Criação da ERC — Entidade Reguladora para a Comunicação Social, extinguindo a Alta Autoridade para a Comunicação Social
Intervenção de António Filipe
14 de Setembro de 2005
Sr. Presidente,
Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares,
Sr. as e Srs. Deputados:
Ultimamente, têm sido muito falados alguns negócios que estarão a agitar o sector da comuni-cação social. Pois bem, estamos hoje na presença daquele que será porventura o mais grave de todos eles.
O negócio celebrado entre o PS e o PSD para repartirem entre si o monopólio da regulação do sector da comunicação social deita por terra quaisquer expectativas que pudessem existir quanto à possibilidade de constituição de um órgão regulador da comunicação social que desse as garantias de independência, ido-neidade e credibilidade indispensáveis para a regulação de um sector que está tão ameaçado por interes-ses de natureza comercial e por apetites de controlo político e que assume uma transcendente importância democrática.
O PSD anda, ao que parece, muito preocupado com negócios que o Governo, em seu entender, andará a fazer, à socapa, envolvendo uma estação privada de televisão, só que se esqueceu de incluir nas suas preocupações o negócio que ele próprio fez com o Governo, à socapa, e que envolve todo o sector da comunicação social.
O PS e o PSD não se cansam de falar na necessidade de uma entidade plural e indepen-dente, só que, pelos vistos, para o PS e para o PSD o pluralismo começa e acaba nas suas próprias frontei-ras e as garantias de independência existem desde que o PS e o PSD se ponham de acordo quando à sua existência.
Ou seja, o PS e o PSD, enquanto representantes desse verdadeiro partido informal que é o chamado «bloco central dos interesses», e cuja coloração alterna entre tons de rosa e de laranja que os portugueses têm cada vez mais dificuldades em distinguir, confundem democracia pluralista com «nego-cismo» partidário, sacrificam valores democráticos em nome de estritos interesses clientelares e descredibi-lizam o funcionamento da democracia aos olhos dos cidadãos, que acreditam cada vez menos naqueles que pretendem exercer o poder em seu nome.
A lei que hoje o PS e o PSD se preparam para aprovar sobre a entidade reguladora da comunicação social é mais uma machadada na já tão abalada credibilidade da vida política.
Em 1989, o PS e o PSD entenderam-se para criar a Alta Autoridade para a Comunicação Social, condu-zindo à extinção do Conselho de Imprensa e do Conselho da Comunicação Social, mas falam hoje da Alta Autoridade para a Comunicação Social como se nunca tivessem sido vistos ou achados na sua criação, na sua composição, nas suas competências ou nos meios que foram postos à sua disposição para cumprir as suas atribuições. É preciso, por isso, lembrar que a Alta Autoridade para a Comunicação Social resultou de um negócio celebrado entre o PSD e o PS e que toda a legislação que a rege foi aprovada pelos governos e pelas maiorias parlamentares do PSD e do PS.
É verdade, sim, Sr. Deputado Alberto Arons de Carvalho, como, aliás, toda a gente sabe!
Só que, como na Alta Autoridade para a Comunicação Social existem, ainda assim, alguns elementos que fogem aos estritos critérios de nomeação partidária pretendidos pelos partidos do bloco central, há que trocar esta entidade por uma outra, composta por apenas cinco elementos, em que quatro são escolhidos pelo PS e pelo PSD, sendo o quinto cooptado pelos restantes. Para o PS e para o PSD é assim que se assegura o pluralismo.
Não se diz o que acontecerá se os quatro membros eleitos não se entenderem para cooptar o quinto elemento e subsistir uma situação de bloqueio de dois contra dois. Não se diz, porque não é preciso, por-que já todos percebemos que, quando o PS e o PSD escolherem os primeiros quatro elementos, impõem-lhes, desde logo, como condição designarem um quinto elemento já previamente escolhido pelas direcções partidárias.
Porque, se assim não for, de acordo com os critérios dos partidos do bloco central, não estarão garantidas as condições de independência da entidade reguladora.
Mas não vá o diabo tecê-las, e, por isso, as condições de eleição dos membros da entidade reguladora são rigorosamente blindadas. Só os dois maiores partidos podem apresentar candidaturas, devido à exi-gência de um mínimo de 20 Deputados para o efeito. Não fossem os Deputados do PS ou do PSD ficar descontentes com as escolhas das suas direcções e votar em alguma personalidade indicada por outro partido, reserva-se, desde já, para os dois maiores partidos não só a possibilidade de eleger mas até mes-mo a possibilidade de apresentar candidaturas.
Depois, as candidaturas são apresentadas e instruídas e, cinco dias antes da eleição, os candidatos serão sujeitos a uma audição parlamentar. E aqui entramos claramente no domínio da farsa.
Mas, para além disso, não fosse dar-se o caso de algum dos membros da entidade reguladora se arro-gar o direito de agir com independência relativamente aos partidos que o elegeram, as garantias de inamo-vibilidade são reduzidas a pó. O artigo 17.º da proposta de lei diz que os membros da entidade reguladora são inamovíveis, mas, depois, o artigo 21.º demonstra que o não são, na medida em que os mesmos dois terços de Deputados que os elegeram podem destitui-los a todo o momento, desde que considerem ter havido uma grave violação dos seus deveres estatutários, sendo certo que essa maioria de Deputados é o único juiz dessa violação e do seu veredicto não há apelo nem agravo.
Estranha inamovibilidade e estranhas garantias de independência!
Qualquer membro da entidade reguladora pode desagradar ao PS ou ao PSD, desde que desagrade a um de cada vez, não pode é atrever-se a desagradar a ambos ao mesmo tempo.
É a lógica da alternância e da partilha do poder levada às últimas consequências.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Para além desta questão, a da independência e do plura-lismo da entidade reguladora, que para o PCP é uma questão determinante, há outros aspectos da propos-ta de lei que nos merecem sérias objecções.
Não me referirei a muitas perplexidades que a proposta de lei suscita, ou seja, disposições incompreen-síveis, inexplicadas ou mesmo inexplicáveis, que são em grande número, e que não deixaremos de apontar em sede de especialidade. Referir-me-ei agora, apenas, a aspectos que pela sua relevância devem ser mencionados desde já.
Existe, desde logo, uma manifesta discrepância entre a composição numérica do conselho regulador — os cinco elementos — e a vastidão das competências que lhe são cometidas nas 36 alíneas do artigo 23.º, a que acrescem as insólitas funções de provedoria previstas no artigo 50.º. Não se trata, na sua maioria, de atribuições que possam ser remetidas para técnicos ou assessores; são atribuições decisórias de grande importância. E não há ao cimo da terra cinco super-homens ou cinco super-mulheres que possam receber todas essas competências e exercê-las, de forma atempada, sem prejuízo da ponderação e do rigor que seriam exigíveis.
A subdimensão da composição e a sobredimensão das atribuições e competências corre o sério risco de conduzir a uma situação em que a entidade reguladora, mesmo abstraindo de juízos de valor sobre a sua composição concreta, fique remetida à paralisia, à morosidade ou à incapacidade prática para exercer muitas das suas competências, o que, a acontecer, é mais de meio caminho andado para o des-crédito total de uma entidade reguladora.
Há ainda outros aspectos que merecem desde já ser referidos.
A proposta de lei diz que a entidade deve assegurar o regular e eficaz funcionamento dos mercados de imprensa escrita e audiovisual em articulação com a Autoridade da Concorrência. Como se processa essa articulação? A proposta de lei não diz. Não sabemos.
A proposta de lei diz que a entidade colabora na definição das políticas e estratégias sectoriais que fun-damentam a planificação do espectro radioeléctrico, sem prejuízo das competências do ICP-ANACOM. Como se processa essa colaboração? Não diz. Não se sabe.
A proposta de lei diz que a entidade pode ter delegações ou agências. Onde, como e para fazer o quê? A proposta de lei não diz. Não se sabe.
A proposta de lei refere-se aos regulamentos da entidade reguladora. Que regulamentos são esses? Sobre que matérias incidem? Quais são os seus efeitos? A proposta de lei também não esclarece.
A proposta de lei diz ainda que a entidade reguladora pode adoptar decisões, oficiosamente ou median-te queixa de um interessado, em relação a uma entidade individualizada que prossiga actividades de comu-nicação social e que essas decisões têm carácter vinculativo. Mas não diz que decisões são essas, sobre que matérias podem incidir, nem que consequências podem ter.
Por fim — para não vos maçar mais, e porque o tempo também não o permite —, a proposta de lei prevê que a entidade reguladora possa proceder a averiguações e a exames em qualquer entidade ou local. Assim, perguntamos: sem mais nem menos? A entidade reguladora pode entrar por uma redacção e vascu-lhar as gavetas ou os ficheiros dos jornalistas, podendo devassar matérias sujeitas a sigilo profissional?
A entidade reguladora pode fazer o que as autoridades policiais não podem?
O que o Governo pretende criar é uma super-polícia da comunicação social?
A proposta de lei não é minimamente esclarecedora neste ponto.
Em suma, Sr. Presidente e Srs. Deputados, estamos perante uma proposta de lei que vai no sentido contrário ao que seria desejável e adequado para garantir a existência de uma entidade reguladora da comunicação social credível, com atribuições, competências e meios razoáveis e compatíveis que garantis-se de facto os valores constitucionais e democráticos que devem conformar a actividade do sector da comunicação social.
A proposta de lei não dá nenhumas garantias de que a entidade reguladora possa salvaguardar esses valores, vai no mau sentido, e, por isso, só pode merecer a nossa firme oposição.
(...)
Sr. Presidente,
A minha intervenção será brevíssima — aliás, agradeço, desde já, ao Partido Ecologista «Os Verdes» a cedência de 2 minutos para o efeito —, apenas para referir dois aspectos.
Há pouco, o Sr. Deputado Arons de Carvalho afirmou que não era verdade o que eu disse na minha pri-meira intervenção relativamente às responsabilidades do PS e do PSD quanto à Alta Autoridade para a Comunicação Social, quando é evidente que a Alta Autoridade foi criada na revisão constitucional de 1989, pelo PS e pelo PSD, que o PSD aprovou sozinho — é verdade! — a lei de 1990 e que o PS, quando foi Governo, salvo erro em 1998, alterou disposições da lei de 1990.
O que eu disse foi que toda a legislação sobre esta matéria foi aprovada em sede de revisão constitu-cional, pelo PS e pelo PSD, e pelas maiorias que alternadamente existiram quer do PS, quer do PSD, mas ambos os partidos têm responsabilidades indeclináveis na configuração daquela que é hoje a Alta Autori-dade.
Mas há uma segunda questão mais relevante para o que hoje nos ocupa, que é a questão suscitada pelo Sr. Ministro relativamente à independência e ao pluralismo de um órgão regulador da comunicação social.
O Sr. Ministro disse que nós pretendíamos uma composição parlamentarizada, que nós queríamos fazer do órgão regulador um «miniparlamento». Ora, devolvo essa acusação, porque o PS é que pretende confi-gurar a entidade reguladora como o Parlamento que o PS desejaria que existisse. É que o PS, designada-mente com as propostas que tem, desde há muitos anos, relativamente à legislação eleitoral, com os enten-dimentos que tem tido, designadamente em sede de revisão constitucional, que são sempre, invariavelmen-te, com o PSD, com os consensos alargados na Câmara de que fala mas que, na prática, se referem sem-pre a entendimentos entre o PS e o PSD — e isto é, mais uma vez, aqui comprovado —, é que gostaria que toda a vida política portuguesa, toda a vida parlamentar portuguesa se reduzisse à presença do PS e do PSD. E é isto que o PS transpõe para a entidade reguladora, a menos que nos venha demonstrar que assim não é, ou seja, que uma entidade reguladora com cinco elementos, sendo que quatro deles são elei-tos em lista fechada, por acordo entre o PS e o PSD, e que esses quatro vão cooptar o quinto, não funciona assim. O PS tem de demonstrar que não está a pretender reservar para o PS e para o PSD, por acordo entre ambos, o monopólio da regulação do sector da comunicação social. E isto é que o Sr. Ministro não pode desmentir.
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Declaração de voto, enviada à Mesa para publicação, relativa à votação da proposta de lei n.º 11/X
O Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português votou contra a proposta de lei do Governo que cria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e que extingue a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS). Votou contra em votação final global e votou também contra, na especialidade, todas as disposições aprovadas, resultantes de acordo entre o PS e o PSD, com o apoio do CDS-PP.
A votação assumida pelo PCP tem em conta, obviamente, o conteúdo muito negativo do diploma em causa, mas pretende igualmente expressar um firme protesto pela forma como decorreu o pseudo-debate na especialidade.
Na verdade, o processo de discussão na especialidade limitou-se a negociações bilaterais entre o PS e o PSD, completamente à margem da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, competente em razão da matéria, tendo esta sido confrontada com um conjunto de propostas de alteração ao texto proposto inicialmente pelo Governo, não para iniciar o debate na especialidade que deveria ter lugar, mas pura e simplesmente para «carimbar» a sua aprovação na especialidade, remetendo-o para Plenário. Tanto assim foi que a maioria de dois terços PS/PSD recusou a proposta do PCP de ouvir as entidades que desejavam pronunciar-se sobre a matéria — nomeadamente o Sindicato dos Jornalistas e a Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social —, forçando a votação na especialidade, sem que houvesse a possibilidade de efectuar qualquer discussão séria e participada.
Perante esta atitude prepotente e desvalorizadora do papel da Assembleia da República no processo legislativo, imposta pelo «bloco central» PS/PSD, o PCP decidiu votar contra todas as disposições do texto submetido para votação na especialidade e, consequentemente, votou contra em votação final global.
Em função do seu conteúdo, a criação desta Entidade Reguladora para a Comunicação Social, desenhada em conjunto pelo PS e pelo PSD, representa uma forte machadada na possibilidade de existir em Portugal uma entidade que, de forma independente e isenta, desempenhe as relevantes funções de regulação de um sector tão importante como é a comunicação social.
Em vez da regulação independente, isenta, plural e democrática, o PS e o PSD preferiram entender-se para fazer valer os seus estritos interesses partidários, criando uma Entidade Reguladora repartida exclusivamente entre ambos, incluindo apenas elementos da sua estrita confiança política e pondo em causa, inclusivamente, a sua inamovibilidade.
Este negócio entre o PS e o PSD para reservarem para si o controlo da «regulação» da comunicação social, criando uma Entidade que só por ironia poderá ser designada como independente, representa um triunfo do negocismo partidário e do clientelismo sobre a democracia pluralista e põe seriamente em causa a possibilidade de existência de uma regulação democrática da comunicação social.
(29 de Setembro de 2005)