Debate do Relatório de Segurança Interna - Ano 2004
Intervenção de António Filipe
20 de Janeiro de 2006
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
A apreciação deste Relatório de Segurança Interna relativo a 2004 está, como todos reconhecem, desfasada no tempo, pois o governo era outro, já passou todo o ano de 2005, estamos em 2006 e dentro de cerca de dois meses estará concluído o Relatório de Segurança Interna relativo ao ano de 2005, esse já da responsabilidade do actual Governo.
Como se sabe, todo o ano de 2004 decorreu sob a governação de uma maioria diversa, do PSD e do CDS-PP, portanto, este Governo cumpre o dever de ofício de vir aqui apresentar um relatório que foi elaborado por outro governo e que é relativo a um tempo em que a governação pertencia a outro executivo.
Em todo o caso, compreende-se que a Assembleia da República não tenha tido, enfim, possibilidade de apreciar esse relatório antes, dado que, obviamente, houve várias vicissitudes políticas que alteraram aquele que seria o normal decurso do trabalhos se a legislatura tivesse prosseguido, o que não aconteceu.
Portanto, agora, estamos confrontados com este fenómeno, que é o de, por um lado, o PSD e o CDS-PP considerarem que a situação em 2004 até era aceitável, mas que, seguramente, em 2005, haverá uma tendência para piorar, e, por outro lado, o Partido Socialista considerar que a situação em 2004 não era brilhante, mas que em 2005 poderá registar algumas melhoras. Vamos ver se isso se confirmará quando discutirmos aqui, o que devermos fazer dentro de poucos meses, o relatório relativo a 2005.
Em todo o caso, há algumas especificidades deste Relatório que cumpre anotar, desde logo o facto de a maior parte do investimento nas forças e serviços de segurança ter sido reservada para o Euro 2004, o que de alguma forma foi inevitável, porque o Euro 2004 realizou-se e, portanto, obviamente, tinha que haver investimentos para essa área. No entanto, cumpre anotar que se gastaram 15,9 milhões de euros no Euro 2004 — despenderam, designadamente, 830 000 € em material técnico-policial e 107 000 euros em comunicações —, ou seja, houve um esforço muito grande para o Euro 2004 que objectivamente prejudicou outras forças policiais.
Mas não foi só o Euro 2004, foi também a missão da GNR no Iraque, pois verificamos que se gastaram 2,5 milhões de euros com a missão da GNR no Iraque, o que contrasta com os gastos de 830 000 € em material técnico-policial e de 107 000 € em comunicações e até em material automóvel. Sabe-se que as viaturas são um problema crítico para as forças de segurança, que elas são fundamentais para a sua actividade operacional, mas, em 2004, gastou-se mais na operação do Iraque do que na aquisição de viaturas para as forças de segurança, e aí já é mais grave, do nosso ponto do vista, do que no investimento para o Euro 2004.
Há algumas preocupações que resultam deste Relatório, não propriamente a do aumento da criminalidade global, porque isso, como é referido no Relatório, não se verificou, mas a da alteração do tipo de criminalidade, designadamente a do aumento da criminalidade violenta e até da muito violenta. Isso deve preocupar-nos e é um elemento de reflexão relativamente àquilo que é necessário fazer em matéria de política de segurança interna.
O Relatório não escamoteia dificuldades operacionais sérias das forças de segurança e, portanto, há aspectos relativamente aos quais aguardamos com muito interesse o relatório referente ao ano transacto, para verificar como é que isto evoluiu, que medidas foram ou não tomadas e que medidas terão de ser tomadas para colmatar essa alteração qualitativa da criminalidade.
Contudo, queria focar um elemento que tem que ver com a equiparação que é feita, em matéria de Relatório, entre a criminalidade e a conflitualidade social e que é absolutamente inaceitável!
Nas págs. 38 e 39 deste Relatório anual de Segurança Interna vemos coisas como estas: «populares continuaram a protestar em algumas localidades contra a falta de segurança ali verificada e contra o mau estado de algumas estradas»; «o conturbado processo da colocação de professores constituiu-se como elemento potenciador nos conflitos verificados no âmbito do ensino com manifestações generalizadas de alunos e professores»; «o encerramento e horário de funcionamento de alguns centros de saúde provocaram alguma contestação, particularmente em aglomerados populacionais do interior»; «o sector têxtil, pela sua importância nas exportações nacionais e por tudo o que ele representa no segmento empresarial e ocupacional do País, constitui o grosso da fatia da contestação, fundamentalmente devido ao desinvestimento no sector e à sua deslocalização para países com melhores atractivos e com mão-de-obra mais barata». Isto é extraordinário! Pergunto o que é que isto tem que ver com o Relatório de Segurança Interna e apelo ao actual Governo que não entre por este caminho, porque, efectivamente, o que aqui está é o exercício normal de direitos dos cidadãos!
Na pág. 39, refere-se inclusivamente o seguinte: «registaram-se acções de protesto/greves neste âmbito, algumas das quais com grande destaque na comunicação social, como sejam as greves dos médicos, enfermeiros e inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras».
Ora, o que se passa é que os direitos à greve e à manifestação estão consagrados como direitos fundamentais nos artigos 57.º e 43.º da Constituição, pelo que não se percebe como é que isto pode ser considerado para efeitos de elaboração do Relatório de Segurança Interna e com considerações deste tipo!
Portanto, há, aqui, uma concepção inaceitável relativamente à forma como este Relatório é elaborado.
Esta não é uma matéria relativa à segurança interna, não é uma matéria relativa à criminalidade, é uma matéria relativa ao exercício dos direitos fundamentais! Se o exercício dos direitos fundamentais passa a ser objecto de Relatório de Segurança Interna, então no relatório de 2006 hão-de vir também as «arruadas» dos candidatos presidenciais, porque, obviamente, segundo este critério, também têm que ver com matéria de segurança pública.
Por conseguinte, espero que isto seja alterado no próximo relatório e confio que o Governo o fará.