Declaração Política sobre o Regimento da Assembleia da República
Intervenção do Deputado Bernardino Soares
23 de Janeiro de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

A decisão ontem imposta pela maioria em conferência de líderes, de alterar o figurino do instituto de perguntas ao governo sectoriais introduzido pelo novo regimento não é um mero pormenor no funcionamento da Assembleia da República e no equilíbrio institucional entre órgãos de soberania.

Trata-se de mais uma pedra no muro de apagamento e de silêncio a que a maioria gostaria de submeter o debate parlamentar.

Lembre-se que a maioria introduziu recentemente no regimento a limitação de tempo para a discussão de iniciativas da oposição. Passou a vigorar o sistema de só beneficiarem de tempo igual de discussão, e portanto de tratamento com igual dignidade, nos casos de agendamento por arrasto, as iniciativas que a conferência de líderes delibere terem sido agendadas conjuntamente.

Temos assim debates em que iniciativas de igual temática, embora com orientações políticas diversas, terão direitos diferentes para a sua apresentação e defesa. Com a nova formulação passa a haver uma espécie de regime de apartheid nas iniciativas legislativas, em que a maioria detém o poder de seleccionar aquelas que têm plenos direitos e remeter as restantes a um inaceitável estatuto diminuído, mesmo que tenham até sido as primeiras a ser apresentadas.

Recorde-se ainda a decisão da semana passada em que a maioria, recusando a indicação dos deputados presentes por bancada em cada votação, contrariando abundantes discursos de transparência da vida política e abrindo a porta à possibilidade de uma minoria de presentes valer como maioria de decisão. Assim se contrariam todos os alertas que se seguiram à problemática votação da Lei da Programação Militar. Assim se deita às malvas toda a pedagogia feita nos últimos tempos, com o empenhamento do Sr. Presidente da Assembleia, para a dignificação do plenário e do dever de estar presente nos seus trabalhos.

O caso do debate que se seguirá a este PAOD é outro exemplo de uma atitude de menorização do parlamento e da pluralidade do debate político e parlamentar.

Manda a justiça que se recorde que estas novas sessões de perguntas ao governo sectoriais foram justamente apontadas por todas as bancadas como uma das inovações mais refrescantes do novo regimento, que permitiria um exercício vivo e eficaz do contraditório político, sendo um forte instrumento de fiscalização da actividade do governo pelo parlamento.

Se a expectativa era justificada, a maioria, porventura receosa dos efeitos negativos de tal sistema para o governo, resolveu levar a cabo uma verdadeira alteração regimental de facto, mesmo que não de direito. Transformou uma sessão de perguntas ao governo num debate com o governo sobre uma determinada área ou, para ser mais preciso, numa declaração de um ministro seguida de perguntas dos deputados. É um verdadeiro debate mutante.

Senão vejamos. O regimento inclui esta matéria no artigo 240º que se intitula precisamente “perguntas ao governo”. Aí se definem as regras básicas deste instituto de perguntas sectoriais, garantindo-se ao governo tempo igual ao das perguntas, para as responder uma a uma, e nunca se refere a possibilidade de qualquer intervenção inicial do executivo.

Dirá a maioria que apesar de não haver previsão expressa, o artigo não proíbe esta intervenção inicial. Mas todos sabemos, e os deputados da maioria também sabem, que este expediente agora encontrado nunca esteve presente nem na discussão nem no espírito do debate sobre este novo instituto. Todos sabemos, e os deputados da maioria também sabem, que o que é insólito, e não tem qualquer cobertura regimental, é que um debate de perguntas ao governo comece com uma resposta do governo.

Se o regimento tivesse querido criar uma figura de debate com um ministro ou com um ministério teria criado um espaço próprio para isso e nunca se teria incluído esta matéria nas disposições relativas às perguntas ao governo. Aliás o PSD queria até que desaparecesse o figurino tradicional de perguntas ao governo, passando a existir apenas as perguntas sectoriais. Mas terá sido mais uma das matérias em que a posição do PSD se alterou na passagem da oposição para a maioria.

E nem se diga que não havendo intervenção inicial a maioria e o governo estariam numa situação especialmente frágil no debate. Basta ver que tempo será distribuído da seguinte forma: 75 minutos para a maioria e governo – 29 minutos para os vários partidos da oposição.

Dirá a maioria que a introdução de uma intervenção inicial pelo governo permite um balanço inicial da actividade no sector em causa que seria útil para o debate. Não, senhores deputados da maioria. A ideia original deste debate não era permitir um balanço ao governo, mas sujeitá-lo, sem prévio aviso, às questões da autoria dos deputados.

Dirá a maioria que os deputados sempre poderão perguntar sobre as matérias que entenderem. Certamente que sim, como acontece em todos os debates. Mas não vale a pena esconder que ao permitir ao governo introduzir o debate, será na maior parte dos casos politicamente insustentável que os partidos não contraponham o seu ponto de vista.

Dirá a maioria que a hipótese de intervir no início da sessão de perguntas evitará que o governo utilize a comunicação social para antecipar o debate. Veremos se isso não acontecerá. De qualquer forma este argumento demonstra bem que a intenção da maioria e do governo é que este debate não tenha o poder de iniciativa do lado da Assembleia da República e dos deputados, e que seja mais um instrumento ao serviço da propaganda política do governo.

Esta situação deve merecer a atenção de todos. Trata-se da garantia da pluralidade de intervenção, que não pode ser administrativamente limitada pela vontade da maioria. Trata-se para além do mais de matéria que põe em causa o equilíbrio institucional entre os órgãos de soberania, menorizando a Assembleia da República e a sua função constitucional de fiscalização do governo.

Nesta situação não deve haver meias tintas, nem cedências à postura maioritária. É preciso defender a dignidade do parlamento, a diversidade das propostas e das opções e o indeclinável controlo democrático da actividade do governo. Nada disto põe em causa a legitimidade da representação proporcional e democrática resultante do voto. Mas no parlamento a lógica da proporcionalidade não se aplica indiferenciadamente a todas as situações.

O exercício democrático da maioria não pode confundir-se com um salvo-conduto para tudo se poder fazer; não pode confundir-se com um totalitarismo maioritário que não respeite a pluralidade e os direitos das oposições.

E por isso este caminho tem de ser travado