Privatização da RTP
Intervenção do Deputado António Filipe
4 de Maio de 2000

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O PSD faz-nos discutir hoje um projecto de lei verdadeiramente inacreditável: Pretende privatizar o canal 1 da RTP.

Os argumentos utilizados são de dois tipos. Primeiro, o modelo de serviço público faliu e é um peso insuportável para os contribuintes. Segundo, a RTP é a "voz do dono". Donde, conclui o PSD, é preciso privatizar o canal 1 da RTP.

Ou seja, perante dois problemas reais, que exigem uma discussão séria, que são a viabilidade financeira do serviço público de televisão e a sua independência perante o poder político, o PSD avança com uma proposta que daria corpo a uma sua velha aspiração, que é desmantelar o serviço público de televisão.

O que este projecto traz de novo, em relação às posições já conhecidas do PSD nesta matéria, é o descaramento na defesa de interesses privados, absolutamente alheios a qualquer perspectiva de serviço ou de interesse público, mas que deitam o olho cobiçoso para a exploração comercial do audiovisual à custa dos contribuintes, e é a sua inconsistência que se revela quase inacreditável.

Ouvir o PSD a falar em descalabro financeiro e em "voz do dono" a propósito da RTP é o mesmo que ouvir falar de corda em casa de enforcado. É que o PSD, enquanto foi governo, deu provas de tanto empenho na destruição do serviço público de televisão e de tamanha grosseria na manipulação político-partidária dos seus conteúdos informativos, que esta proposta só se pode explicar pelo seu receio de vir a ser ultrapassado pelo Partido Socialista. E para que isso não aconteça, o PSD decidiu avançar com um projecto de lei que lhe garanta a liderança na destruição do serviço público de televisão.

Enquanto foi governo o PSD deu provas bastantes nesta matéria. Primeiro, esbulhou a RTP de toda a sua rede de emissores, já na altura sub-avaliada em cerca de 15 milhões de contos. A RTP perdeu assim uma grossa fatia do seu património e perdeu aquilo que seria uma valiosa fonte de rendimento. Uma empresa que hoje poderia dispor de uma rede de emissores para seu uso e para cedência aos demais operadores, vê-se hoje obrigada a suportar um custo anual de 5 milhões de contos pela utilização de uma rede que lhe pertencia. Depois, eliminou a taxa de televisão, o que em si mesmo não contestámos nem contestamos, mas não compensou minimamente a RTP por uma perda de receitas que a preços actuais rondaria os 11 milhões de contos anuais. Depois, deu rédea solta aos seus gestores políticos para lançarem a RTP em políticas suicidas de aquisição de programas e na celebração de contratos milionários com produtoras externas, tudo à custa da RTP, dos seus meios financeiros, dos seus meios materiais e dos seus recursos humanos. E entretanto, os ministros de serviço iam controlando diariamente o próprio alinhamento do telejornal.

Com esta folha de serviços, o PSD perde hoje uma boa oportunidade para estar calado.

Mas qual é a solução que o PSD hoje propõe? É muito simples: Para fazer face ao descalabro financeiro da RTP, privatiza-se o único dos seus canais que não só não dá prejuízo, como constitui mesmo uma fonte de financiamento para os restantes.

Veja-se o contra-senso: Para fazer face a um prejuízo, deita-se fora o que dá lucro e fica-se com o que dá prejuízo. O canal 1, que tem uma receita anual de 15 milhões de contos, passaria para as mãos de um grupo monopolista privado, e a RTP 2, a RTP Internacional, a RTP África, a RTP Madeira e a RTP Açores ficariam no serviço público, sem publicidade, exclusivamente à custa dos contribuintes. Com uma agravante: É que o Estado, mais uma vez à custa dos contribuintes, faria protocolos com os operadores privados para que estes cumprissem obrigações de serviço público. Isto é, os privados levariam a publicidade e ainda levariam dinheiros públicos, em nome das obrigações de serviço público que, no entender do PSD, o Estado não serve para prestar mas já serve para pagar a quem preste.

O PSD apresenta um projecto em nome dos contribuintes mas não consegue explicar o que é que os contribuintes ganhariam com ele. Diz o PSD na exposição de motivos que o seu projecto traria vantagens para o Estado porque "deixa de sobrecarregar, de forma inaceitável como hoje sucede, o erário público e o bolso dos contribuintes". Mas deixa de sobrecarregar como?

Então se a RTP perder as receitas de publicidade, que constituem a sua principal e mais regular fonte de receitas, quem é que vai pagar o serviço público proposto pelo PSD que consta "de um canal público, de acesso não condicionado, em língua portuguesa e sem publicidade, com uma programação assente na produção nacional, que inclua a cobertura imparcial da informação e cujos vários conteúdos estejam ao serviço da formação cívica em geral, da educação e da cultura", que consta também de contratos-programa com os operadores privados a suportar pelo Estado, que inclui também "nas regiões autónomas, a existência de emissões regionais asseguradas pelo Estado, de acesso não condicionado, baseadas em produção própria", e que contém ainda "a difusão de emissões internacionais, não codificadas, especialmente destinadas ao cumprimento das obrigações de ligação às Comunidades Portuguesas e à cobertura do espaço lusófono"?

Se a RTP não tiver publicidade e se não dispuser, como dispõe hoje, de um canal que alimenta em larga medida a programação dos restantes, designadamente em matéria de produção, quem é que paga este serviço público? O PSD responde: "Os custos das emissões internacionais são suportados pelo Estado" (artigo 4º) e "os encargos com o serviço público de televisão são suportados pelo Orçamento do Estado" (artigo 6º). Em suma, o serviço público de televisão continuaria a ser necessário, só que passaria a ser pago única e exclusivamente pelos contribuintes. Isto é, o serviço público de televisão continuaria a ter todos os seus deveres e a ter de cumprir todas as suas obrigações, com uma única diferença, é que ficaria proibido de obter receitas. Estas, ficariam unicamente reservadas para aqueles que utilizam a televisão exclusivamente como negócio e que tratam os espectadores, não como cidadãos, mas como simples consumidores, à custa de quem se pretende obter o máximo lucro.

Em determinada altura, o PSD admite que os operadores privados de televisão ficariam a ganhar com este projecto de lei, porque "todos podem aceder a relevantes apoios visando a produção de programas portugueses de qualidade", "porque, na prática, tal possibilidade é uma ajuda inestimável e um contributo financeiro significativo para a elaboração de grelhas de programas qualitativamente melhoradas", "porque liberta meios financeiros que se traduzam num incentivo às estações de televisão para fazerem encomendas ao mercado". Numa palavra, o PSD entende que o dinheiro dos contribuintes é indispensável para assegurar uma programação de qualidade. Só que em vez de pugnar pela qualidade da programação de serviço público, defende o financiamento público da qualidade dos operadores privados.

Portanto, o PSD está cada vez mais igual a si próprio. Continua a pretender desmantelar o serviço público de televisão. Só que desta vez assume com maior descaramento o propósito de transferir directamente o património, os meios e os recursos do serviço público de televisão para as mãos e para os bolsos de alguns patrões da comunicação social. Até apetece perguntar: A quem é que o PSD quer oferecer a canal 1 da RTP?

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O que acabei de dizer sobre o projecto de lei do PSD não significa nenhuma concordância com a política do actual governo em relação ao serviço público de televisão a à RTP. Fomos mesmo os primeiros a criticá-la aqui mesmo, logo no início da actual legislatura. Entendemos que, com a política que tem seguido, o governo PS só tem ajudado os inimigos do serviço público de televisão a levar a água ao seu moinho.

O equilíbrio financeiro da RTP, a independência do serviço público de televisão perante o poder político e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder económico, são questões que nos preocupam e que merecem um debate muito sério nesta Assembleia.

Este projecto de lei, que se propõe pura e simplesmente entregar um bem escasso e do domínio público, como é o espaço radioeléctrico, aos detentores do poder económico, não é um contributo sério para esse debate. Contará com a nossa oposição.

Podem contar connosco para dignificar o serviço público de televisão, para o apoio à produção nacional no domínio do audiovisual, para defender a independência da RTP em relação ao poder político e aos interesses económicos que se agitam à sua volta. Mas não contarão com o PCP para sacrificar o serviço público de televisão no altar dos interesses privados.

Disse.