Sobre a Comissão Europeia e a especificidade da agricultura portuguesa
Declaração de Agostinho Lopes, da Comissão Política do PCP
4 de Junho de 2003

 

As recentes notícias sobre o Relatório «Especificidade agrícola portuguesa», da responsabilidade da Comissão Europeia, e a proposta da Presidência da União Europeia de liberalizar o acesso aos recursos de águas nacionais da frota espanhola, mereceram a atenção e a análise da Comissão Política do Comité Central do PCP.

I

O Relatório «Especificidade da Agricultura Portuguesa» suscita no imediato, e mediante as informações que foram tornadas públicas, três anotações:

1. Em primeiro lugar, o Relatório constitui uma veemente condenação das políticas agrícolas nacionais prosseguidas nos últimos 20 anos por sucessivos governos, do PSD/Cavaco Silva e PS/António Guterres, políticas agora prosseguidas pelo Governo PSD/CDS-PP de Durão e Portas, e dos seus diversos ministros da Agricultura. As conclusões indiciadas pelo Relatório sobre a situação da agricultura portuguesa, quase 20 anos após a adesão à CEE, são também uma indesmentível constatação da justeza das críticas e propostas alternativas apresentadas pelo PCP a essas mesmas políticas. Em particular:

- A má aplicação de milhares e milhares de contos de fundos estruturais, a má gestão das ajudas ao rendimento e de outras medidas e, fundamentalmente, a escandalosa concentração desses apoios nas grandes propriedades latifundiárias do Alentejo e Ribatejo e no sector dos cereais de sequeiro. Só o PCP condenou e criticou essas políticas que prejudicaram de forma ostensivamente discriminatória a pequena e a média agricultura e as produções mediterrânicas (vinho, azeite, frutas e hortícolas);

- As erradas estratégias de negociação e os acordos consentidos em matéria de Política Agrícola Comum (PAC), no Tratado de Adesão, na Reforma da PAC em 1992 conduzida durante a Presidência Portuguesa da União Europeia por um ministro português, na Reforma da PAC concretizada pelo governo PS em 2000, e consubstanciada na chamada Agenda de Berlim, a defeituosa condução dos interesses agrícolas nacionais em Bruxelas por sucessivos governos. Sempre cantando vitória após cada alteração da PAC, sempre apoiados pela generalidade dos deputados do PS, PSD e CDS no Parlamento Europeu e sempre enterrando cada vez mais a agricultura portuguesa; agricultura cada vez mais afundada nos seus estrangulamentos e problemas estruturais, herdados e provocados pela PAC, com o sacrifício de milhares de explorações agrícolas, baixos rendimentos dos agricultores, o crescer do défice agro-alimentar nacional, o frustrar das esperanças de milhares de jovens agricultores que, a partir de meados de oitenta, se lançaram na aventura agrícola. Só o PCP se opôs tenaz e persistentemente ao funesto consenso do bloco agrícola PS, PSD e CDS, suportado no plano social pela CAP, como pode ser abundantemente demonstrado pelo seu posicionamento ao longo desses anos.

2. O Relatório «Especificidade da Agricultura Portuguesa» pelo que é conhecido, representa também a melhor denúncia da mistificação política encenada pelo Governo de Durão Barroso de uma pretensa «voz grossa» portuguesa nas Cimeiras Europeias em defesa da agricultura portuguesa. Como então sublinhámos, a «grande vitória» na Cimeira de Copenhaga, em Dezembro passado, que teria constituído a decisão de elaborar aquele Relatório, era apenas a cortina de fumo destinada a esconder o amen do Governo em Outubro na Cimeira de Bruxelas a um alargamento da União Europeia a dez novos países, sem qualquer reforço da despesa agrícola no Orçamento Comunitário. O Relatório tenta pôr um ponto final nas reclamações do Governo do necessário aumento das quotas nacionais em diversas produções (leite, milho, algodão, trigo duro e açúcar), e nada diz sobre outros objectivos enunciados pelo ministro da Agricultura de reequilibrar a distribuição dos dinheiros agrícolas comunitários entre agricultores, produções e países, pondo fim (ou pelo menos atenuando substancialmente) à situação discriminatória dos agricultores e da agricultura portugueses.

3. E, finalmente, o Relatório insiste nos sofismas e fraudes da Comissão e do Comissário Fischler presentes nas suas propostas de revisão em curso da PAC. Em particular:

- A tese de que os problemas da (nossa) agricultura não são uma questão de «aumento das quotas de produção mas do reforço do desenvolvimento rural»! Como se pudesse haver desenvolvimento e sustentabilidade do mundo rural sem actividade produtiva agrícola. Como se as actuais quotas nacionais, calculadas a partir de médias históricas, não congelassem o subdesenvolvimento relativo e absoluto da agricultura portuguesa – bem evidente no actual problema de ultrapassagem das quotas leiteiras – e a consequente manutenção de baixo nível das ajudas. Como se o País não precisasse de mais quotas de produção para viabilizar toda a área de regadio do Alqueva.

- A Comissão insiste na tese do desligamento das ajudas da produção, como se tal acabasse com os limites à produção e pudesse significar a possível livre escolha pelos agricultores portugueses entre diversas culturas alternativas e rentáveis, independentemente das condições edafo-climáticas e estruturais do País. Como se esse «desligamento» não tivesse como consequência mais terra agrícola abandonada, mais explorações agrícolas liquidadas. A lembrança, no Relatório, da não completa utilização dos 60 mil hectares de milho ou da má utilização nos prazos previstos de reconversão de 200 mil hectares de cereais de sequeiro em produção extensiva de bovinos, é ridícula, se se tiver em conta o atraso na concretização de Alqueva ou as restrições, acordadas entre a Comissão e o Governo português, para a referida reconversão, limitando-a às terras da liquidada Reforma Agrária, enquanto nas zonas da pequena propriedade do Norte e Centro faltam «direitos» para a produção de bovinos!

- A Comissão fala do êxito da agricultura nacional nos sectores do vinho, azeite, frutas e legumes. Há alguns sucessos, mas a Comissão faz por esquecer os problemas decorrentes da PAC e da política comercial da União Europeia, de milhares de produtores de vinho a braços, em algumas regiões demarcadas, com colheitas por pagar, preços degradados e elevados stocks por escoar, problemas de milhares de olivicultores de Trás-os-Montes, Beiras e Alentejo, dos produtores de tomate industrial do Ribatejo e Alentejo, dos produtores de batata de Trás-os-Montes ou Beiras. Ou a aflição de centenas de produtores de leite, a braços com as consequências dos seus sucessos produtivos!

Espera agora o PCP que as considerações que o ministro da Agricultura teceu sobre o referido Relatório, não sejam o abandono definitivo dos interesses nacionais na presente revisão da PAC. E espera-se tal, porque quem começou, no início desse processo, com um razoável e já referido conjunto de objectivos, quem elevou a parada nessa negociação, ao afirmar que a Assembleia da República não devia ratificar o alargamento se os interesses nacionais não fossem acautelados, não pode nem deve agora aceitar da Comissão dez reis de mel coado de desenvolvimento rural, para que continue a liquidação da agricultura portuguesa. Para que não se diga que o ministro da Agricultura teve entradas de leão e saídas de sendeiro. Mas é mau prenúncio, o Relatório do deputado do PSD, Arlindo Cunha, ontem debatido e amanhã votado no Parlamento Europeu, e que, no fundamental, abre caminho, ainda que de forma mitigada, às principais teses do Comissário Fischler na revisão da PAC.

II

A proposta de liberalização do acesso aos recursos pesqueiros das águas portuguesas pela frota espanhola.

Nada justifica a proposta que consta de um Documento de Trabalho da Presidência da União Europeia sobre o Regulamento das Águas Ocidentais, no âmbito da revisão da Política Comum das Pescas, que pretende liberalizar o acesso da frota espanhola aos recursos das águas portuguesas, até hoje e desde a adesão em 1986, regulamentado por regime específico, aliás renovado pelas medidas do Regulamento Comunitário 1275/94, expressão de uma Declaração Conjunta subscrita por Portugal e Espanha, em 1994.

A concretização de tal proposta significaria a liberalização de acesso à zona entre as 12 e as 200 milhas da Zona Económica Exclusiva por parte das embarcações espanholas, com a criação de uma grande zona de pesca sem fronteiras, o que, tendo em conta a dimensão da frota espanhola, não só teria efeitos devastadores sobre os recursos pesqueiros, com consequências graves para os pescadores portugueses, como inviabilizaria as medidas de conservação de recursos postas em prática pelo Estado português. E contrariaria as pressionantes orientações da União Europeia de uma Política de Pescas centrada na defesa da sustentabilidade dos recursos. Daí a importância da manutenção da divisão das subzonas de pesca estatísticas CIEM IX e X e das divisões CECAF.

No sentido de esclarecer completamente este problema, o Grupo Parlamentar do PCP requereu, no passado dia 30 de Maio, à Mesa da Assembleia da República, o agendamento de um debate de urgência sobre o assunto.

Entretanto, ontem, no Parlamento Europeu, na intervenção da deputada do PCP Ilda Figueiredo a propósito do Relatório Stevensen relativo à gestão do espaço nas águas do Atlântico, repudiou-se completamente a possibilidade de essa proposta ser viabilizada. O que foi concretizado com a aprovação de uma alteração ao referido Relatório (alteração 20), no sentido da manutenção dos actuais regulamentos e, portanto, da actual situação no Atlântico Norte / Irlanda, por mais dez anos, o que não pode deixar de ser tido em conta pela Presidência do Conselho da União Europeia.