Audição Parlamentar sobre a encefalopatia espongiforme bovina (BSE)
Relatório do deputado Lino de Carvalho
9 de Novembro de 1998

 

RELATÓRIO

Por proposta do Partido Comunista Português (PCP), aprovada por unanimidade na reunião da Comissão de Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas de 29 de Setembro de 1998 foi realizada, no âmbito desta Comissão, uma audição para "esclarecimento da situação da BSE, definição de responsabilidades e de medidas que permitam defender a produção nacional e os consumidores".

No âmbito da audição, que decorreu de 7 de Outubro de 1998 a 16 de Outubro de 1998, foram ouvidas as seguintes entidades: Para efeitos deste relatório dão-se como adquiridas e reproduzidas as conclusões da Audição Parlamentar nº 3/VII, realizada nesta legislatura, que se anexam ao presente relatório e do qual fazem parte integrante.

Entretanto, dos depoimentos prestados á Comissão durante a presente audição, dos documentos disponibilizados e do debate suscitado, retiram-se as seguintes

CONCLUSÕES

1. Até 6 de Outubro de 1998 tinham-se registado em Portugal, no ano de 1998, 65 casos de BSE, o que perfaz um total acumulado, desde 1990, de 159 casos, todos relativos a bovinos originários do Reino Unido ou já nascidos em Portugal, com data de nascimento situada entre 1984 e 1995.

2. O número de casos positivos de BSE registados em Portugal representam 0,02 % do total do efectivo bovino leiteiro nacional com idade superior a 2 anos.

3. Entretanto, de acordo com os dados disponíveis registavam-se, até 15/09/98, os seguintes casos, estatisticamente apurados, na Europa:

Alemanha6
Bélgica4
Dinamarca1
França37
Irlanda298
Itália2
Luxemburgo1
Países Baixos2
R. Unido174.477
Suiça271
Outros4
TOTAL UE174.952
TOTAL MUNDIAL175.227
4. Desde Abril de 1996 que o Governo português pôs em execução, nomeadamente, um Plano de Erradicação da BSE, aprovado pela Comissão Europeia e traduzido no abate compulsivo de todos os animais clinicamente suspeitos de BSE e todos os co-habitantes nas explorações em que se registaram casos de animais doentes com BSE com o respectivo pagamento aos produtores. Até 31 de Julho de 1998 tinham sido abatidos 5781 animais dos quais somente 1 (um) apresentou um resultado positivo no exame (histopatológico) realizado ao cérebro dos bovinos abatidos.

Contudo, o abate não impediu o aparecimento, desde aquela data, de mais 116 casos de BSE diagnosticada em animais importados ou nascidos até 1994, sublinhando-se que a evidência dos sinais clínicos da doença ocorre, em média ponderada, em animais com idade compreendida entre os 4 e os 6 anos.

É de admitir que, provavelmente, mais casos teriam sido diagnosticados se não se tivessem abatido os co-habitantes, já que os animais coevos poderiam estar em período de incubação da doença e nessa fase não é possível o diagnóstico.

5. O Plano de Vigilância e Erradicação previa ainda, entre outros, 6. Entretanto a audição permitiu tomar conhecimento de várias medidas de controle da BSE propostas ao Governo, na pessoa do então Secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural Dr. Capoulas dos Santos, seja pelo Grupo Nacional da BSE e assumidas pelo Instituto de Protecção da Produção Agro-Alimentar seja pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a BSE, de que se destacam:

7. Entre 11 e 15 de Maio de 1998, realizou-se uma missão veterinária da Comissão Europeia a Portugal, que concluiu que nas unidades de transformação de subprodutos, que transformam resíduos de mamíferos em farinha de carne e ossos de mamíferos para utilização em alimentos para animais, embora quatro delas estivessem a funcionar com uma autorização provisória, os requisitos de transformação fixados no Anexo à Decisão nº 96/449/CE estavam a ser aplicados em todas as oito unidades de transformação de subprodutos. Afirmava ainda o relatório que "o sistema nacional em vigor para controlar a origem das matérias primas, a produção e o destino da farinha de carne e ossos de mamíferos, parece adequado. Todavia, a frequência dos controlos oficiais, designadamente nas unidades de produção de alimentos para animais, não é suficiente, tendo em conta a falta de procedimentos escritos passíveis de auditoria". Mas, entretanto, o relatório da missão veterinária da Comissão Europeia concluía que "embora esteja em vigor legislação nacional destinada a impedir que as matérias de risco específicas entrem na cadeia alimentar humana, elas podem ainda ser utilizadas para produzir farinha de carne e ossos de mamíferos que entram na cadeia alimentar animal" e afirmava que "não se pode excluir a existência de contaminação cruzada de alimentos para ruminantes com farinha de carne e ossos de mamíferos nas unidades de produção de alimentos para animais, nem de infracções à proibição de utilização de farinha de carne e ossos de mamíferos no terreno". Mais à frente o relatório conclui que "a actual situação epidemiológica (...) suscita apreensão", estando "relacionada com as medidas de controlo deficientes aplicadas no passado".

O relatório recomendava, entre outras medidas, que "se aplique legislação relativa á proibição total de utilização de farinha de carne e ossos de mamíferos na alimentação de todas as espécies de gado".

8. Estranha e incompreensivelmente, o Governo português, através da Autoridade Veterinária Nacional, só cerca de 4 meses depois, em 25 de Setembro - e somente após a decisão de Espanha e as ameaças de embargo da União Europeia - , é que reagiu e respondeu ao relatório da Missão Veterinária da Comissão Europeia, permitindo, durante esse lapso de tempo, que se consolidassem no plano internacional as críticas constantes do texto. O Governo português alega que a versão em língua portuguesa desse relatório só lhe chegou no dia 2 de Setembro.

Nesta resposta, a Autoridade Veterinária nacional "reconhece a necessidade de ir mais além, nomeadamente no que se refere aos controlos", apesar de contestar algumas das críticas da Missão Veterinária, designadamente quanto à reconversão tecnológica dos centros de tratamento dos subprodutos de origem animal, afirmando que todos eles cumprem os requisitos fixados nas decisões comunitárias.

Mas a resposta da Autoridade Veterinária Nacional revela óbvia desorientação ou, no mínimo, desacertos ao nível da Administração Pública portuguesa e do Governo. É que, enquanto a Autoridade Veterinária afirma, na resposta à Comissão Europeia, "que não se pode concordar" com a "proibição total da utilização de farinha de carne e ossos de mamíferos na alimentação de todas as espécies", o Conselho de Ministros do dia anterior à resposta e, posteriormente, o de 22 de Outubro de 1998, aprovaram exactamente essas medidas, que, aliás, deveriam ser alargadas a todo o espaço da União Europeia.

9. Quanto a esta última recomendação - recorrente em várias recomendações ao Governo -, a audição permitiu constatar que, quando da publicação do Decreto-Lei nº 32-A/97, de 28 de Janeiro, do Ministério da Saúde, que interditou "a entrada, por qualquer forma, na cadeia alimentar humana, bem como a detenção e comercialização para esse efeito, de encéfalo, medula espinal, olhos, amígdalas, baço, timo e intestino de bovinos, qualquer que seja a sua proveniência" (artº 2º) esteve previsto, no projecto de decreto-lei, que tal proibição abrangesse igualmente a cadeia alimentar animal. De acordo com depoimentos trazidos à Comissão, foi a pedido do Ministério da Agricultura que o projecto de decreto-lei foi amputado da expressão "cadeia alimentar animal", ao arrepio das opiniões do próprio Grupo de Trabalho Interministerial para a BSE então existente. Esta atitude do Ministério da Agricultura, incompreensível na opinião da Comissão, é coerente com a atitude, também incompreensível em termos de saúde animal e saúde pública, que o Ministro da Agricultura de Portugal tomou na reunião do Conselho de Agricultura de 17 de Dezembro de 1996, ao juntar o seu voto ao dos países que se opuseram à proposta da Comissão Europeia de interditar a incorporação de todos os tecidos de risco específicos nas cadeias alimentar humana e animal.

Não tendo sido possível à Comissão apurar com precisão as razões do insólito comportamento do Ministério da Agricultura, elementos obtidos permitem indiciar que os custos da aplicação do diploma estimados pelo Director Geral de Veterinária em 920.000.000$00 (novecentos e vinte mil contos) ou 1.344.000.000$00 (um milhão trezentos e quarenta e quatro mil contos) por ano, consoante se tratasse somente da destruição dos materiais de risco especificados ou também dos órgãos e tecidos previstos no Decreto-Lei nº 32-A/97, e a necessidade de cinco inspectores sanitários para garantirem o cumprimento eficaz do diploma, terão estado na origem desta medida não ter sido então aprovada. De facto, pode ler-se em ofícios do Director Geral de Veterinária, dirigidos ao Gabinete do então Secretário de Estado da Agricultura e do Desenvolvimento Rural, que "o orçamento desta Direcção Geral não comporta o pagamento previsto de 1.000.000 contos".

10. Fazendo uma recensão das medidas propostas, a Comissão constata que a promoção de acções de divulgação, a criação de um mecanismo de vigilância permanente em todos os centros de processamento de subprodutos e a reconversão tecnológica destes, a pesquisa analítica da presença de proteína de mamífero nos alimentos destinados a ruminantes, a reestruturação e reforço da comissão para o estudo das encefalopatias espongiformes, a vigilância sanitária das explorações e o esclarecimento da opinião pública e, sobretudo, a proibição da entrada na cadeia alimentar animal de materiais de risco e sua destruição, o controlo com presença permanente de inspectores sanitários nos estabelecimentos de abate, nas unidades de transformação de subprodutos ou nas fábricas de alimentos compostos para animais, ou não foi de todo realizado ou só o foi de forma muito parcial ou tardia.

11. De facto, só a partir de meados de Setembro de 1998, quando à opinião pública chegaram notícias sobre a possibilidade de um embargo a Portugal e, em particular, após a decisão tomada pelo Governo de Espanha, em 24 de Setembro de 1998, de proibir a importação de carne de vaca portuguesa, é que o Governo português decidiu, no Conselho de Ministros do mesmo 24 de Setembro, aprovar dois diplomas legais (mas que até ao momento ainda não foram, sequer, publicados) que "restringe a utilização de produtos de origem bovina, ovina e caprina na alimentação humana e animal e que revoga o Decreto-Lei nº 32-A/97 de 28 de Janeiro" e que define "medidas complementares de luta contra a BSE no domínio da alimentação animal" a que se seguiu, no Conselho de Ministros de 22 de Outubro de 1998 - na semana anunciada para uma eventual decisão de embargo pela Comissão Europeia - a aprovação de um outro diploma legal que "adopta medidas de emergência relativas á BSE proibindo a utilização na alimentação animal de proteínas e gorduras obtidas a partir de tecidos de mamíferos e determinando a destruição das respectivas existências".

12. Entretanto, face à dimensão da BSE em Portugal, a Comissão é de opinião que são desproporcionadas e injustas para os produtores portugueses tanto a proibição decretada pela Espanha como o embargo decidido pela União Europeia, que esta Comissão condena e rejeita energicamente. Apesar do número de casos se ter vindo a multiplicar de 1995 para cá - 15 em 1995, 31 em 1996, 30 em 1997 e 65 em 1998 (até 6 de Outubro) -, Portugal é ainda um dos países de mais baixa taxa de incidência da BSE. O embargo, aliás, é contraditório com a atitude displicente e sigilosa que a União Europeia tomou aquando do aparecimento da BSE no Reino Unido - e que lhe valeu uma crítica do Parlamento Europeu na investigação por este realizado; com a ausência de medidas ou de ameaça de medidas idênticas no caso da Irlanda ou ainda com, igualmente, a desvalorização da situação da BSE na Suíça.

Acresce que tais medidas cegas punem injustificadamente os produtores portugueses, a esmagadora maioria dos quais tem os seus efectivos totalmente indemnes.

13. Mas, sem prejuízo do que fica dito no número anterior, a Comissão condena severamente o Governo português pelo facto de, durante cerca de dois anos e meio, apesar do Plano de Erradicação da BSE e da decisão - que a Comissão avalia positivamente - de abate compulsivo de todos os bovinos diagnosticados com BSE e respectivos co-habitantes, ter assumido uma atitude de enorme irresponsabilidade ao não dar seguimento às medidas preconizadas tanto pela Assembleia da República nas grupos de trabalho e comissões criadas para acompanhar a BSE e pelos próprios serviços do Ministério.

Designadamente o adiamento, desde pelo menos Abril de 1996, de estender á cadeia alimentar animal a proibição de utilização de produtos de origem bovina, ovina e caprina e dos correspondentes materiais de risco com a sua consequente destruição; a ausência de medidas de controle permanente e in situ nas unidades de abate, de transformação de subprodutos e nas fábricas de alimentos compostos para animais, limitadas, hoje, no essencial a procedimentos administrativos; a não criação, de facto, de um corpo nacional de inspecção sanitária e a debilidade das medidas de epidemiovigilância, tudo isto contribui para a possibilidade da doença se continuar a multiplicar nos próximos anos; para a eventualidade de poder estar a ser reciclada; para o alarme da opinião pública e dos consumidores e deu á União Europeia margem de manobra para o embargo a Portugal.

Igualmente o facto de não haver uma campanha sistemática, serena e não alarmista, de informação aos consumidores e de promoção da produção de carne bovina nacional, designadamente das raças autóctones, certificada e com denominação de origem, contribui poderosamente para a quebra do mercado com enormes perdas de rendimento dos produtores nacionais.

14. Para além das conclusões expressas nos pontos anteriores, a Comissão:

  • Exorta o Governo português a desencadear todas as iniciativas diplomáticas e judiciais com vista a terminar com o embargo;
  • Sublinha a necessidade de serem levadas á prática, com urgência, as medidas acima preconizadas, designadamente as constantes dos diplomas legais recentemente aprovados em Conselho de Ministros;
  • Propõe ao Governo a elaboração e divulgação de um código de boas práticas de consumo. Nesse sentido, exorta o Governo português a desencadear medidas que permitam garantir ao consumidor que toda a carne exposta para consumo foi devidamente fiscalizada, designadamente através da colocação de um selo, a que se poderá chamar "selo de qualidade", ou através de um sistema de rotulagem da carne nacional;
  • Considera necessário o aprofundamento dos estudos sobre a situação epidemiológica da BSE em Portugal, bem como um estudo sobre a avaliação dos riscos;
  • Entende ser necessário adoptar medidas de rigoroso controlo sanitário e fiscalização na importação de gado, carne e alimentos compostos, designadamente pela concretização, com urgência, do corpo de inspectores sanitários;
  • Considera necessário que sejam previstas, no plano orçamental, medidas financeiras de apoio aos produtores e a toda a fileira pecuária pela quebra de rendimento, aumento de custos e perda de competitividade em resultado das medidas decretadas pela Espanha e do embargo da Comissão Europeia e das necessárias alterações dos sistemas de alimentação com a incorporação de matérias primas alternativas à alimentação animal, como é o caso dos produtos do complexo soja;
  • Afirma a sua convicção, pelos dados estatísticos e científicos disponíveis, de que não constitui, em geral, perigo para a saúde pública o consumo de carne bovina de origem nacional, designadamente aquela cujos sistemas de alimentação sejam à base de pastagens e prados e com controlo de qualidade assegurado;
  • Afirma a necessidade de serem criadas as condições orgânicas e institucionais para uma efectiva articulação entre todos os departamentos do Estado com tutela ou responsabilidade nesta matéria.