Intervenção do
deputado Lino de Carvalho
A Agenda 2000 e a reforma da PAC
11 de Fevereiro de 1999
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Srs. Membros do Governo,
A reforma da Política Agrícola Comum é verdadeiramente um dos nós gordio da Agenda 2000 e do próximo futuro da União
Europeia. O modo como a reforma da PAC for resolvida permitirá aferir se, mais uma vez, o Governo português opta por uma
politica de pequenas trocas que acabam por se traduzir em progressivas dificuldades para o aparelho produtivo nacional, no caso,
o aparelho produtivo agrícola, ou por uma postura em que questionando o próprio modelo actual da PAC coloca-se ao lado dos
sectores mais lúcidos e contribui para uma nova estrutura da Política Agrícola, garantindo desse modo o futuro sustentado da
agricultura portuguesa.
Como é sabido, o actual modelo da PAC mergulha os seus contornos e as suas orientações no contexto histórico em que foi criada.
Concebida numa Comunidade a seis e com o objectivo confesso de aumentar a produção agro-pecuária numa Europa altamente
deficitária em bens alimentares a PAC desde logo foi orientada, na definição dos objectivos e no desenho dos apoios, para as
grandes produções dos países que então constituíam a Comunidade (França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Itália) - e
onde só a Itália era, á época, relativamente periférica - confirmado posteriormente nos países do primeiro alargamento (Reino Unido,
Dinamarca e Irlanda). Cereais, carne de bovino e leite constituíram assim as primeiras grandes produções apoiadas. As orientações
iniciais da PAC tiveram, sem duvida, sucesso quantitativo (a Comunidade passou de deficitária a excedentária) embora à custa da
liquidação de centenas de milhares de pequenas explorações, a uma concentração da produção e fundiária e a uma multiplicação
das despesas agrícolas. Só que, entretanto, os sucessivos alargamentos da Comunidade conduziram a realidade do mundo rural a
uma agricultura mais diversificada tanto do ponto de vista dos sistemas culturais como do ponto de vista da estrutura das
explorações agrícolas. Realidade nova esta que coincidiu com o início de irracionais políticas restritivas do aumento da produção,
independentemente das responsabilidades de cada país nos alegados excessos de produção; com o início de um processo tendente
a reduzir as despesas orçamentais da Comunidade à custa da política agrícola e com orientações tendentes á cada vez maior
liberalização dos mercados no quadro da integração da agricultura nas negociações do GATT/OMC. A reforma da PAC de 1992,
defendida e aprovada em pleno consulado do PSD e da Presidência portuguesa, foi o culminar de uma primeira etapa deste
processo altamente lesivo para os interesses da nossa agricultura e dos nossos agricultores. Porque a verdade é que a reforma de
1992 prejudicou fundamentalmente as agriculturas de países como Portugal. Enquanto as produções e os sistemas agrícolas dos
primeiros tempos da PAC beneficiaram - e continuam a beneficiar - de elevadíssimas medidas de suporte dos preços de mercado e
de ajudas directas á produção as chamadas produções mediterrânicas ou não beneficiam de nenhum apoio ou o apoio que recebem
é infinitamente inferior ao que é destinado ás agriculturas dos países setentrionais da Europa. A irracionalidade da PAC e o facto de
se ter, por interesse dos grandes países exportadores, do Grupo de CAIRNS e dos EUA alargado á agricultura os mecanismos da
ultra liberalização do comércio mundial, obrigando a uma artificial descida de preços só parcialmente compensados por ajudas ao
rendimento (o que constitui também uma das linhas mestras de orientação propostas para a próxima reforma) conduziu a que hoje
mais de metade (56%) do rendimento total do sector agrícola da União Europeia resulte dos apoios comunitários. De 141 mil milhões de ECUS do Valor Acrescentado Bruto Agrícola de 1995 as transferências de rendimento proporcionadas pela PAC atingem os 79 mil milhões de ECUS. Só que, pelas razões que expus, 83% dos apoios foram para três produtos: culturas arvenses (cereais e outros), 29%; leite, 28% e carne de bovino, 26% . Entretanto, os chamados produtos mediterrânicos tiveram um nível de apoios que não ultrapassa os 7% (excluindo o tabaco).
Alguns exemplos mais concretos. Os cereais beneficiam de ajudas directas á produção correspondente a 58% do respectivo
rendimento total; as oleaginosas de 12% a carne de bovino de 14%. Em matéria de medidas de suporte de preços de mercado os
cereais beneficiam de 11% de apoios em transferências geradas pela PAC, o leite 40% e a carne de bovino 31%. Vejamos os produtos mediterrânicos: o vinho, as frutas e os hortícolas não beneficiam de qualquer ajuda directa á produção, o azeite beneficia sómente de 4% de ajudas e em matéria de apoios aos preços de mercado as percentagens oscilam entre os 1% e os 3%. Quero dizer que os dados que estou a citar não foram inventados pelo PCP. Eles constam de um trabalho elaborado pelo Prof. Francisco Avillez e outros especialistas para suportar a estratégia negocial do Governo e são confirmados pelos mais diversos analistas a nível europeu.
Esta distribuição completamente desequilibrada dos apoios - beneficiando as chamadas produções continentais e prejudicando as
produções do Sul - é, aliás, contraditório, com o facto de serem os sectores agrícolas dos países ditos mediterrânicos (Portugal,
Espanha, Itália e Grécia) que mais contribuem para o VAB agrícola da União Europeia: 53% contra 47% dos países do Centro e
Norte da Europa.
De todo este quadro resulta que o nível de apoios por agricultor (por UTA) dos países "mediterrânicos" seja três a seis vezes inferior
ao que recebem os agricultores dos países do Centro e Norte da Europa. Mas mesmo esta realidade já de si desequilibrada agrava-se
quando fazemos uma análise mais fina, país a país. Aqui, os agricultores portugueses aparecem como os que menos apoios recebem da Comunidade. 1.100 ECU por activo agrícola em apoios aos preços e 800 ECU por activo agrícola em ajudas ao rendimento. A média na União Europeia (a 15) é, respectivamente, de 6.800 e 3.700 ECU; em Espanha de 3.700 e 4.100 ECU; na Grécia de 2.900 e 2.600 ECU; na Itália, de 2.900 e 1.700 ECU por activo agrícola. Perdoem-me o excesso de dados estatísticos mas só assim conseguimos ter uma visão séria e fundamentada do que significa a afirmação tanta vezes repetida que a actual PAC descrimina as agriculturas e os agricultores do Sul. Mas, chegados aqui, é necessário recordar que o País também tem culturas continentais - cereais e oleaginosas; carne e leite - que não deve abandonar pela sua importância nacional, regional e social e para as quais é necessário continuar a garantir políticas que as não inviabilizem.
Mas há mais elementos de diagnóstico a reter. A PAC foi forjada para uma agricultura altamente profissionalizada - de que a
Holanda, que está na sua origem, é o paradigma - e, portanto, os regulamentos comunitários privilegiam os agricultores ditos
profissionais. Os apoios são atribuídos em função da produção, da dimensão das explorações e do tempo de trabalho que cada um
dedica á actividade agrícola. Só que em Portugal (e, em geral nos Países do Sul), a realidade é completamente outra. Nós temos uma
agricultura de base essencialmente familiar, a tempo parcial, policultural. Os regulamentos comunitários e a sua repetição mecânica
pelos governos portugueses, faz com que, por um lado, os apoios se concentrem nas explorações de maior dimensão e que, por
outro, mais de metade dos agricultores portugueses não tenham acesso a apoios ao investimento nem aos apoios ás regiões
desfavorecidas. Só podem apresentar projectos de investimento os agricultores que dediquem mais de metade do seu tempo de
actividade á agricultura e retirem dela mais de metade do seu rendimento. Tal como só têm acesso ás indemnizações
compensatórias os agricultores "profissionais". Se soubermos que em Portugal o grau de profissionalização é de cerca de 25% contra
valores que oscilam entre os 58% e os 75% nos países do Centro e do Norte da Europa então percebe-se porque é que o grosso dos
agricultores portugueses está fora de qualquer sistema de apoios. E percebe-se também que o sistema faça com que em Portugal os
apoios se concentrem particularmente nas explorações de recorte latifundista que têm como orientação económica predominante os
cereais e as oleaginosas. Estas culturas que contribuem somente com 1,7% para o Valor Acrescentado Bruto (a preços de mercado)
beneficiaram em 1996 de um nível de ajudas ao rendimento de 190% nos cereais e de 216% nas oleaginosas quando, em contraste,
as explorações, predominantemente de tipo familiar, assentes na horticultura, na fruticultura e no vinho, que contribuem com mais
de 50% para o VAB, tiveram um nível de suporte zero.
Srs. Deputados,
Quando falamos em Agenda 2000 e reforma da PAC é isto que está em causa. É este modelo que acabei de apresentar. Ora, a solução desta questão não é compatível com remendos, com pequenos negócios, com moedas de troca em que a agricultura e os agricultores portugueses saem sempre a perder.
A solução desta questão não é compatível com a renacionalização dos custos da PAC em que 25% a 30% das ajudas directas á
produção seriam suportadas pelos orçamentos nacionais. Independentemente da dimensão global concreta que este valor assuma - e
que está longe de estar esclarecido - o princípio da renacionalização é inaceitável para Portugal e põe em causa o princípio da coesão e da solidariedade tão apregoados nos tratados. Porque a renacionalização pode levar a um acréscimo de encargos para o Orçamento nacional correspondente a cerca de metade das despesas nacionais actuais com a agricultura; porque a renacionalização, tendo presente as capacidades orçamentais de cada País e o exemplo da dimensão que já hoje assumem as ajudas nacionais por agricultor (na Alemanha as ajudas nacionais representam 27,2% do VAB, na Bélgica, 9,2%, no Reino Unido 6,4%, na Dinamarca 4,8%) conduziria a que se acentuasse o desequilíbrio entre os rendimentos dos agricultores portugueses e dos restantes países; porque a renacionalização desequilibraria ainda mais os apoios ás produções com prejuízo para as culturas mediterrânicas; porque a
renacionalização significaria que durante décadas os países setentrionais foram apoiados para que as suas agriculturas se
desenvolvessem e agora os agricultores portugueses teriam de pagar os custos da irracionalidade da PAC.
O Governo português, aliás, deve dizer claramente qual é a orientação que defende nesta matéria e em tudo o que tem a ver com a
reforma da PAC. A proposta da Comissão e a renacionalização é uma boa base de trabalho como defende o Ministro dos Negócios
Estrangeiros e a Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus ou é inaceitável como por vezes afirma, para consumo interno, o
Ministro da Agricultura que chega a afirmar que esta proposta só passará por cima do seu cadáver ? Faço votos para que não
tenhamos brevemente mais uma baixa no Governo!
O PCP rejeita qualquer orientação baseada em novas e generalizadas descidas de preços ao produtor e que sacrifique a agricultura portuguesa no altar das negociações como moeda de troca de hipotéticos ganhos noutras áreas da Agenda 2000 bem como rejeitamos que a solução para o financiamento da comunidade seja encontrada à custa da agricultura e dos agricultores.
Mas o Governo português não pode cobrir-se exclusivamente com as consequências da PAC. Porque há responsabilidades nacionais
iniludíveis nas políticas que têm sido seguidas. Ao longo destes anos, após a integração comunitária, ontem com o PSD, hoje com o
PS, o que se tem feito é uma gestão política e clientelar dos apoios e dos subsídios. Não se apostou no que seria essencial: uma
reconversão estratégica, tecnológica e ao nível dos sistemas produtivos, que permitisse reorientar os sistemas culturais para uma
agricultura de sucesso e competitiva (o caso do Alentejo é, a este propósito, paradigmático). Não se apoiou prioritariamente a
agricultura familiar, que é o suporte fundamental do nosso tecido agrícola. Não se apostou no rejuvenescimento da população
activa agrícola nem na renovação da sua formação e qualificação profissional. Não se investiu na investigação. Não se estimulou
nem o associativismo de produção nem de comercialização para os agricultores poderem fazer face ás novas exigências do mercado
distribuidor. Deitaram-se aos campos, em particular aos campos dos grandes proprietários e do sector agro-alimentar centenas de
milhões de contos sem resultados eficazes. Não se acompanham as negociações externas com países terceiros que afectam os
interesses nacionais como foi o escandaloso acordo negociado recentemente entre o Comissário Deus Pinheiro e a África do Sul
permitindo que este País - e outros - continuem a usar a denominação Porto num vinho que fabricam. Hoje, a agricultura portuguesa
está mais fragilizada, mais empobrecida, mais desertificada. Não é isto a fotografia da falência de uma política ?
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
O que fazer ? Avançamos dez propostas:
1º - Recusar o modelo pronto a vestir da PAC que nos querem continuar a impor e defender a aplicação do princípio da coesão, da
solidariedade e do reconhecimento da diversidade das agriculturas europeias, rejeitando uma reforma feita ás fatias, produto a
produto, sem uma revisão global do figurino da PAC;
2º - Defender o direito a produzir e o direito de cada povo se alimentar. Reclamar para a agricultura três valências: produtora de
alimentos de qualidade para os consumidores; preservação da ocupação e do ordenamento do território; preservação do
meio-ambiente;
3º - Recusar a renacionalização dos custos da PAC;
4º - Propôr que seja dado aos produtos mediterrânicos tratamento similar aos concedidos ás produções dos países setentrionais
introduzindo para aqueles o sistema de apoios á produção e de medidas de suporte de preços, no respeito, aliás, pelas conclusões do
Conselho Europeu "jumbo" de Setembro de 1993;
5º - Defender a modulação, isto é a fixação de apoios degressivos ao investimento e de um tecto para as ajudas ao rendimento
fixando-se um limite máximo por exploração. A modulação deveria também permitir uma majoração dos apoios tendo em conta o
emprego gerado e o rendimento médio dos produtores europeus;
6º - Alargar o acesso aos apoios ao investimento bem como as indemnizações compensatórias a todos os agricultores;
7º - Estabelecer um sistema de apoios que permita dar resposta a explorações assentes numa agricultura poli cultural e que estimulem a reconversão tecnológica e cultural;
8º - Ligar os apoios à produção á função de preservação do meio-ambiente e ocupação do território e á produção de produtos regionais de qualidade;
9º - Não aceitar que a agricultura portuguesa fique amarrada aos seus níveis históricos de produção e produtividade porque tal
significa amarrar o atraso da agricultura portuguesa ao seu próprio atraso;
10º - Recusar o agravamento do processo de liberalização dos mercados agrícolas com o desaparecimento das ajudas e da protecção existentes para os produtos agrícolas em curso no seio da OCDE e da OMC.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Estas são a nossa reflexão, as nossas preocupações e críticas, as nossas propostas para um tema de inegável importância nacional e
decisivo para a configuração da Europa que se quer construir. Uma Europa onde recusamos que seja eliminado, em nome dos
sacrossantos interesses do mercado e das restrições orçamentais, um sector produtivo essencial à segurança alimentar dos
consumidores, ao futuro dos produtores e ao seu rendimento e à sobrevivência e desenvolvimento de um mundo rural moderno e
dinamizador do território.
Disse.