo de extinção em 1992, da empresa pública que geria o Teatro Nacional de São Carlos, quer pelo silêncio que assumiu face aos direitos fundamentais dos trabalhadores da empresa pública que foram gravemente preteridos, com a substituição dos respectivos contratos de trabalho por contratos precários, só pode ser um concerto sem instrumentos e sem músicos ou uma ópera sem cantores e sem cenários.

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados

É, indiscutivelmente importante avaliar, nesta sede, se as opções de política cultural deste governo, particularmente na área da música e da ópera têm vindo a constituir as melhores respostas não só para a defesa e valorização do património existente como para o seu desenvolvimento.

É importante avaliar se os objectivos traçados resultaram do diálogo com os profissionais que a estas áreas estão ligados e do conhecimento das necessidades, das apetências e da formação dos públicos existentes e dos públicos a conquistar.

E é fundamental que esta avaliação aconteça para que não seja possível afirmar-se hoje, como afirmou Alexandre Delgado em Junho de 1992, a propósito da destruição de duas orquestras sinfónicas e de uma ópera, que o Estado "conseguiu tornar-nos, em três anos, o mais imponente deserto sinfónico do continente europeu; o mais extraordinário fenómeno de autofagia cultural da segunda metade do século XX." A manter-se o ritmo actual de destruição de orquestras, e caso Lisboa e Porto não sejam dotadas com urgência de dois grandes aparelhos sinfónicos, os corredores do Metropolitano não serão suficientes para albergar tantas gerações de músicos desempregados."

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,

A lei do lucro das indústrias de produção cultural tem-se sobreposto muitas vezes ao desenvolvimento e democratização da cultura.

O economicismo tem sido, frequentemente, o vector determinante das opções culturais.

Mecenatos e fundações, financiamentos indefinidos e agentes culturais votados ao ostracismo têm constituído estratégias destruidoras do nosso tecido artístico.

E foi com este cenário, que o PSD encerrou a empresa pública que geria o Teatro Nacional de São Carlos, transformando-a em fundação, despedindo os trabalhadores, sujeitando-os, posteriormente, a provas de avaliação para, mais tarde, oferecer a alguns contratos a termo certo e algumas câmaras de vídeo que os vigiavam durante o trabalho e a outros o desemprego.

Convenhamos que é difícil uma melhor encenação operática. Seria cómico se não fosse trágica. Trágica para o país e, particularmente, para todos aqueles que, transformados em peças do jogo económico, eram lançados no desemprego, depois de anos e anos de trabalho.

Foram muitos os músicos que, despedidos, se viram, em nome da sobrevivência, obrigados a tocar em bares, em restaurantes, e consta que, alguns responsáveis por toda esta barbárie cultural lhes terão proposto que tocassem em casamentos e baptizados.

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,

De tudo isto se lembram, ainda hoje, os trabalhadores que voltaram ao Teatro Nacional de São Carlos ou aqueles que se viram obrigados a iniciar outros trajectos profissionais.

Porque nem sempre é curta a memória, também se lembram dos responsáveis, dos que ignoraram as suas expectativas, dos decretos e das comissões liquidatárias, do reinado do terror, das humilhações e das decisões autoritárias e unilaterais.

Cronologicamente ultrapassada, mas não branqueada esta página da história artística nacional, há que avaliar hoje os reflexos do restabelecimento do Teatro Nacional de São Carlos, segundo o decreto-lei nº 88 de 98 "como organismo de direito público, ao qual é expressamente cometida uma missão de serviço público cultural no domínio da ópera e demais ramos de actividade lírica e músico-teatral, bem como no da actividade sinfónica e coral-sinfónica".

Definido o estatuto e os objectivos do Teatro Nacional de São Carlos, enuncia ainda o decreto-lei de Abril de 1998, que "O Teatro Nacional de São Carlos assume-se, deste modo, como instrumento privilegiado na prossecução dos objectivos de desenvolvimento artístico e cultural que constituem responsabilidade inalienável do Estado, em articulação com os demais organismos públicos de produção no sector das artes do espectáculo e com a rede pública de formação artística especializada."

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,

Era o mínimo que este Governo poderia fazer, depois da azáfama demissionista do Estado na formação dos valores culturais nacionais, depois da azáfama destruidora de estruturas estáveis de produção cultural, depois da azáfama de constituição de estruturas empresariais destinadas a colocar no mercado os produtos culturais mais vendáveis.

Publicado o decreto, definidas as unidades orgânicas que integram o Teatro Nacional de São Carlos - A Orquestra Sinfónica Portuguesa / o Coro do Teatro Nacional de São Carlos / As unidades de apoio técnico-artístico e as unidades de apoio técnico-adminsitrativo, eis que surgem, com o apoio de algumas luzes da ribalta, desfocadas, é certo, os carrascos de outrora, clamando hoje por justiça, defendendo os direitos laborais, valorizando o património nacional.

Enfim, se não fosse mera hipocrisia, digamos que era bonito. Ficava bem, no seio deste país de matriz ocidental cristã.

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,

Mais importante que imaginar um cenário onde proliferam orquestras de Norte a Sul do país, é a aposta na defesa do património existente.

E neste sentido, não é possível falar de tradição criar públicos, defender a descentralização e, simultaneamente, escolher como estratégia permanente - a ruptura - a extinção e a substituição.

Como afirmam hoje, num jornal diário, o músico Mário Veira de Carvalho "Uma orquestra não é uma soma de músicos, é uma instituição que amadurece com o tempo e a prática.", ou Adriano Aguiar, músico da O.S.P. "Para cumprir as funções de orquestra operática e sinfónica e agora também o acompanhamento da Companhia Nacional de Bailado (...) é necessário aumentar o efectivo dos instrumentistas. Ainda no início de Fevereiro (...) a O.S.P. foi buscar os sopros a outro lado. Nem sei aonde, mas aquilo não era a O.S.P.."

Este não pode ser o caminho.

Outros existem e urge iniciá-los.

Mas não chega a publicação do decreto-lei.

É necessário criar condições para abrir as portas do Teatro Nacional de São Carlos ao país.

É necessário que a dotação orçamental não ponha em causa o funcionamento autonómico das respectivas unidades orgânicas.

É necessário criar condições de trabalho, particularmente aos músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, que são obrigados a viajar de espaço para espaço, para poderem realizar os seus ensaios.

É necessário que os processos de decisão resultem do diálogo com os profissionais das respectivos áreas artísticas.

É necessário promover e valorizar a música e os músicos portugueses.

É necessário descentralizar as actividades artísticas, procurando o alargamento dos públicos e promovendo o acesso dos cidadãos à fruição dessas actividades.

É necessário reconciliar o país com a actividade artística, particularmente com aquela que alguns poderes quiseram transformar em espaços de elite financeira.