Apreciação Parlamentar nº 4/VIII - Decreto-Lei
nº 439-A/99, de 29 de Outubro, que"Altera o artigo 3º-A do Decreto-Lei
nº 379/93, de 5 de Novembro, na redacção da Lei nº 176/99,
de 25 de Outubro" (Constituição do capital das sociedades
concessionárias dos sistemas multimunicipais de captação,
tratamento e distribuição de água para consumo público,
de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e
tratamento de resíduos sólidos)
Intervenção do Deputado João Amaral
26 de Novembro de 1999
Senhor Presidente,
Há neste debate uma questão, que é a de saber como deve
ser constituído o capital das sociedades concessionárias dos sistemas
multimunicipais de captação, tratamento e distribuição
de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição
de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos.
Sobre essa questão, há a solução Cavaco Silva
( Decreto-Lei 397/93, de 5 de Novembro), de entregar a maioria de capital
a entidades públicas dependentes do Governo, solução
que foi combatida, quando o PS era oposição, pelo PS de António
Guterres e pelo PCP. Com o argumento muito claro que essa solução
expropriava os municípios do seu património, e mais importante,
expropriava-os de uma atribuição que era sua face à lei
de delimitação de atribuições entre a administração
central e local.
E há outra solução, de a maioria do capital ser dos respectivos
municípios ( se o quiserem deter), que é a solução
aprovada pela Assembleia da República no termo da legislatura passada,
pela lei nº 176/99 de 25 de Outubro, solução combatida
agora pelo Governo de António Guterres, em completa contradição
com a posição do PS de António Guterres tomar em 1994.
Sobre esta questão, não mudamos de opinião: a solução
de expropriar os municípios do controlo destes sistemas ditos multinacionais,
é uma solução que viola a esfera de atribuições
dos municípios e é uma má solução quanto
à defesa dos interesses das populações. Afastar os municípios
da política de investimentos e de preços desses sistemas, corresponde
a afastar, quem representa e melhor conhece os problemas das populações,
das opções essenciais quanto a estas matérias essenciais
para a qualidade de vida dessas mesmas populações.
Sobre estas questões, está tudo dito. Mas esta não é
a questão essencial deste debate. A questão essencial é
política, tem conteúdo procedimental, e refere-se concretamente
ao modelo de relações entre a Assembleia da República
e o Governo. O que se passar hoje e aqui é um teste ao comportamento
deste Governo não maioritário na sua relação com
a Assembleia da República.
Os factos falam por si. A história da publicação da Lei
nº 176/99 desta Assembleia da República e da sua revogação
pelo Decreto-Lei nº 439-A/99 parece o resultado do Celta de Vigo - Benfica.
O resultado é o mesmo: truques e velhacarias - 7, Assembleia da República
- zero!
Primeiro, a Lei é votada em 2 de Julho, uma lei de dois artigos, mas
só é enviada pela Mesa da Assembleia para a Presidência
da República em 30 de Julho. Segundo, o Presidente da República
só a promulga em 10 de Setembro, quarenta e dois dias depois, apesar
do artigo 163º da Constituição, que lhe dá vinte
dias para o fazer.
Terceiro, o Governo demora 33 dias para a referenda, feita a 13 de Outubro
e atrasa a publicação do diploma mais doze dias , que só
ocorre a 25de Outubro.
Quarto, a 8 de Outubro, mesmo 5 dias antes da referenda e 17 dias antes da
publicação da lei da Assembleia, o Governo em Conselho de Ministros
revoga-a. Quinta, aceleradamente o Presidente da República promulga-a
em 25 de Outubro. Sexta, aceleradamente também, vem a referenda em
26 de Outubro e a publicação do Decreto-Lei revogatório,
com o habitual suplemento ao Diário da República, isto é,
com a habitual manipulação de datas, o que permite a publicação
a 29 de Outubro do Decreto-Lei, isto é, quatro dias depois da publicação
da lei. Sétimo, o Governo mete no seu Decreto-Lei um artigo de entrada
imediata em vigor; ora, como a Lei não tem essa norma e assim, tem
cinco dias para entrar em vigor, a lei é revogada no mesmo dia em que
entraria em vigor.
Palavras para quê? É um artista português e usa uma lata
institucional marca PS. Muita lata e nenhum pudor.
E não venha o Governo falar da competência legislativa concorrente.
Porque, o que o Governo aqui fez foi usar essa competência, não
só para afrontar a Assembleia da República, mas, na prática,
para impedir uma lei de vigorar. O Governo não exerceu uma competência
legislativa, arrogou-se um direito de veto, com a complacência do seu
titular único que é o Presidente da República.
Mas, o que está contido neste caso não é só um
juízo de procedimento político. Não se trata só
de condenar a grosseira manipulação, a afronta à Assembleia,
o envolvimento de entidades excessivas, o espírito de trafulhice com
que isto tudo foi feito, a perversão constitucional que foi consumada.
O que está em evidência neste caso é o relacionamento
deste Governo não maioritário com a Assembleia da República.
O Governo, em vez de diálogo, mostra querer usar perversamente a artilharia
constitucional para obter na secretaria o que os eleitores não lhe
deram nas urnas.
Através de um esquema simples. Sempre que houver leis da Assembleia
em matéria que lhe não seja reservada, o Governo mostra não
hesitar em fazer decretos-leis contra essas leis da Assembleia, contando que
os seus 115 parlamentares façam o bloqueio da eventual apreciação
parlamentar desses decretos-leis, impedindo a sua alteração
ou revogação.
Isto é, a competência legislativa, de concorrente, passa a exclusiva
do Governo.
Teríamos uma subversão do modelo constitucional, com a supremacia
legislativa do Governo.
Isto é, o Governo mostra que quer governar contra a Assembleia, e sem
respeito pelo seu papel constitucional.
Quer ultrapassar o limite de 115 Deputados, que o povo português lhe
impôs, pela via da prepotência e do uso fraudulento e abusivo
de mecanismos constitucionais.
É o Governo que mostra assim querer governar abrindo crises no terreno
do funcionamento dos órgãos de soberania.
A bola cai agora, inteirinha, no regaço da bancada rosa.
É a V. Exas., senhores Deputados do PS, que cabe decidir se aceitam
ser cúmplices desta governação contra a Assembleia, ou
se querem garantir o Parlamento como órgão legislador e como
centro da vida política.
Bloqueando a apreciação parlamentar de decreto-leis como este,
que revogam leis, os senhores Deputados do PS fazem-se cúmplices desta
perversão perigosa da vida política. É a cruzada pela
crise.
Se pelo contrário derem já um sinal que não aceitam este
tipo de relacionamento, então a bancada do PS prestará um serviço
às instituições e ao seu funcionamento regular.
O Governo borrou a pintura. Vejam lá os senhores Deputados se querem
continuar a obra do Governo e deitar a casa abaixo.
Disse.