Intervenção do Deputado
Lino de Carvalho
Organismos geneticamente modificados
2 de Fevereiro de 2000
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
O debate sobre os Organismos Geneticamente Modificados (OGM's) está
na ordem do dia.
Desde o agendamento dos Projectos de Lei que hoje debatemos um facto novo
veio colocar a discussão dos OGM's noutro patamar.
Refiro-me ao Protocolo sobre Bio-Segurança finalmente aprovado em Montreal
há cinco dias.
A aprovação do princípio da precaução aplicado
ao comércio internacional, a necessidade de um consentimento prévio
de cada País à entrada de OGM's e a colocação
do protocolo no mesmo plano de força jurídica de outros acordos
internacionais, designadamente a sua não subordinação
às regras da Organização Mundial do Comércio,
sem prejuízo de uma leitura em pormenor do seu articulado, constituem
decisões positivas só possíveis porque uma nova consciência
ambiental tem vindo a ganhar espaço face aos todo poderosos interesses
das transnacionais do comércio agro-alimentar.
As questões ainda em aberto, e em relação às quais
as multinacionais impuseram o adiamento da sua concretização
para daqui a dois anos (e que o Ministro do Ambiente tem ignorado nas declarações
públicas que tem produzido) ou seja a rotulagem dos transgénicos
e a traçabilidade para o efectivo pecuário, bem como a não
aplicação do Protocolo aos OGM's produzidos pela indústria
farmacêutica, impõem a continuação da pressão
internacional para que não se volte atrás.
Entretanto importa que todos os países ratifiquem o Protocolo assinado
em Montreal.
O Governo português, com as responsabilidades que decorrem da Presidência
da União Europeia, deve dar o exemplo e ser o primeiro a promover a
sua ratificação e a aplicá-lo no nosso País, tanto
mais que ele só entrará em vigor após cinquenta Estados
o terem ratificado.
Mas também nos devemos prevenir para que os avanços conseguidos
em Montreal - onde se conseguiu o que, em Seattle, os EUA não queriam
- não funcionem como moeda de troca para as futuras negociações,
noutros sectores, da chamada Ronda do Milénio no âmbito da Organização
Mundial do Comércio. É que a questão da segurança
alimentar não se esgota nos OGM's. Também passa pela soberania
alimentar.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
As biotecnologias são hoje - e sê-lo-ão mais nos próximos
tempos - uma realidade incontornável de ordem científico-tecnológico
mas também - e muito - de ordem económica.
A nossa posição, nesta matéria, é contrária
a qualquer tipo de fundamentalismo, ou de posições simplistas
ou alarmistas.
Não demonizamos os avanços científicos obtidos nesta
matéria. Bem pelo contrário. Eles constituem, em muitos casos,
passos importantes para o combate a doenças ou para aumentar os níveis
da capacidade produtiva agrícola.
Mas não aceitamos de todo, que estes avanços sejam colocados
ao serviço de uma lógica produtivista e mercantil, ela própria
depradadora do meio ambiente bem como ao serviço privado da meia dúzia
de transnacionais que, no mundo, dominam a indústria farmacêutica
ou a produção agro-alimentar com desprezo pela saúde
humana e pelos equilíbrios ambientais e a biodiversidade do nosso eco-sistema.
Que é o que tem acontecido! E que era o que se pretendia que tivesse
sido confirmado em Seattle e que só a mobilização da
opinião pública impediu.
Temos demasiados exemplos concretos recentes que justificam todas as medidas
de precaução e de disciplina.
Citarei alguns:
Como afirmava, na audição sobre as biotecnologias proposta pelo
PCP e promovida pela Comissão de Agricultura em 1997, a Dra. Fátima
Quadros, docente de genética e de melhoramento de plantas na Escola
Superior Agrária de Santarém, o problema da BSE nas vacas (e,
por extensão, a doença de Kreutzfedt-Jacob) "é um
problema de generalização de uma tecnologia em termos de produção
de rações antes de haver uma avaliação dos riscos.
Avançou-se com excesso de arrogância. Sabia-se muito pouco para
generalizar tanto o produto".
A compra pela Monsanto, produtora transnacional do sector químico-farmacêutico,
da biotecnologia Terminator é outro exemplo dos perigos a que a Humanidade
está sujeita quando os avanços científicos são
privatizados ao serviço do máximo lucro. Como esclarece o Conselho
Científico da ATTAC num interessante texto intitulado "Impedir
o assalto das transnacionais ao ser vivo" a biotecnologia Terminator
"permite modificar geneticamente as plantas de modo que, chegadas à
maturidade, destruam o seu próprio gene".
Isto é, em termos mais simples, trata-se de um processo que esteriliza
a semente da planta de tal modo que um agricultor que utilize uma planta geneticamente
modificada a partir desta biotecnologia não pode utilizar o grão
resultante dessa semente para voltar a semear no ano seguinte - como o faz
secularmente - porque ela traz um gene inoculado que mata a possibilidade
de reprodução após a primeira sementeira.
Face aos protestos internacionais a Monsanto congelou a aplicação
desta "necrotecnologia" mas o exemplo é bem significativo
de como as transnacionais podem adquirir um poder sem controlo e de como,
neste caso, os agricultores, ficam nas mãos dos seus fornecedores.
Por outro lado, não está provado que a utilização
de milho geneticamente manipulado não tenha também consequências
muito negativas no meio ambiente. Por exemplo, o chamado milho Bt - Bt por
incorporar genes de uma bactéria com essas iniciais - que foi desenvolvido
pela empresa norte-americana de biotecnologia NOVARTIS, particularmente resistente
a uma praga - a broca do milho - foi utilizado numa experiência laboratorial,
segundo a revista científica Nature, para alimentar larvas de borboletas-monarcas
que foram também alimentadas com pólen de milho normal. O resultado
foi que mais de metade das larvas alimentadas com o milho manipulado morreram.
Ao mesmo tipo de conclusões se chegou no Instituto Rowett, na Escócia,
numa experiência de inoculação em ratos realizada com
batatas geneticamente manipuladas. Sobre a colza, a soja, o tomate, o tabaco
e a beterraba transgénicas também se desenvolvem pesquisas ainda
sem resultados seguros.
A questão é que a produção de plantas mais resistentes
às pragas e que permitem obter uma muito maior produtividade agrícola
desenvolvem toxinas (caso da toxina BT no milho) que lançadas no meio
ambiente afectam organismos vivos que podem atingir a própria cadeia
alimentar. Depois, para combater as toxinas e as novas pragas têm de
se inventar novos herbicidas e pesticidas que as mesmas transnacionais vendem
em pacote (um espécie de "kit" completo) e assim se cria
uma progressão geométrica de poluição genética
sem controlo.
Uma outra questão não menos importante: a do patenteamento dos
seres vivos que não foi abrangida pelas negociações de
Montreal e que os EUA tentaram institucionalizar em Seattle. Trata-se, em
resumo, das transnacionais do sector agro-alimentar e da indústria
farmacêutica terem a faculdade de patentearem a seu favor, seres vivos
e sequências genéticas produzidas a partir dos conhecimentos
acumulados por gerações de agricultores e de povos.
O que se liga, finalmente à fundamental questão do domínio
da tecnologia e dos avanços científicos e às relações
de dominação imperial que tal proporciona.
É neste contexto que devemos apreciar a questão dos OGM's e
o Protocolo de Montreal bem como a necessidade da sua futura aplicação.
É que não bastam as boas intenções do Protocolo.
A questão é muito mais vasta. Além do mais, já
temos visto muitos protocolos cuja concretização fica no tinteiro.
Os muitos exemplos do que aconteceu na Conferência do Rio estão
aí a comprová-lo.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
Segurança, mecanismos de controlo e de avaliação do
risco são elementos centrais neste processo.
O que o Governo português tem feito, neste domínio, é
manifestamente pouco. A suspensão, em Dezembro passado, da produção
de duas variedades de milho transgénico é tão só
um passo limitado imposto pelos factos consumados que já tinham sido
decididos na União Europeia. (Mas que já deu contudo para o
Sr. Ministro da Agricultura aparecer umas dez vezes na televisão a
dizer sempre o mesmo).
A verdade é que não tem havido uma estratégia governamental
global, há uma dupla tutela sobre a matéria - Agricultura e
Ambiente, muitas vezes de costas voltadas e não há meios humanos
suficientes para, por exemplo, fiscalizar os campos experimentais que se vão
implantando.
Mas é preciso fazer mais.
Desde logo, a aplicação efectiva do princípio de precaução,
em toda a linha. Em caso de dúvida científica sobre as consequências
da utilização de um determinado transgénico manda o bom
senso e a defesa da saúde pública e da biodiversidade que a
sua produção, importação e comercialização
sejam impedidos até à existência de uma certeza científica.
Uma moratória de cinco anos para a utilização dos OGM
(e não proibição), como propõe o Grupo Parlamentar
do PEV com vista a dar tempo a que se desenvolvam o mais largo número
de estudos científicos parece-nos igualmente uma decisão avisada.
A Assembleia da República tem, assim, com as iniciativas legislativas
em debate, a oportunidade de, por um lado, antecipar a entrada em vigor do
Protocolo de Montreal e, por outro, concretizar alguns dos princípios
aprovados
Sem prejuízo, contudo, de considerarmos que, face ao novo quadro internacional,
as iniciativas legislativas do PEV e do BE, sendo de aprovar, deverão
ser alvo de alguma reformulação e densificação
em sede de especialidade.
Finalmente, é necessário envolver a nossa comunidade científica,
com particular relevo para as Universidades na pesquisa e na avaliação
dos riscos associados aos transgénicos. O Governo português não
pode limitar-se a ficar dependente dos relatórios que lhe chegam da
União Europeia, normalmente feitos à luz das orientações
e dos estudos das próprias transnacionais e dos países que dominam
as novas tecnologias.
Por outro lado é preciso criar-se, no futuro, um Comité de Bio-Segurança,
independente, que tenha como função central fazer o acompanhamento,
o controlo e assumir as decisões em matéria de utilização
das biotecnologias. A Comissão proposta no projecto do PEV, e no seu
contexto, é um exemplo que vai nesse sentido.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Há ainda muito caminho a percorrer, para retirar os transgénicos
da pura lógica do mercado e de uma política económica
baseada no produtivismo bem como do domínio das transnacionais. O PCP
vai continuar a empenhar-se nesta questão, tendo presente as legítimas
preocupações dos consumidores, na linha da audição
que na anterior Legislatura foi realizada pela Assembleia da República
sob proposta do nosso Grupo Parlamentar.
A aprovação dos dois projectos de lei que hoje estão
submetidos à nossa apreciação é um novo passo
nesse sentido.
Disse.