Política para o audiovisual e a televisão
Intervenção de Bruno Dias na Assembleia da República
25 de Junho de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

As propostas de lei que o Governo hoje traz a Plenário constituem mais uma decisiva etapa, deste processo que é provavelmente o mais profundo e devastador ataque ao serviço público de televisão de que há memória em Portugal.

Desde a primeira hora que tem sido evidente, quanto à política para o audiovisual e a televisão, qual é o supremo objectivo deste Governo e desta maioria parlamentar que o suporta: tirar o 2.º Canal à RTP. Dê lá por onde der, é este o alfa e o ómega da sua estratégia.

O Senhor Ministro Morais Sarmento, pouco tempo após a sua tomada de posse, veio dizer que ia definir o conceito de serviço público de televisão. Ao cabo de pouco mais de um ano de funções, as suas palavras e os seus actos já vieram confirmar que, para este Governo, em televisão como no resto, serviço público é aquele que não ameaçar os interesses privados.

Com a crise do mercado publicitário, ainda as eleições não se tinham realizado, já os sinos tocavam a rebate. Aí estavam as reivindicações dos canais privados: um canal único de serviço público, de preferência sem publicidade, a substituição da Alta Autoridade para a Comunicação Social por uma outra entidade reguladora, ou ainda a abertura dos canais RTP aos conteúdos dos canais privados. O Senhor Ministro lá foi dizendo que sim – e agora, com estas propostas de lei que o Governo apresenta, já se pode dizer que a encomenda está pronta e o telenegócio está feito.

Objectivamente, estamos perante o desaparecimento do 2.º Canal da RTP enquanto instrumento do serviço público de televisão. Com esta legislação a ser aprovada, compromete-se insuperavelmente qualquer concepção, qualquer estratégia de programação articulada e diversificada para um serviço público de relevo, referência e qualidade no panorama audiovisual do nosso país.

Perante esta pulverização encapotada do serviço público de televisão, mal disfarçada de reestruturação “a la carte”, o Governo optou pela saída que mais lhe conveio. Admitida que esteve a venda do canal 2 aos privados, ou mesmo o seu encerramento puro e simples, acabou por se escolher o meio-caminho, que é como quem diz, a sua transformação numa espécie de bazar da TV, entidade que pode ser tudo mas que não é nada, porque o Governo sobre ela nada diz de concreto.

O senhor Ministro já afirmou publicamente que está a seleccionar os parceiros que vão integrar esse tal Canal Sociedade. Pelo meio, lá deixou cair que o papel desses parceiros também inclui o financiamento do canal de televisão!

Ou seja: esse “tal canal” pode ser qualquer coisa como um tele-condomínio, gerido por uma espécie de cooperativa que participa também no pagamento das contas. Mas a estrutura técnica que lhe serve de suporte, não sendo à partida a RTP, implica forçosamente a presença dominante de empresas privadas. O que significa, na prática, uma privatização encapotada do segundo canal, desde logo na vertente técnica da produção!

De resto, em matéria de presença dos privados nos canais públicos de televisão, registe-se que o Governo chega a abrir o precedente, nada tranquilizador, de entrada de entidades privadas na estrutura accionista da RTP Madeira e RTP Açores. É o chamado “pé na porta”, abrindo caminho a futuras investidas.

O Senhor Ministro já tentou convencer o País que o que está a fazer é defender a RTP. Com esta decisão de segmentar a RTP e o serviço público de televisão, o que na verdade está a fazer é a defender os canais privados do que estes entendem ser a ameaça que a RTP lhes pode constituir.

Aliás, é um insulto à inteligência dos portugueses que se considere como defesa da RTP a tomada de decisões que consubstanciam um tão violento ataque ao seu futuro e ao futuro dos seus trabalhadores. E a política que o Governo vem propor para o financiamento da televisão e da rádio é uma verdadeira arma apontada à viabilidade e ao equilíbrio financeiro, tanto da estação de televisão como da própria Radiodifusão Portuguesa.

Objectivamente, o Governo demonstra entender que a RTP precisa de uma fonte de receita resultante de uma taxa a ser paga pelos telespectadores. E é por isso que o propósito da taxa de televisão agora regressa, desta vez resultante do rateio da taxa de radiodifusão sonora.

Quando, na década de noventa, o Governo PSD extinguiu a taxa de televisão, o PCP alertou para a necessidade de se garantir a compensação financeira das receitas que a RTP iria perder com essa decisão. Dez anos depois, o resultado está a vista – nem taxa, nem compensação.

Entretanto, o Senhor Ministro, até chegou a afirmar que a RDP tem dinheiro a mais! Que é como quem diz, está equilibrada financeiramente – o que para o Governo é pelos vistos um inadmissível sinal de ostentação e desperdício. Por isso a resposta não se faz esperar.

Como o PSD não está satisfeito com o que fez à RTP (neste último ano e nos dez anos de cavaquismo), volta-se agora para o financiamento do serviço público de radiodifusão e decide cortar-lhe uma fatia. Ou seja, a receita do estrangulamento financeiro, que desde os anos noventa deixou a estação de televisão no estado em que ficou, aplica-se agora na RDP. Depois é só esperar para ver…

E não se pretenda afirmar que é isto que vai resolver o problema financeiro da estação de serviço público de televisão. Pelo contrário.

A proposta do Governo estabelece a afectação das receitas da publicidade na RTP para o serviço de dívida consolidada. Traduzindo: o dinheiro que entrar na RTP pela porta da publicidade passa a ter como único destino o pagamento das dívidas que a estação teve de contrair ao longo destes anos, por falta de financiamento do Estado – e que este se tinha comprometido a assumir.

Primeiro, o Governo não cumpre os compromissos financeiros assumidos para com a RTP. Depois, impede-a de poder contar, para o seu próprio funcionamento, com as receitas da publicidade que significam cerca de um terço do seu financiamento. Não há volta a dar: no que toca ao funcionamento normal da televisão, as receitas da publicidade desaparecem já.

E fica uma pergunta no ar: se as receitas da publicidade servem só para pagar a dívida consolidada, o que vai acontecer depois dessa dívida ser saldada? Acaba-se a publicidade na RTP? Faz-se o serviço completo aos canais privados?

Afinal, onde vai a RTP obter as fontes de receita para garantir o seu funcionamento? Se o próprio Presidente do Conselho de Administração da RTP apontou como necessidade orçamental mínima uma verba da ordem dos 190 milhões de euros por ano, e se as indemnizações compensatórias não passam de metade desse valor, nem que se transferisse para a RTP a totalidade da contribuição para o audiovisual o dinheiro seria suficiente.

Não só permanecem e agravam-se os problemas financeiros do serviço público de televisão, como acaba por se levar também a RDP na enxurrada. É evidente o que estas opções vão trazer para o futuro do serviço público no audiovisual. E é evidente que o Governo tem a plena consciência da armadilha que está a montar.

Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

A actuação do Governo em todo este processo constituiu um verdadeiro insulto, principalmente aos trabalhadores da RTP. O ataque que está a ser dirigido a estes trabalhadores é algo de inqualificável. A destruição de postos de trabalho já levou à saída de centenas de trabalhadores. Mais de 500 já saíram da empresa, e o Governo já disse que a sangria vai continuar.

Agora, a intimidação e a chantagem chegam ao ponto de se ameaçar com o despedimento colectivo. Tudo para obrigar os trabalhadores a aceitarem, ou a rescisão de contrato de trabalho, ou a celebração de um novo acordo, em condições evidentemente desfavoráveis, com a nova empresa a constituir.

E todos sabemos que o que está em causa é o objectivo de cortar nos direitos adquiridos e nas regalias. Precarizar os vínculos laborais. Apostar no contrato individual de trabalho, fragilizando os trabalhadores.

Agora não podemos ignorar que esta sangria que se está a fazer nos quadros de pessoal da RTP fragiliza também a própria estrutura operacional da estação. Com a adopção destas medidas, são os próprios recursos do operador de televisão que ficam empobrecidos e é a sua própria capacidade de intervenção que fica limitada.

Mas a ofensiva do Governo não fica por aqui.

O Governo chega a propor uma Lei que estabelece a figura e a intervenção de uma entidade reguladora que não apresenta contornos definidos, que substitui a Alta Autoridade para a Comunicação Social e que depende de uma revisão constitucional para ser criada.

Ou seja, nos termos da proposta de Lei do Governo, a regulação e a fiscalização no audiovisual há de ser feita por uma entidade que há de ser criada, numa revisão constitucional que há de ser aprovada por uma maioria de dois terços que há de ser conseguida!

Nestas e noutras matérias, a estratégia é a do “logo se vê”. Sobram as indefinições e as incertezas, falta a clareza e até a transparência democrática.

A única orientação que desde a primeira hora é religiosamente seguida pelo Governo é a de neutralizar os obstáculos no caminho dos interesses privados. Foi esse o compromisso que assumiu e é o que está a fervorosamente a prosseguir.

Pela nossa parte, o PCP não desistirá de dar combate a este desmantelamento do serviço público no audiovisual português, até porque está em causa um factor fundamental de cidadania e cultura democrática.

Disse