Lei de Bases da Caça
Intervenção do deputado Lino de Carvalho
4 de Maio de 1999
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,
1 - O PCP desde sempre que pauta as suas
posições sobre a actividade cinegética no quadro dos seguintes parâmetros:
- Consideração da prática da caça como uma actividade de base e raiz popular e lúdica a que todos os interessados devem ter acesso sem distinções de natureza económica ou social podendo constituir, simultaneamente, um recurso económico complementar para os agricultores e para o País.
- Defesa do princípio do ordenamento cinegético de todo o território como base da organização, protecção, renovação e exploração dos recursos e das espécies cinegéticas.
- Consideração de que o princípio do ordenamento cinegético não se esgota na submissão da organização da caça somente às chamadas zonas de caça. No chamado regime geral também pode e deve haver lugar ao ordenamento cinegético.
- Defesa do associativismo como instrumento desse ordenamento.
- Defesa da concepção romanista da "res nullius", ou da liberdade de caçar que é aquela que enforma, desde sempre, a tradição do ordenamento jurídico no nosso País.
2 - É neste quadro que criticámos a Lei
nº 30/86 e que nos posicionamos face à proposta de lei do Governo.
É sabido que a lei de 1986 introduziu novos factores de desequilíbrio e desnecessários focos de tensão social.
Mas também é claro que a actual proposta do Governo vai introduzir novos e sérios motivos de preocupação e desestabilização sem qualquer garantia entretanto, de que o ordenamento cinegético será conseguido.
1ª Crítica - a consagração do "direito à
não caça", ainda por cima numa formulação completamente vaga cuja definição dos
termos concretos se deixa para regulamentação.
O direito à não caça abre a porta à substituição no nosso ordenamento jurídico da concepção secular da caça como um bem público comum - oriunda do direito romano - pela concepção germânica assente na ideia de que o direito à caça nada mais é do que uma regalia dos senhores da terra.
Como afirma o acórdão do Tribunal Constitucional nº 866/96 "deve reconhecer-se que a caça, pela sua constante mobilidade não vive ... num só prédio ...".
O acórdão que estamos a citar reconhece ainda - com o que o PCP também está de acordo - que "a inteira liberdade de caçar, em face de uma legião de caçadores que aumenta progressivamente e de uma área com condições de vida para a caça cada vez mais reduzida, equivaleria à destruição total das espécies dentro de poucos anos".
E conclui "chegamos, assim, à conclusão de que nenhum dos sistemas em presença contém em si a virtualidade de solucionar convenientemente o problema venatório" e, se assim é, e porque "temos de eleger um deles porque na realidade não dispomos de outros, então parece que estará indicado dar preferência ao sistema tradicional. E pensa-se que ele poderá conduzir a resultados satisfatórios se houver a decisão necessária para o corrigir de harmonia com as realidades dos tempos de hoje".
Ora é este equilíbrio que a proposta de lei não resolve e põe em causa com a consagração, sem mais, do "direito à não caça".
Entretanto nas condições concretas do nosso País - designadamente nas regiões de grande propriedade do Alentejo e Ribatejo - esta concepção da "não caça" pode conduzir ao regresso aos grandes coutos privados proibidos depois do 25 de Abril. Basta, Senhores Deputados, que o proprietário requeira a proibição a terceiros da caça nos seus terrenos mas decida, invocando o direito de propriedade, caçar ele próprio e os seus amigos. Estão os Senhores Deputados e o Governo em condições de garantir que este quadro está fora de hipótese? Então não são suficientes as "áreas de refúgio de caça" previstas nos artºs 7º e 38º da Proposta de Lei? Ou porque não se optou por um direito de não exercício temporário da caça por razões de defesa das espécies, por exemplo?
Mas mais, Senhores Deputados. A consagração da faculdade da proibição da caça exercida, por exemplo, por um conjunto territorialmente contínuo de proprietários vai desarticular e até inviabilizar muitas reservas de caça hoje submetidas, por exemplo, ao regime associativo ou turístico e terá consequências negativas para o equilíbrio natural das espécies e para os processos de fomento e reprodução ordenada das espécies exactamente o oposto daquilo que o Governo afirmou pretender com esta proposta de lei.
2ª Crítica - A multiplicação de figuras
de ordenamento em que a figura de zona de caça de interesse rural a que só terão
acesso "os caçadores autorizados pelo respectivo gestor" (ou proprietário) é,
obviamente, outra forma de abrir caminho aos coutos privados.
3ª Crítica - É de todo em todo inadequada
a possibilidade prevista na proposta do policiamento e fiscalização da caça poderem
vir a ser atribuídas às autarquias que não têm nem vocação, nem meios nem preparação
para este tipo de fiscalização.
4ª Crítica - O facto do Governo deixar para
regulamentar os aspectos mais substanciais e polémicos da proposta: o direito
à não caça; o conteúdo das zonas de interesse rural; a detenção, o comércio e
o transporte das espécies cinegéticas; o regime da concessão da faculdade de caçar;
as taxas devidas, os períodos venatórios e os processos de caça; os campos de
treino de caça; a constituição, atribuições, competências e funcionamento dos
conselhos cinegéticos; etc..
É a técnica do Governo do PS, onde todos parecem copiar o Engº Guterres. Quando os problemas se tornam mais complicados, assobia-se para o lado e enchem-se os discursos e as propostas de lei com muita conversa ôca.
Estas são quatro críticas estratégicas que condicionam o nosso sentido de voto.
3 - Um outro aspecto que tem originado larga
polémica é a de limitar as áreas abrangidas por zonas de caça associativa e turística
a 50% da área total dos respectivos municípios.
Estando de acordo com o princípio a verdade é que a sua formulação concreta, tal como está proposta, esvazia de sentido a mesma e cria novos desequilíbrios. A lei actual já prevê essa norma mas aplicada à "área total com aptidão cinegética no País e em cada região cinegética". Agora o Governo finge manter a mesma norma, para iludir os caçadores do regime geral, mas altera a formulação para "50% da área total do município". Na prática, isto significa a submissão de todo ou quase todo o território cinegético às diversas figuras das zonas especiais de caça, não deixando espaço para os caçadores do regime geral e assim discriminando, de facto, os caçadores de menores recursos ou aqueles que não pretendam optar pelas zonas de caça.
É outro tique deste governo. Finge querer agradar a gregos e a troianos; ilude uns e outros; e desresponsabiliza-se (quando lhe convém) de assumir opções, acabando por criar mais problemas e mais injustiças. É um tique que atravessa toda esta proposta de lei.
A questão dos 50% tem de ser esclarecida em sede de especialidade sendo possível, na opinião do PCP, encontrar-se uma verdadeira solução que não discriminando ninguém no livre direito do acesso à caça ordene cinegeticamente todo o território nacional.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Os 250 mil caçadores com licença existentes em Portugal, dos quais mais de 75% são de origem popular, mereciam uma melhor lei.
O ordenamento e a exploração equilibrada dos recursos cinegéticos exigem uma lei mais ponderada e tecnicamente capaz.
Aliás, o Partido Socialista tem de tal modo consciência das fragilidades desta proposta que a deixou esquecida na gaveta o maior espaço de tempo que lhe foi possível.
O Partido Socialista sabe que esta proposta vai criar mais problemas do que aqueles que alegadamente pretende resolver.
E é exactamente por isso que o PCP a rejeita.
Disse.