Aprovação do regime da responsabilidade extracontratual civil do Estado e demais entidades públicas
Intervenção de António Filipe
31 de Março de 2006

 

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

As minhas primeiras palavras são para exprimir a concordância de princípio do Grupo Parlamentar do PCP relativamente à aprovação de diplomas sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado, o que não é novidade para ninguém, pois é a terceira vez que o afirmamos nesta Câmara, porque é a terceira vez que esta matéria é aqui discutida.

Já aqui foi dito que este tem sido um processo legislativo atribulado; eu diria que não é o processo que tem sido atribulado, atribuladas foram as circunstâncias da vida política que fizeram com que, por duas vezes, estas iniciativas legislativas tivessem caducado.

Bom, mas estamos agora em condições de retomar este processo e esperamos levá-lo até ao final.

Como já foi dito, trata-se de substituir um diploma que tem muitos anos (é de 1967) e que regula a responsabilidade civil extracontratual do Estado no âmbito da actividade administrativa, de actualizar este regime e de ir mais longe, prevendo a aprovação de um regime sobre a responsabilidade extracontratual do Estado, não apenas no domínio da actividade administrativa mas também no âmbito da actividade política, legislativa e jurisdicional, e de consagrar o direito de regresso sobre os responsáveis concretos por esta actuação ou omissão do Estado lesiva de direitos dos cidadãos, nos casos em que exista dolo ou culpa grave por parte dos agentes.

Trata-se não apenas de actualizar um diploma de 1967 mas de dar cumprimento a disposições constitucionais imperativas e que ao tempo da aprovação desse diploma não existiam, não vigoravam. E temos como referência fundamental o artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa, que é muito taxativo a este respeito, quando refere «O Estado e as demais entidade públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».

Esta disposição constitucional não podia ser mais clara e, efectivamente, ela carece de uma adequada tradução em termos legislativos para que os cidadãos possam, de facto, ser indemnizados por prejuízos que sofreram devido a uma actuação do Estado passível de ser responsabilizada.

Mas temos também o artigo 271.º da Constituição, que se refere aos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas e que estabelece o princípio da sua responsabilização em termos civis, criminais e disciplinares por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções ou por causa desse exercício quando daí resulte uma violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Ou seja, temos aqui imperativos constitucionais que têm de ser transpostos para a lei ordinária e, por isso, não poderíamos estar mais de acordo com a necessidade de corrigir, urgentemente, esta lacuna legislativa.

Relativamente à generalidade, poderíamos dizer que está tudo dito, mas, uma vez que já discutimos esta matéria três vezes na generalidade, podemos antecipar alguns aspectos da especialidade, pois creio que não se perde nada com isto. Embora em termos muito genéricos, gostaria de anunciar alguns aspectos que, do nosso ponto de vista, deveriam ser ponderados.

Assim, o primeiro tem a ver com o âmbito de aplicação, com o artigo 1.º do diploma, porque há aqui uma disparidade em relação à reforma do contencioso administrativo, que é ainda recente, uma vez que este diploma restringe o âmbito da sua aplicação, da responsabilidade civil extracontratual, aos actos de gestão pública. Ora, é sabido que a Administração também intervém em actos de gestão privada e que os actos de gestão privada praticados por entidades públicas estão hoje, por força da reforma do contencioso administrativo, sob a alçada dos tribunais administrativos.

Portanto, temos aqui uma disparidade de regimes, que é legítima, mas, de qualquer forma, deveria ser ponderada; ou seja, se não se deveria fazer coincidir o âmbito material dos dois diplomas, o da competência dos tribunais administrativos e o do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado. Poderia haver vantagem em fazê-los coincidir, e é algo que não acontece, segundo esta proposta, e que deveríamos efectivamente ponderar.

O segundo aspecto que eu gostaria de referir tem a ver com o artigo 8.º da proposta de lei — estou apenas a mencionar os aspectos mais importantes, haverá seguramente outros que iremos suscitar em sede de especialidade. De facto, nesta proposta, para efeitos de responsabilização dos titulares de órgãos ou dos agentes da Administração Pública, são referidos dois conceitos, que são o dolo e a culpa grave. Entretanto, no artigo 8.º adopta-se uma formulação diferente, falando-se em dolo ou «diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo». Uma hipótese é a de se pretender com isto dar uma definição de culpa grave, mas, a ser assim, creio que deveria haver uma uniformidade de formulações; ou seja, o mesmo diploma não deveria adoptar uma formulação nuns artigos e outra noutros, porque, como se sabe, isto é susceptível de vir a criar equívocos.

Uma terceira questão tem a ver algo muito discutido aquando das audições realizadas na Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, que é a responsabilidade civil do Estado no exercício da função jurisdicional e o direito de regresso que possa ter lugar em função desta responsabilidade. Já foi dito aqui, e importa sublinhá-lo, que a redacção que está proposta é muito responsabilizante para o Estado, e ainda bem, na medida em que prevê que o Estado possa ser responsabilizado por decisões judiciais que não sejam emitidas em prazo razoável. Nós sabemos, tendo em conta o que conhecemos do funcionamento da justiça, que, infelizmente, muitas decisões, obviamente devido às difíceis condições em que funcionam os tribunais, não são emitidas em prazo razoável, o que fará o Estado incorrer em responsabilidade. Isto é um imperativo constitucional e, portanto, o Estado faz bem em tutelar o direito dos cidadãos a uma decisão em prazo razoável. Contudo, é preciso ter isto em consideração e é preciso que haja um esforço decidido para que as deficiências que afectam hoje o funcionamento dos tribunais possam ser corrigidas e para que o Estado não esteja a ser constantemente condenado por não haver decisões judiciais em prazo razoável.

Eu diria, todavia, que o imperativo constitucional não se refere exclusivamente à decisão em prazo razoável mas também ao direito dos cidadãos a um processo judicial equitativo, e a falta de uma decisão judicial equitativa também deveria fazer o Estado incorrer em responsabilidade civil extracontratual. Não há razão para distinguir estes dois aspectos e creio que a proposta de lei faz mal em só se referir ao prazo razoável e não ao carácter equitativo do processo.

Sr. Presidente, para terminar, e este é um último aspecto, devo dizer que concordamos com a necessidade de ser efectuado o direito de regresso em todos os casos de dolo ou culpa grave, independentemente da natureza do agente e seja qual for o âmbito dessa responsabilidade, no plano administrativo, legislativo, político ou jurisdicional. Estamos de acordo com isto, mas há um problema que queremos suscitar, embora não tenhamos para ele solução, porque há normas constitucionais que se sobrepõem, no que respeita à responsabilidade do legislador por inconstitucionalidade por omissão.

De facto, a proposta de lei prevê que o legislador possa ser responsabilizado pela omissão legislativa, pelo incumprimento da Constituição por omissão. Acontece, porém, que o lesado não tem qualquer possibilidade, na nossa ordem jurídico-constitucional, de accionar o Estado por inconstitucionalidade por omissão.

Como se sabe, a Constituição adopta um critério muito restritivo de fiscalização da responsabilidade por omissão, o que faz com que alguém que seja lesado por uma omissão do legislador não tenha possibilidade de recorrer aos tribunais para que isso seja reconhecido. É forçoso admitir, portanto, que há aqui uma ausência de tutela dos cidadãos lesados pela inconstitucionalidade por omissão, o que faz com que esta questão tenha de ser, pelo menos, ponderada. Na verdade, fazer depender a efectivação deste direito de uma declaração de inconstitucionalidade por omissão do Tribunal Constitucional, ao qual os cidadãos não têm possibilidade de chegar, é, na prática, inutilizar em larga medida este direito. Esta questão obriga, necessariamente, ao respeito da disposição constitucional e, não sendo possível encontrar mecanismos paralelos de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, deveríamos ponderar uma forma de, nestes casos, tutelar melhor este direito dos cidadãos, se é que se quer consagrar, de facto, um direito e não apenas uma disposição inócua e sem consequências práticas.

Sr. Presidente, são apenas estas as questões que entendemos ser útil colocar desde já, sendo, obviamente, total a nossa disponibilidade para, em sede de especialidade, procurar encontrar as melhores soluções, com vista à consagração de algo que já deveria estar positivado há muito na nossa ordem jurídica.