Defesa e valorização da calçada de vidraço
à portuguesa
Intervenção da Deputada Luísa Mesquita
20 de Março de 2003
Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,
Permiti-me Senhor Presidente que comece por saudar a presença nas galerias dos muitos cidadãos dos distritos de Leiria e Santarém que nos dão a honra da sua presença hoje, para assistirem à discussão do conteúdo do projecto que apresentámos e que pretende assegurar a defesa e a valorização da calçada de vidraço à portuguesa.
Estou convicta que as audiências concedidas à Associação que os representa nas Comissões de Economia e Finanças, de Educação, Ciência e Cultura e do Poder Local e Ambiente foram determinantes na construção de um conhecimento mais aprofundado da situação em que se encontram e das suas legítimas preocupações.
A Lei de Bases da política e do regime de protecção e
valorização do património cultural considera no seu artigo
1º que integram o património cultural todos os bens de interesse
relevante que reflictam “valores de memória, antiguidade, autenticidade,
originalidade, singularidade ou exemplaridade”, e consagra no seu artigo
91º que “ Especial protecção devem merecer (….)
os modos tradicionais de fazer, nomeadamente as técnicas tradicionais
de construção e de fabrico.
É neste contexto que se considera o projecto de lei que hoje discutimos
e que tem como objectivo – Assegurar a defesa e a valorização
da calçada de vidraço à portuguesa.
“Uma arte que é de poucos e que muitos pisam sem olhar”, afirma Eduardo Martins Bairrada – no livro Empedrados Artísticos de Lisboa de 1985.
Uma arte que, porque novidade, nos distinguiu em 1900 em Paris, em 1905 em Manaus, em 1906 no Rio de Janeiro, em 1909 na cidade do Cabo, em 1913 em Nápoles ou em 1929 em Sevilha.
Uma arte que o calceteiro-poeta António Mateus iniciou em 1955, com
apenas 14 anos, quando muitos, eram ainda os “Ourives do chão”.
Mais tarde lamentará que
“Fala-se tanto em preservar,
Mas disso não vejo eu nada!
Pois a arte de calcetar,
É da mais desamparada”
De facto a Calçada de Vidraço à Portuguesa constitui uma forma tradicional de tratamento do espaço urbano, que assumindo valor estético genuíno não pode deixar de ser considerado como uma verdadeira manifestação da nossa cultura, reconhecida e apreciada mesmo internacionalmente.
No entanto, esta forma tradicional de revestimento artístico de passeios, confronta-se, actualmente, com enormes dificuldades, quer ao nível da obtenção da matéria-prima, quer ao nível da formação profissional específica.
São também estas razões que sustentam a necessidade de formular um conjunto de medidas capazes de defender e valorizar esta arte tradicional.
Medidas que deverão visar em primeiro lugar as condições de obtenção da matéria prima, que ocorre nas pedreiras de calcário (branco, preto e rosa) e que são na sua maioria de pequenas dimensões.
Os calcários seleccionados têm características específicas, por isso designados de vidraço, porque quando facturados têm que se apresentar lisos e brilhantes.
A especificidade delimita naturalmente as áreas de extracção em todo o maciço calcário português, situando-se predominantemente nos distritos de Leiria e Santarém.
Estas explorações ocorrem sobretudo em plano de encosta onde o desmonte, em grande parte manual, é selectivo e produzido à superfície e não em profundidade.
Estes procedimentos de fabrico artesanal minimizam os desperdícios da actividade de exploração e facilitam a reposição da morfologia do terreno e da flora com espécies autóctones, à medida que a exploração avança.
A importância económica desta actividade tem vindo a aumentar significativamente nos últimos 20 anos, não só como recurso de sobrevivência perante a grave crise industrial e agrícola que se fez sentir nestas regiões, mas também pela potencial procura interna e externa, quer no espaço da União Europeia, quer noutros locais como o Japão, a China, a Austrália, os Estados Unidos ou a América Latina.
A Associação de Exploradores de Calçada à Portuguesa, recentemente formada, estima que existam cerca de 350 explorações com 1000 trabalhadores e com uma facturação anual de 50 milhões de euros.
Empresas de pequena dimensão, fundamentalmente de cariz familiar, que entre si exploram o calcário, escoam o produto e assentam a calçada.
A calçada é um produto praticamente indestrutível, sendo por isso difícil a sua substituição, apesar da existência no mercado de alguns produtos sucedâneos de menor resistência e beleza.
Também a formação profissional e a valorização dos trabalhadores que executam esta arte têm que ser objecto de especial atenção, dado que são actores fundamentais na preservação deste património.
Porque como afirma um calceteiro com décadas de experiência na arte de calcetar “qualquer um mete as pedras, mas cobrir toda a área e acabar o trabalho para dar certinho no fim, isso é que não é para todos”.
“É uma arte com potencialidades criativas, exercida por profissionais em extinção e que importa preservar” afirma mais uma vez Martins Bairrada em – Empedradas Artísticas de Lisboa.
Diz, a propósito, Gaspar Nero, professor do Instituto Superior Técnico que “ A Calçada à Portuguesa corresponde a uma solução técnica de princípios simples, que veio a revelar-se inovadora e dotada de enormes vantagens funcionais, económicas, estéticas e artísticas que (…) beneficia e homogeniza a leitura de uma cidade por vezes tão mal tratada pelo seu edificado”.
O projecto de Lei que hoje discutimos propõe exactamente a defesa e a valorização da Calçada de Vidraço à Portuguesa, enquanto manifestação antiga, autêntica, original e singular do nosso património cultural.
Propõe por isso o texto em discussão a criação de uma Comissão constituída por representantes do Poder Central, (Ministérios da Economia, da Cultura e das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente) do Poder Regional e Local (Associação Nacional dos Municípios Portugueses, Câmara Municipais e áreas protegidas) e ainda por representantes das associações de exploradores das pedreiras de calçada para este fim específico e por representantes das estruturas representativas dos trabalhadores do sector.
Atribui-se a esta comissão entre outras funções, a certificação e a fiscalização da autenticidade da exploração e produção da calçada de vidraço, a sua divulgação e promoção e ainda a formação e valorização da profissão de calceteiro.
Reconhecida a especificidade destas pedreiras, propõe-se que seja criado um regime especial de licenciamento de pesquisa e exploração que salvaguarde o cumprimento das normas em vigor no que à segurança, saúde e protecção do ambiente diz respeito.
A comissão deverá propor ao Governo, no prazo máximo de 60 dias a partir da sua nomeação, o projecto de estatutos, definidores da sua estrutura, serviços, competência e funcionamento e ainda uma proposta de regime especial de pedreiras de Calçada à Portuguesa.
A Comissão terá a sua sede em Leiria e naturalmente poderá abrir delegações em qualquer outro espaço do território nacional e será tutelada pelo Ministério da Economia.
A Comissão deverá ainda designar um representante na Comissão Nacional para a Protecção dos Ofícios e das Micro Empresas Artesanais criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 4 de 1 de Fevereiro de 2000.
Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,
O projecto de diploma que está em apreciação é o nosso contributo para assegurar a defesa e a valorização deste bem cultural que é a Calçada à Portuguesa.
Estamos disponíveis para avaliar todas as restantes propostas.
Estamos disponíveis para analisar todas as contribuições que, em sede de especialidade, queiram apresentar.
Defendemos, no entanto, que o quadro legal deve sustentar estes pressupostos que acabámos de enunciar, garantindo soluções justas, equilibradas e adequadas à actividade económica dos trabalhadores do sector e das suas famílias que retiram daí o seu sustento.
A terra dá-lhes, generosamente, o que a vida inúmeras vezes lhe roubou.
Connosco poderão contar.
Espero que seja essa também a vontade desta Assembleia.
Disse.