Declaração política, a propósito da eleição, no próximo dia 2 de Fevereiro, dos quatro elementos indicados pelo PS e pelo PSD para integrar a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, chamando a atenção para o facto de essa Entidade não dar um mínimo de garantias de independência
Intervenção de António Filipe
1 de Fevereiro de 2006

 

 

 

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Como se sabe, está marcada para amanhã, 2 de Fevereiro, a eleição dos quatro elementos indicados pelo PS e pelo PSD para integrar a ERC — Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

Esta Entidade, nos termos da Constituição e da lei, é uma entidade administrativa independente, a quem compete assegurar nos meios de comunicação social: o direito à informação e a liberdade de imprensa; a não concentração da titularidade dos meios de comunicação social; a independência perante o poder político e o poder económico; o respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais; o respeito pelas normas reguladoras das actividades de comunicação social; a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião; e o exercício dos direitos de antena, de resposta e de réplica política.

Não é tarefa pequena. Nunca uma entidade concentrou tantos poderes de regulação no sector da comunicação social e é conhecida a transcendente importância democrática dessa função num quadro de múltiplas pressões económicas e políticas susceptíveis de pôr em causa princípios democráticos estruturantes, como o respeito pela liberdade de imprensa, pelo pluralismo ou pelos direitos dos cidadãos.

Acontece, porém, que, como também é sabido, por acordo entre o PS e o PSD, estas relevantíssimas funções não foram entregues a uma entidade que, pela sua natureza e composição, possa dar um mínimo de garantias de independência, mas a uma espécie de comissariado político resultante de negociações bilaterais entre os dois partidos do bloco central.

Como aqui dissemos no passado mês de Setembro, aquando da discussão da lei que criou a ERC, «o negócio celebrado entre o PS e o PSD para repartirem entre si o monopólio da regulação do sector da comunicação social deita por terra quaisquer expectativas que pudessem existir quanto à possibilidade de constituição de um órgão regulador da comunicação social que desse as garantias de independência, de idoneidade e de credibilidade indispensáveis para a regulação de um sector que está tão ameaçado por interesses de natureza comercial e por apetites de controlo político e que assume uma transcendente importância democrática.»

É preciso repetir, para que não se esqueça, que a Alta Autoridade para a Comunicação Social, hoje tão vilipendiada pelo PS e pelo PSD, nasceu, precisamente, de um acordo entre esses dois partidos na revisão constitucional de 1989.

Foi aí que ficou decidido entre ambos que esse órgão seria integrado por um magistrado,

por cinco elementos designados pela Assembleia da República, por três membros designados pelo Governo e por quatro elementos representativos da opinião pública, da comunicação social e da cultura.

Essa criação — sublinho —, resultante de um acordo entre o PS e o PSD, determinou a extinção do Conselho de Comunicação Social e do Conselho de Imprensa e foi um retrocesso em matéria de regulação democrática da comunicação social.

Na primeira versão da lei que lhe deu corpo, aprovada em 1990, a maioria absoluta de que o PSD então dispunha decidiu que os representantes da opinião pública, da comunicação social e da cultura, fossem cooptados pelos restantes. E, em 1998, apenas um desses elementos continuou a ser cooptado, sendo os restantes designados, respectivamente, pelo Conselho Nacional do Consumo, pelos jornalistas com carteira profissional e pelas organizações patronais do sector.

Ao longo da sua existência, a Alta Autoridade para a Comunicação Social viu sucessivamente alargadas as suas competências legais, mas, apesar dos insistentes apelos dos seus membros, nunca foi dotada com os meios jurídicos, materiais e humanos indispensáveis para poder cumprir com eficácia as suas funções.

E foram precisamente os dois partidos que criaram a Alta Autoridade, que decidiram, em alternância, a maioria dos seus membros e que nunca lhe garantiram condições para ser eficaz, que passaram a criticar a Alta Autoridade, alegando precisamente a sua ineficácia.

Perguntar-se-á, então, por que razões os dois partidos do neo-rotativismo, que tiveram sempre a possibilidade de decidir a maioria da Alta Autoridade, se deram mal com ela. Por uma razão, afinal, bem simples: é que, não coincidindo forçosamente no tempo a maioria governamental com a maioria da Alta Autoridade, esta podia funcionar em contraciclo e tomar posições susceptíveis de desagradar ao Governo de turno. Por outro lado, porque apesar de a maioria dos membros da Alta Autoridade ser indicada pelos dois partidos que a criaram, o facto de ainda assim existir algum espaço para a independência e para um esforço sério de regulação fez com que a Alta Autoridade fosse, a breve trecho, repudiada pelos seus criadores.

A questão é que, para o PS e para o PSD, tudo o que fuja ao seu estrito controlo já é pluralismo a mais.

E, como nem um nem outro estão minimamente interessados numa regulação da comunicação social que possa beliscar, ainda que ao de leve, as suas ambições de hegemonia política, trataram de se entender, para substituir a entidade reguladora por um comissariado político restrito que conviesse a ambos.

E, assim, em nome de uma regulação mais eficaz, o PSD e o PS trataram de expurgar a entidade reguladora.

Foi expulsa a magistratura, foi banida a opinião pública, foi extinta a comunicação social e foi liquidada a cultura. Ficaram só o PS e o PSD. A ERC ficou composta por cinco elementos. O PS escolhe dois, o PSD escolhe outros dois. E esses quatro escolheriam um quinto elemento.

A lei que concretizou esta solução, e que foi mais uma vez aprovada ao ritmo das negociações bipartidárias, não diz em parte alguma como seria ultrapassada uma situação em que os quatro membros eleitos pela Assembleia da República não se entendessem para cooptar o quinto elemento e subsistisse uma situação de bloqueio de dois contra dois. E não diz, porque tanto o PS como o PSD sabem que não é preciso.

No debate que aqui mesmo se realizou em 14 de Setembro do ano passado, tive a oportunidade de dizer o que hoje repito: «Já todos percebemos que, quando o PS e o PSD escolherem os qua tro primeiros elementos, impõem-lhes desde logo como condição designarem um quinto elemento já previamente escolhido pelas direcções partidárias». Como bem se vê, os lamentáveis factos já conhecidos vieram dar-nos inteira razão.

Quando os quatro candidatos do PS e do PSD se prestaram à farsa de ser ouvidos na 1.ª Comissão para que fossem verificados os seus requisitos para o exercício do cargo — onde não esconderam, aliás, as suas estreitas afinidades com os partidos que os escolheram —, já meia Lisboa sabia qual seria o quinto elemento que aqueles, fazendo uso da sua independência, iriam escolher.

E, no dia seguinte, já não apenas Lisboa inteira, mas todo o País sabia o nome desse quinto elemento, divulgado em caixa alta no Correio da Manhã, não desmentido por ninguém e confirmado implicitamente por todos, como tendo sido uma escolha feita não pelos quatro candidatos que ainda nem foram eleitos mas mais precisamente pelo Eng.º Sócrates e pelo Dr. Marques Mendes, não tendo os membros do quarteto outro remédio senão aceitar e cooptar em conformidade.

O que diz a lei é que a ERC é independente no exercício das suas funções, definindo livremente a orientação das suas actividades, sem sujeição a quaisquer directrizes ou orientações por parte do poder político.

Só que a ERC ainda nem sequer foi eleita e já a sua independência anda em cacos pelo chão.

Nada nos move de pessoal contra as quatro personalidades indigitadas nem contra o quinto elemento que, antes de o poder ser, já o era. Mas não podemos deixar de dizer, com frontalidade, que quem se sujeita a tamanho enxovalho público não dá garantias de exercer funções de regulação da comunicação ocial com a isenção e a independência que seriam exigíveis.

O Eng.º António Guterres disse aqui, um dia, que não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira impressão. Só que a ERC, tal como o cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra, ainda não teve a primeira oportunidade e já conseguiu impressionar toda a gente.

Uma entidade reguladora independente que aceita receber dos directórios partidários ordens estritas quanto à primeira decisão que será chamada a tomar e que é nada menos do que a designação e eleição de quem há-de ser o seu próprio presidente, não pode deixar de causar uma profunda impressão.

Uma ERC que nasce assim, torta, não dá nenhumas garantias de que algum dia se possa endireitar. O PS e o PSD podem repartir entre si a totalidade dos membros da ERC, segundo as regras que acordaram e impuseram. Têm, seguramente, votos de sobra para o efeito. Só que, com esse procedimento, cortam pela raiz qualquer hipótese de credibilidade dos mecanismos de regulação do sector da comunicação social e dão mais uma machadada num regime democrático que, por estas e por outras, vai dando sinais preocupantes de fragilidade e corrosão.

 

(…)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Luís Fazenda,

Lamento decepcioná-lo, mas creio que não há registo de mais pedidos de esclarecimento, o que é a confirmação implícita de tudo o que acabo de dizer.

Aliás, nem era preciso dar esta confirmação hoje, porque está dada, visto que o quinto elemento,

que supostamente seria escolhido pelos quatro elementos da entidade independente, já foi, efectivamente, escolhido nas sedes do PS e do PSD em negociações bipartidárias.

Portanto, a questão que se coloca é esta: como é possível aceitar que, em relação a uma entidade independente e que tem funções de regulação independente num sector tão importante como é o da comunicação social, ainda antes de ter sido eleita, já se saiba que abdicou da sua primeira decisão fundamental, que é a de cooptar, de forma independente, nos termos da lei, o quinto elemento?

Este é o pior sinal que pode ser dado, é a revelação de que não estamos perante uma entidade independente, mas perante uma entidade que, já se percebeu, resulta de uma estrita negociação partidária, e de que as pessoas que a integram estão escolhidas precisamente pelos dois partidos para cumprir um andato dos dois partidos.

A concretizar-se esta operação, isto é óbvio perante todos.

Por vezes, costuma dizer-se que «à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecê-lo». Ora, esta entidade reguladora nem sequer as aparências mantém, ou seja, não é séria, nem parece!

É, pois, uma evidência que estamos perante, por um lado, um monumental retrocesso em matéria de regulação da comunicação social e, por outro, um enxovalho público — e um enxovalho público para todo o regime, isto é, não apenas para as personalidades que vão integrar a Entidade Reguladora para a Comunicação Social e que dão este espectáculo de subserviência perante o País, mas também para esta Assembleia e para o regime democrático.

Estamos, portanto, perante algo absolutamente lamentável, que de forma alguma deveria acontecer, mas que, infelizmente, resulta desta forma de fazer política, em Portugal, por parte dos dois maiores partidos, que é a de procurarem repartir entre si a ocupação integral de todos os lugares do aparelho de Estado, com consequências muito graves para a credibilidade da própria democracia.