Alteração à Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto (Lei de protecção das crianças e jovens em perigo)
Intervenção de Jorge Machado
22 de Fevereiro de 2006
Sr. Presidente,
Sr. as e Srs. Deputados:
«Os Estados Partes comprometem- se a garantir à criança a protecção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e os deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.»
Assim versa o n.º 2 do artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Já a nossa Constituição diz que «As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições».
O Governo tem, assim, a obrigação de proporcionar às crianças e jovens em perigo as condições necessárias e adequadas para a sua protecção e integral desenvolvimento. Contudo, a realidade demonstra que existem ainda muitas insuficiências nesta área de intervenção.
Nos últimos cinco anos, o número de crianças e jovens em risco aumentou significativamente. O abandono e o insucesso escolares, os maus tratos físicos, os abusos sexuais, a fome, a negligência familiar são, entre outras, as situações mais sinalizadas. Esta realidade é o reflexo da progressiva degradação da situação social e laboral no nosso país, que transforma as crianças e os jovens em risco no elo mais fraco e mais vulnerável de uma realidade social, marcada também pelo agravamento dos factores de exclusão social e da pobreza.
De acordo com o recentemente relatório da UNICEF (2005), Portugal apresenta, na faixa etária das crianças e jovens com menos de 18 anos, uma taxa de pobreza superior à média dos 25 países da OCDE. Com efeito, encontram-se nestas condições cerca de 320 000 crianças e jovens, o que corresponde a cerca de 15,6%, enquanto na Dinamarca e Finlândia essas percentagens não excedem, respectivamente, 2,4% e 3,4%.
As causas que levam a estes resultados são o aumento do desemprego, os baixos salários e o ciclo de pobreza e de exclusão social que atingem milhares de famílias.
Esta triste realidade reflecte-se no número de processos que as comissões de protecção de crianças e jovens em risco têm hoje em dia. Na verdade, o volume de processos praticamente triplicou nestes últimos três anos. O aumento do número de processos de 15 970, em 2002, para cerca de 45 000, em 2004, revela a dramática realidade sobre a qual urge intervir.
A preocupante realidade e a dimensão dos problemas exigem o reforço urgente de intervenção por parte do Estado, que não pode continuar a demitir-se das suas responsabilidades na promoção dos direitos das crianças e dos jovens.
Este projecto de lei é o resultado do contacto com diversas comissões de protecção de crianças e jovens em risco. Destes encontros, constatamos que, não obstante o empenho de muitos dos seus membros, estas se encontram com diversas carências e dificuldades.
De todas elas, queremos destacar a falta de técnicos a tempo inteiro, designadamente os destacados pelos Ministérios da Segurança Social e da Educação e também dos serviços públicos de saúde, que permitiriam dar cabal resposta ao crescente número de processos e situações, mas também queremos destacar a inexistência dos meios financeiros suficientes e insuficientes estruturas de apoio social às crianças e às suas famílias.
Temos consciência de que a eliminação de uma parte significativa destas situações de risco passa por uma profunda alteração nas políticas económicas e sociais que possibilitem a criação das adequadas condições de vida e de trabalho aos pais. Não há soluções que resolvam em absoluto a contradição das actuais políticas neoliberais, que desvalorizam o trabalho e os salários, que aumentam o desemprego e a precariedade e que produzem sempre mais pobres do que aqueles que as instituições podem recuperar, fruto da sua acção e intervenção.
O combate à pobreza passa por uma política que promova o emprego, a formação profissional, uma mais justa repartição do rendimento nacional, o direito à habitação e o fortalecimento dos sistemas de segurança social, saúde e ensino.
Contudo, temos também consciência de que, enquanto não tivermos uma efectiva política de esquerda que faça uma mais justa repartição da riqueza e que promova a igualdade de direitos, iremos ter cada vez mais situações de crianças e jovens em risco.
Assim sendo, é essencial que o Estado assuma as suas obrigações.
As comissões de protecção de jovens e crianças em perigo, pelo papel que desempenham, não podem continuar na situação em que se encontram.
A título de exemplo, que são bem elucidativos dos problemas sentidos na generalidade das comissões, estacamos: a Comissão de Protecção de Jovens e Crianças em Risco do Porto que tem mais de 700 pro cessos abertos e uma clara insuficiência de técnicos a tempo inteiro, havendo mesmo técnicos com mais de 100 processos; a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Lisboa Norte ficou sem papel para trabalhar e são os técnicos que limpam as instalações daquela Comissão; em Évora, além da falta de instalações adequadas, sobressai a falta de técnicos — esta Comissão, que tinha em 2005 mais de 200 processos, não tem um único técnico a tempo inteiro e não estão representados na Comissão os representantes do Ministério da Educação e dos serviços da saúde.
É essencial que as comissões de protecção de crianças e jovens em risco tenham mais meios financeiros para as situações de emergência. A falta de recursos financeiros, além de dificultar a intervenção das comissões, cria situações tais, como o caso de uma criança que, depois de maus tratos e tendo sido recolhida pela comissão de protecção, a comissão não tinha o dinheiro suficiente para pagar a alimentação dessa criança. Nesta situação, como em muitas outras, foi o técnico que pagou do seu próprio bolso a refeição da criança.
São estas as condições em que trabalham a generalidade das comissões de protecção de crianças e jovens em perigo, pelo que, antes de apontar o dedo acusador aos técnicos das comissões, é importante, em primeira instância, perguntar se o Estado assumiu, ou não, as suas responsabilidades e deu os meios técnicos, humanos e financeiros suficientes para que estas comissões possam desempenhar cabalmente o seu papel.
O Governo anunciou, no Dia Mundial da Criança, que ira contratar 128 técnicos para as comissões. Estes irão ser contratados por outras empresas que depois cedem os técnicos às comissões de protecção — é o chamado recurso ao outsourcing.
Além de serem claramente insuficientes face às necessidades que as comissões enfrentam, esta forma de contratação é uma nova e inaceitável forma de manter estes trabalhadores precários e levanta um conjunto de problemas quanto à autonomia e independência dos mesmos e ao seu relacionamento com a empresa.
Sr. Presidente,
Sr. as e Srs. Deputados:
O Partido Comunista Português está ciente de que é preciso mudar as condições em que trabalham as comissões de protecção, dotando-as dos mecanismos legais adequados e eficazes para a missão que desempenham, mas também dotando-as dos meios técnicos e humanos necessários.
Nestes termos e com este objectivo, o PCP apresentou, no passado dia 24 de Maio de 2005, um projecto de lei. Com este projecto, pretende-se que o reforço das comissões de protecção seja uma realidade e não um mero anúncio. Estas comissões, apesar de estarem contempladas na lei como último recurso, são quem garante o trabalho efectivo junto das pessoas e dependem, inaceitavelmente, de trabalho voluntário e das características pessoais de quem nelas está envolvido, numa injustificada desresponsabilização do Estado.
Este projecto que apresentámos há quase um ano acolheu a concordância quer junto das comissões, quer junto das populações, quer junto de outras forças políticas, que acabaram por reproduzir algumas das nossas propostas nos seus projectos.
Assim, é necessário alterar a Lei n.º 147/99, entre outros, nos seguintes aspectos: é preciso responsabilizar as estruturas da administração central — Ministérios do Trabalho e Solidariedade Social, Educação e Saúde no destacamento obrigatório de técnicos a tempo inteiro; é preciso reforçar os quadros técnicos, sempre que seja excedido o rácio de um técnico por cada 50 processos; é preciso clarificar o estatuto dos membros das comissões e das suas competências, o qual deve manter a sua ligação à comunidade; é urgente definir o quadro financeiro do seu funcionamento; é preciso clarificar a competência territorial, em caso de institucionalização das crianças e dos jovens; e, por fim, é necessário alterar algumas das disposições relativas ao consentimento, nomeadamente quando este seja impossível de obter ou tenha sido retirado pelos pais.
Sr. Presidente,
Sr. as e Srs. Deputados:
O Partido Comunista Português, aquando da apresentação do presente projecto de lei, sabia que a situação que se vivia nas comissões de protecção era preocupante. A realidade nua e crua dos factos que entretanto ocorreram vieram, infelizmente, dar-nos razão.
Queremos, com esta nossa iniciativa, dar um contributo sério para melhorar o funcionamento das comissões de protecção de crianças e jovens em perigo e entendemos que, dada a importância que esta matéria tem, todos — absolutamente todos — são chamados a este debate para apresentar novas propostas e ideias que contribuam para este, acreditamos, justo objectivo.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Lamentavelmente, o Partido Socialista refugia-se neste debate.
Primeiro, afirmou que o Governo já tomou as medidas necessárias para combater a situação que se vive actualmente nas comissões de protecção de menores. Contudo, Srs. Deputados, em particular os do Partido Socialista, a única coisa que se sabe quanto aos tais 128 técnicos é que eles vão ser contratados por via de outsourcing – uma empresa contrata-os e, depois, cede o seu trabalho às comissões de protecção de menores. E sobre esta questão os Srs. Deputados não disseram uma palavra, o que é curioso, porque este modelo de contratação põe em causa a autonomia e a independência destes técnicos e, assim, comprometem claramente o seu trabalho.
Segundo, o PS centrou a questão na falta de oportunidade deste debate. Só que os Srs. Deputados do PS não podem esquecer que o projecto de lei do PCP tem uma datam, 24 de Maio de 2005, ou seja, é anterior a qualquer audição realizada na Subcomissão para a Igualdade de Oportunidades.
O PCP não tem culpa de ter feito este trabalho previamente, nem de ter realizado um conjunto de audições muito significativo com as comissões de protecção de menores, comissões que vieram relatar-nos e sinalizar problemas específicos quanto ao seu funcionamento. Portanto, se os Srs. Deputados do PS estão à espera que a Subcomissão elabore o seu trabalho, não temos nada contra, mas nós fizemos o nosso trabalho!
O projecto de lei do PCP não é extemporâneo, foi pensado e articulado com as comissões de protecção de menores. Não tem cabimento, por isso, falar em falta de oportunidade do debate.
A pergunta que vos faço é esta: concordam, ou não, que uma comissão de protecção de menores que tenha em mãos 700 processos não pode funcionar sem técnicos a tempo inteiro? Consideram que um técnico pode tratar de mais de 100 processos de acompanhamento de menores? Isto é de tal maneira óbvio que «entra pelos olhos adentro», Srs. Deputados!
Pergunto ainda se concordam, ou não, com uma outra questão que é muito problemática para as comissões de protecção de menores, a do consentimento. Não lhes parece que isso é demasiado óbvio para ser tratado já, nesta Assembleia, com este projecto?
Queria que o Partido Socialista clarificasse a sua posição e partisse para a discussão e votação desta iniciativa com um espírito aberto. Admitam que o projecto de lei do PCP trata de problemas urgentes e, depois, a partir das conclusões da Subcomissão para a Igualdade de Oportunidades, introduzam outros acrescentos e melhorias no nosso projecto. Estamos dispostos a fazê-lo, mas os Srs. Deputados do PS entraram nesta discussão com um sinal claramente negativo.
Deixo-lhes uma última pergunta, e os portugueses irão avaliar este comportamento do Partido Socialista: no fim das audições da Subcomissão para a Igualdade de Oportunidades, qual é o projecto que o Partido Socialista pretende discutir? Se chumbarem todos os projectos de lei que estão em discussão hoje, claramente não vai haver mais nenhum, e esta é uma questão muito importante para que as comissões de protecção de menores funcionem!
Portanto, exige-se outro comportamento por parte do Partido Socialista, que aprove, na generalidade, estas iniciativas e parta para a discussão na especialidade com um espírito aberto e construtivo.
Recolhendo os nossos contributos e os da Subcomissão para a Igualdade de Oportunidades, com certeza iremos elaborar uma iniciativa legislativa cada vez melhor.