Lei-Quadro da Água e estabelecimento da titularidade dos recursos hídricos
Intervenção de António Filipe
1 de Julho de 2005

 

 

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro,

Na sua intervenção, V. Ex.ª disse que o que o Governo aqui apresenta hoje é um trabalho de gerações, tendo dito que já há 30 anos se aspirava à aprovação de uma lei da água. Ora, essa era uma razão mais do que suficiente para o Governo ter tratado este debate com outra dignidade.

É que não faz qualquer sentido que, sendo um trabalho de gerações e correspondendo a uma aspiração de há já 30 anos, o Governo apresente uma proposta de lei numa semana para ser discutida na que se lhe segue e, ainda por cima, nem permitiu que a comissão competente pudesse fazer um relatório circunstan-ciado e pormenorizado sobre a matéria.

Fomos, pois, confrontados com o que a comissão pôde fazer — um relatório com três páginas —, o que não é responsabilidade sua mas é devido à forma como o Governo tratou este debate.

Esta proposta de lei merecia mais, merecia que, antes deste debate na generalidade, a Assembleia tivesse procedido a um amplo debate público, com audições. Aliás, dessa forma, teríamos ficado a conhe-cer melhor a posição da Associação Nacional dos Municípios Portugueses, que, pelos vistos, é profunda-mente negativa relativamente às propostas do Governo. Não houve tempo para tal, o que se lamenta.

Em todo o caso, esperemos que, daqui até à aprovação final global dos diplomas em discussão, haja possibilidade de quebrar este manto de silêncio que se formou em torno de uma legislação tão importante quanto esta que regula a matéria da água e que hoje está em discussão.

O Governo traz-nos um diploma que afirma ser a transposição de uma directiva comunitá-ria relativamente à água. Importa, pois, que confrontemos as opções do Governo com as constantes dessa Directiva n.º 2000/60/CE.

Chamo a atenção, designadamente, para um princípio que, nos termos da directiva, assume grande importância, o princípio da participação, que consta do 46.º considerando da mesma, onde se refere que «Para garantir a participação do público em geral, inclusivamente dos utilizadores das águas, na elabora-ção e actualização dos planos de gestão de bacias hidrográficas, é necessário fornecer informações ade-quadas acerca das medidas previstas e do progresso alcançado na sua execução, por forma a permitir a participação do público em geral antes da adopção das decisões finais relativas às medidas necessárias».

Pela leitura que acabo de fazer, vemos bem a importância atribuída ao princípio da participação, mas também vemos a pouca importância que lhe é dada na proposta de lei.

Os mecanismos de participação que estão previstos são meramente simbólicos e incipien-tes, quando seria possível e desejável — e nós propomo-lo — que houvesse maiores consequências deste princípio da participação, promovendo mais o direito de participação dos interessados em matérias relacio-nadas com a água.

Há um outro aspecto com o qual gostaria de confrontar o Governo.

A directiva diz, logo no início, que a água não é um produto comercial como outro qualquer mas um património que deve ser protegido, defendido e tratado como tal.

Ora, verificamos que, mais do que uma lei-quadro da água, o que o Governo nos propõe é uma lei sobre o mercado da água. Sr. Ministro, esta é, para nós, uma questão fundamental.

De facto, o que o Governo se propõe regular é a forma como os concessionários vão ter acesso à água e como é que os utilizadores vão ter de pagar a utilização da água.

Vemos o princípio do poluidor-pagador, mas não vemos o princípio do utilizador-pagador. Portanto, o Governo não transpõe o que devia e, a pretexto da directiva, pretende legislar por forma a considerar a água como um produto mercantilizável, o que é uma opção que consideramos profundamente negativa para o presente e para o futuro dos portugueses.