Reconhecimento oficial de direitos linguísticos da comunidade mirandesa
Intervenção do deputado José Calçada
17 de Setembro de 1998

 

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados:

É com grande satisfação que nos associamos aos objectivos do Projecto de Lei nº 534/VII, oriundo da bancada do Partido Socialista, no sentido do reconhecimento oficial de direitos linguísticos da comunidade mirandesa. Quando afirmamos que "a falar é que a gente se entende" o que afinal queremos significar é que é com o falar que nós nos construímos ou des-construirmos - como indivíduos, como comunidade ou como povo. Uma língua ou um "falar" constituem um dos principais factores da construção histórica de qualquer comunidade e da sua relação consigo mesma ou com os-de-fora. Ou seja: com a sua existência concreta. Lembremo-nos que já para os gregos uma divisão dicotómica do mundo levava-os a utilizar a palavra "bárbaros" para designar todos aqueles que não falavam a língua grega, e bem sabemos o sentido conotativo, e pejorativo, que a palavra adquiriu hoje no senso comum. Não raramente, a língua tem vindo a constituir ela própria um pilar fundamental de resistência a várias formas de opressão - e veja-se, neste domínio, o papel desempenhado pelo galego, pelo basco e pelo catalão na moderna Espanha franquista. Mesmo fora da noção de "Estado" e de "território", e em condições quase sempre adversas, e mesmo trágicas, o povo "Rom" - aquele que quotidianamente designamos por "ciganos" - tem encontrado na sua língua um espantoso factor de unidade e de coragem, que nem os campos de concentração do nazi-fascismo conseguiram esmagar.

Se me socorro de todos estes exemplos é porque somos de entendimento que este projecto-de-lei aborda uma matéria que não pode ser considerada nem "folclórica" nem "menor". Este projecto corporiza, sem quaisquer dúvidas, aspirações antigas e sentidas da comunidade mirandesa, e por isso a ele nos associamos sem quaisquer reservas. Neste sentido rigoroso, não há línguas minoritárias - há línguas. O desaparecimento de qualquer uma torna-nos a todos mais pobres, e a língua portuguesa, como sétima língua falada no mundo, assume neste domínio particulares responsabilidades. Não podemos permitir que a sobrevivência do mirandês tenha até agora sido tornada possível por força do isolamento geográfico, ou do alheamento político que durante gerações se abateu sobre a região - e que, agora, em nome de uma certa forma de "progresso", e de "desenvolvimento", e de "abertura ao mundo", o mirandês termine ingloriamente esmagado. Tratar-se-ia de uma trágica ironia, à qual, diga-se, não tem escapado grande parte do nosso património. Esperamos sinceramente que o presente projecto de lei não se esgote em si mesmo, e não se reduza a um eleitoralismo de circunstância que ninguém perdoaria.

A aprovação do presente projecto de lei pode constituir ou um marco histórico na defesa e na assunção da dignidade da língua e da cultura mirandesas - ou o início de um novo ciclo de frustrações a que, infelizmente, muitos transmontanos se habituaram. Seria de excessivo mau gosto que o presente projecto de lei viesse a constituir mais uma peça do "marketing" político do governo do Partido Socialista...

Disse.