Declaração política em que se teceram críticas à política seguida pelo Ministério da Cultura
Intervenção de Luísa Mesquita
11 de Janeiro de 2006

 

 

 

 

 

Sr. Presidente,
Sr. as e Srs. Deputados:

O Governo socialista tem pautado a sua intervenção nas mais diferentes áreas por um profundo autismo e por uma incontrolável corrida ao pote do poder.

A sede do «quero, posso e mando» ultrapassa todas as legitimidades. A legitimidade dada pelos eleitores em Fevereiro último tem servido para tudo. Desde o não cumprimento das promessas eleitorais que sustentaram o voto dos portugueses até a um estilo de governança que recolhe a unanimidade da indignação.

O Governo sofre de um excesso de auto-iluminação, que o cega, alicerçado em verdades únicas e incontestáveis, sofre de ausência de humildade democrática e sofre de incapacidade para o diálogo.

O País, a realidade que bate à porta dos portugueses, a opinião pública, as preocupações, as críticas encontram pela frente um poder de circuito único, fechado, autoritário e arrogante, que não se inibe em produzir suspeições generalizadas, em pôr em causa instituições, sobretudo quando elas têm a ousadia de discordar, de opinar e de questionar o circuito único.

O que o País soube através dos órgãos de comunicação social durante o último fim-de-semana, envolvendo o Teatro Nacional D. Maria II, não é, infelizmente, situação única e decorre deste estilo de fazer política que confunde legitimidade democrática para governar com autoritarismo e mesmo pouco respeito por quem, efectivamente, faz o País, neste caso o cultural.

Porque não é o Governo, não é o Sr. Primeiro-Ministro, não é a Sr.ª Ministra da Cultura que tecem o tecido cultural dos portugueses. É muita presunção política pensar que dirigem a criação cultural ou que a podem administrar através de clientelas políticas.

Curtas vistas tem um Governo que está convencido de que o teatro, a música, a dança a pintura, o cinema, a literatura, numa palavra, a vida, dependem da gestão de clientelas eleitorais, que caem e sobem de acordo com os votos obtidos.

Curtas vistas tem um Governo que pensa que, dominada a gestão, fica controlada a criação.

Curtas vistas tem um Governo que faz da suspeição que lança sobre tudo e todos a força da sua razão. Curtas vistas tem um Governo que faz da intimidação e da divisão reino para reinar.

Por isso ficámos a saber que o Sr. Secretário de Estado avalia o Teatro Nacional D. Maria II não em termos de objectivos e estratégias próprias mas em termos comparativos com outro, ou outros, de quem mais gosta ou prefere.

O Governo pode agora fazer conferências de imprensa, pode vir à Assembleia da República dar explicações, mas o que o Governo já não pode fazer é calar o levantamento geral contra as suas decisões, a incompreensão, a indignação que juntou homens e mulheres diferentes, de diversificadas áreas, que não só a cultural, numa só voz — de espanto e perplexidade.

Em carta dirigida ao Sr. Primeiro-Ministro, as críticas endureceram, a denúncia vem para a praça pública e a paciência esgotou-se.

Dizem os signatários da carta que: «Dez meses depois da tomada de posse, não descortinamos um pensamento, não vemos uma estratégia, não vemos trabalho, não vemos direcção — vemos hesitações, decisões precipitadas, nomeações incompreensíveis, linhas de acção contraditórias».

«Vemos o inaceitável desprezo com que as companhias de teatro e dança estão a ser tratadas». «Vemos a indiferença arrogante de quem não quer ver os inadiáveis problemas da vida artística em Portugal».

«Vemos instalar-se o mais retrógrado dirigismo populista numa área que o Governo, no seu Programa, se comprometeu a tornar menos dependente da lógica de nomeação governamental directa ».

Perante este desabar de críticas no que à cultura diz respeito, a única solução, a saída encontrada pelo Governo, é a tentativa de humilhação pessoal, é a ausência de resposta às inúmeras perguntas de substância, é o silêncio de quem não sabe ou não quer saber.

O «rei vai nu» e o Governo está convicto de que ninguém dá pelo facto.

As actrizes que, neste momento, são responsáveis pela representação do texto A Mais Velha Profissão , em carta também endereçada ao Sr. Primeiro-Ministro, afirmam acerca do Teatro Nacional D. Maria II e dos responsáveis pela sua gestão que: «Tem sido visível e meritório o esforço do seu actual Director no sentido de dotar a instituição de uma vitalidade e capacidade de atracção de públicos diversos».

E dizem também: «Neste curto espaço de tempo tem-nos sido possível aqui desenvolver um excelente trabalho — grupos/companhias independentes, profissionais de teatro e outros — pois que nesta casa encontramos condições únicas, que só um verdadeiro Teatro Nacional pode proporcionar».

Sendo assim, e não constituindo todos estes signatários uma avalanche de inimigos públicos do Governo, antes pelo contrário, era indispensável que o Sr. Primeiro-Ministro explicasse quais as verdadeiras razões desta e de outras substituições que tem vindo a impor à produção e intervenção cultural portuguesas.

Não são, como é evidente, razões de estabilidade. Não é, como é evidente, a vontade dos que aí produzem e de muitos outros que se sentiram convocados para publicamente se pronunciarem.

Não são com certeza os números, que se conhecem, relativos a 2005.

O Teatro Nacional D. Maria II apresentou 216 espectáculos e 115 outros eventos, atingindo mais de 40 000 espectadores. Realizou 43 espectáculos fora de Lisboa. Teve uma taxa de ocupação superior a 65%, considerando os espectáculos apresentados. As receitas de bilheteira verificaram um aumento superior a 17% relativamente a 2004.

Era interessante avaliar, por exemplo, que, nos últimos 5 anos, o actual director é já o quarto escolhido pelos diferentes governos. O recorde temporal máximo à frente desta importante instituição é de apenas 2 anos. Era indispensável verificar que exigência político-partidária determina esta instabilidade, impedindo a planificação de objectivos estratégicos e a sua concretização.

Mas, ocupadíssimos, os governantes, nesta sede de pote do poder que os hipnotiza, particularmente desde Julho, quando iniciaram as mudanças de chefias nas quatro delegações regionais, na Torre do Tombo, no Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, no Instituto Português do Património Arquitectónico, no Instituto das Artes, na Biblioteca Nacional, no Instituto do Cinema e Audiovisual e Multimédia, na Administração do Centro Cultural de Belém, o Governo e, sobretudo, o Ministério da Cultura não têm efectivamente tempo para trabalhar a sério, em diálogo com os parceiros, numa área que a governação prefere votar ao esquecimento e ao subfinanciamento.

É por isso que não cumpriram os diplomas legais que consagravam os apoios à música, à dança e ao teatro. É por isso que não se abriram concursos a que a tutela estava obrigada. É por isso que os institutos dependentes do Ministério da Cultura são esvaziados e subfinanciados, para soçobrarem nas suas intervenções.

Sr. Presidente,
Sr. as e Srs. Deputados:

O que tem vindo a público na área da cultura não é, infelizmente, excepção, é regra deste Governo, mas não é por isso que deixa de ser um total escândalo. Um escândalo que o Governo pagará, estamos convictos, mas, até lá, ficarão as consequências.

Mas podem o Governo, o Sr. Primeiro-Ministro, a Sr.ª Ministra da Cultura e o Partido Socialista ter a certeza de que muitas podem ser as tentativas de populismo, de servidão de clientelas políticas, mas a cultura portuguesa, essa, é e será livre, contra a vossa vontade.