Intervenção do
deputado António Filipe
Recenseamento Eleitoral
13 de Janeiro de 1999
Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,
O recenseamento eleitoral, oficioso, obrigatório, permanente e único, nos termos constitucionais, é um instrumento fundamental para o Estado Democrático. Da fidedignidade do recenseamento, enquanto elemento definidor do universo eleitoral, depende em larga medida a própria fidedignidade dos actos eleitorais.
A definição dos princípios que ainda hoje enformam, e bem, o recenseamento eleitoral em Portugal, remonta aos primeiros tempos do nosso regime democrático. A garantia de um recenseamento realizado de forma correcta, amplamente participada e com condições suficientes de fiscalização por parte de todos os cidadãos, assumiu-se desde logo como um dos princípios basilares do direito eleitoral democrático que importa hoje, e sempre, salvaguardar.
Princípio que importa salvaguardar tanto mais, quanto é certo que as vicissitudes dos tempos que vão correndo têm tornado mais complexas as operações de recenseamento eleitoral e quanto mais complexas essas operações se tornam mais importante se revela a criação de garantias acrescidas da sua genuinidade e fidedignidade.
Resulta essa complexidade do facto de integrarem hoje o recenseamento eleitoral cidadãos em situações diversas quanto à sua capacidade eleitoral activa e passiva, o que constitui um facto relativamente novo. Para além dos cidadãos nacionais maiores de 18 anos, residentes em Portugal, recenseados no território nacional e dos cidadãos nacionais residentes no estrangeiro e em Macau, e aí recenseados, outras situações vieram, nos últimos anos, a integrar o recenseamento eleitoral.
Primeiro passou a admitir-se a declaração antecipada da intenção de recenseamento junto das embaixadas e postos consulares por parte de cidadãos residentes no estrangeiro, havendo que cuidar da correcção da sua transposição efectiva para o recenseamento eleitoral. Depois passou a admitir-se o recenseamento de cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, quer cidadãos da união Europeia, quer cidadãos de países da CPLP, comportando situações diversas quanto à respectiva capacidade eleitoral. Depois, passou a existir o recenseamento provisório para os cidadãos com 17 anos que não completassem os 18 até ao final do período legal de inscrição, que se converte em definitiva à data em que completam essa idade.
Em suma, o recenseamento foi-se tornando mais complexo. Na sua elaboração e, evidentemente, também no controlo do rigor com que é efectuado.
Acresce que as possibilidades técnicas hoje existentes, através do recurso à informatização, permite, não direi simplificar, mas agilizar a actualização do recenseamento eleitoral. Existe hoje uma base de dados centralizada relativa ao recenseamento, criada por lei especial desta Assembleia, e existe a possibilidade de utilizar meios informáticos para garantir a actualidade do recenseamento e superar a regra da actualização anual que ainda hoje vigora.
É portanto útil e pertinente, do nosso ponto de vista, reexaminar a lei do recenseamento eleitoral. Não para alterar os princípios em que assenta, mas para encontrar formas de os garantir com maior celeridade e eficácia.
É importante garantir a existência de um recenseamento eleitoral permanentemente actualizado. É importante regular a utilização da Base de Dados do Recenseamento já existente e a sua fiscalização. É importante examinar todo o edifício legislativo do recenseamento por forma a unificar num só diploma toda uma série de contribuições legislativas avulsas que foram acrescendo ao sistema.
Posto isto, importa também dizer que, do nosso ponto de vista, a Proposta de Lei do Governo não resolve bem todos os problemas que são suscitados. Aliás, o conjunto de propostas que hoje mesmo nos chegaram da parte do Governo, já como contribuição para o debate na especialidade, é bem o reconhecimento desse facto. Não houve ainda tempo para apreciar essas propostas com a merecida atenção, o que será feito muito em breve, mas regista-se a sua apresentação ainda antes deste debate.
Relativamente ao texto originário da Proposta de Lei, e penso que as questões que vou suscitar não ficam resolvidas mesmo com as propostas agora apresentadas, importa levantar alguns problemas que devem ser ponderadamente analisados e resolvidos na especialidade.
O primeiro problema diz respeito ao recenseamento provisório dos cidadãos com 17 anos. Este instituto foi criado, como todos nos lembramos, para resolver um problema que decorria da anualidade da actualização do recenseamento. Quem completasse 18 anos depois do último dia do mês de Maio de cada ano só poderia recensear-se durante o mês de Maio do ano seguinte, o que somado ao período de inalterabilidade dos cadernos eleitorais que precede cada acto eleitoral, fazia com que em algumas eleições só aos 19 anos se pudesse votar, e em casos limite mesmo cidadãos já com 19 anos ficavam impedidos na prática de exercer o seu direito de voto.
Este problema foi resolvido - bem resolvido - com uma lei especial que criou o recenseamento provisório. O que acontece nesta Proposta de Lei é que o mecanismo do recenseamento provisório é transposto para o futuro articulado sem ter em consideração que no mesmo diploma se propõe que a actualização do recenseamento passe a ser mensal. E portanto, se continua a ser indispensável encontrar um mecanismo de salvaguarda do direito de voto dos cidadãos que completem 18 anos até ao dia de uma eleição, já não faz sentido que se mantenha o recenseamento provisório generalizado de todos os cidadãos com 17 anos, que seria desnecessário para a grande maioria, com a agravante de subsistirem ambiguidades quanto à sua obrigatoriedade. É um primeiro problema que importa analisar com cuidado.
A segunda questão que queremos suscitar diz respeito à introdução na lei do recenseamento de disposições que lhe são alheias e que visam atingir fins que são estranhos ao recenseamento eleitoral. Não faz sentido que passe a ser necessário exibir o cartão de eleitor para renovar o bilhete de identidade. As exigências quanto à renovação do BI é matéria a discutir em sede de legislação sobre a identificação civil. Não é matéria que diga respeito ao recenseamento.
Assim como não faz sentido proceder a interconexões com a base de dados do SEF para detecção de irregularidades quando os eleitores já são obrigados a apresentar documentação emanada do SEF para efeitos de recenseamento. Há aqui uma mais que duplicação de exigências: Um cidadão estrangeiro que possa e queira recensear-se tem de apresentar: 1º, a autorização de residência. 2º, um documento passado pelo SEF que certifique o tempo mínimo de residência em Portugal. 3º, uma declaração formal de onde conste a nacionalidade e o endereço no território nacional (a confirmar pela comissão recenseadora) e ainda o caderno eleitoral do círculo ou autarquia local do Estado de origem em que tenha estado inscrito em último lugar, e ainda, que não se encontra privado de direito de voto no estado de origem. Portanto, de duas uma, ou se faz fé na documentação emanada do SEF e se prescinde da conexão de ficheiros, ou se reduz a carga de exigências burocráticas para o recenseamento de cidadãos estrangeiros que, tal como está, é verdadeiramente desencorajadora e injustificada. Como é sobre esta matéria que incide o projecto de lei do PCP também hoje em discussão, referir-me-ei a ela mais adiante.
Há entretanto alguns outros aspectos da proposta de lei que suscitam reparo:
Refere-se a dado passo o dever de colaboração das assembleias de freguesia no recenseamento eleitoral, através de membros a designar por estas. Não se diz em parte alguma em que consiste tal colaboração.
Prevê-se a existência de uma aceitação meramente condicional da inscrição quando se suscitem fundadas dúvidas sobre a sanidade mental do cidadão. E nesse caso fica o cidadão obrigado a apresentar, no prazo de trinta dias, atestado comprovativo da sua sanidade mental passado por uma junta de três médicos. Estamos aqui, senhores Deputados, perante um caso curioso de inversão do ónus da prova, já não quanto à origem do património, mas quanto à sanidade mental de cada um.
Um outro problema que merece referência desde já, diz respeito à conciliação do sistema de prazos referido no artigo 57º da proposta de lei para a exposição e eventual correcção dos cadernos, cuja contagem começa no 55º dia anterior à data da eleição e vai até ao 15º dia, que marca o período de inalterabilidade dos cadernos eleitorais, com o facto de se prever a inscrição no recenseamento até ao 50º dia anterior à eleição. Este sistema de prazos não pode deixar de ser compatibilizado.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
O PCP apresentou recentemente na Mesa desta Assembleia um projecto de lei relativo às exigências de identificação que são feitas aos cidadãos estrangeiros para efeitos de inscrição no recenseamento eleitoral.
A Lei n.º 50/96, de 4 de Setembro, concretizando o disposto no n.º 4 do artigo 15º da Constituição, veio consagrar legalmente a atribuição de capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de órgãos das autarquias locais a cidadãos estrangeiros residentes em Portugal, em condições de reciprocidade, fazendo porém depender tal capacidade, no caso dos cidadãos não nacionais de países da União Europeia, de um período mínimo de residência em Portugal.
Assim, os cidadãos que não sejam nacionais de países membros da União Europeia nem de países da CPLP só adquirem capacidade eleitoral activa e passiva se residirem legalmente em Portugal há pelo menos 3 e 6 anos, respectivamente, beneficiando os cidadãos nacionais de países da CPLP de um regime mais favorável (proposto pelo PCP) que lhes atribui capacidade eleitoral activa se residirem em Portugal há 2 anos e capacidade eleitoral passiva se cá residirem há 4.
A Lei n.º 50/96, de 4 de Setembro, ao introduzir na lei do recenseamento eleitoral e na lei eleitoral para os órgãos das autarquias locais as exigências formais destinadas a certificar o período mínimo de residência para efeitos de recenseamento e para efeitos de apresentação de candidaturas, optou por uma solução que se tem vindo a revelar injustificada e que dificulta o recenseamento de cidadãos não nacionais e consequentemente a sua apresentação como candidatos.
A lei exige actualmente que o período mínimo de residência seja comprovado através do bilhete de identidade de cidadão estrangeiro ou da autorização de residência e para além disso, obrigatoriamente, através de um documento emitido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
A referência ao bilhete de identidade de cidadão estrangeiro deixou de fazer sentido, na medida em que o decreto-lei n.º 244/98, de 8 de Agosto, dispõe no seu artigo 90º que o título de residência substitui, para todos os efeitos legais, o bilhete de identidade de cidadão estrangeiro.
Quanto ao documento do SEF, trata-se de uma exigência absurda. De facto, se através da autorização de residência, que é um documento idóneo passado pelo Estado português, é possível, na generalidade dos casos, comprovar o período mínimo de residência legal em Portugal, por que razão se há-de exigir a todos os cidadãos, para além disso, a apresentação de um documento emitido pelo SEF?
Será que o legislador não confia na idoneidade das autorizações de residência concedidas pelo Ministério da Administração Interna? Ou será que pretende fazer recair sobre os cidadãos estrangeiros que pretendam recensear-se ou que pretendam ser candidatos aos órgãos das autarquias locais uma inadmissível presunção de desonestidade? Seja qual for a resposta, importa que a lei seja alterada, corrigindo este aspecto absurdo.
Propõe-se então, que para efeitos de recenseamento eleitoral e de apresentação de candidaturas de cidadãos estrangeiros (que não sejam nacionais de países da União Europeia) o período mínimo de residência em Portugal seja comprovado através da autorização de residência, e que só supletivamente, nos casos em que tal certificação não possa ser obtida através desse documento seja exigido um outro documento comprovativo a emitir pelo SEF.
Disse.