Reforma da Administração
Pública
Intervenção do Deputado António Filipe
26 de Junho de 2003
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
O Senhor Primeiro-Ministro convocou anteontem todo o seu Governo, toda a comunicação social e uma miríade de convidados para uma “revolução anunciada” na Administração Pública Portuguesa e fez o que quase todos os Governos fizeram nas últimas três décadas que foi apresentar um documento sobre a Reforma da Administração Pública.
Na verdade, não houve praticamente Governo nos últimos 30 anos que não tenha erigido a Reforma da Administração Pública como uma das suas prioridades e não raros foram aqueles que apresentaram documentos estratégicos sobre a reforma administrativa, a que atribuíram uma importância decisiva, mas que nunca puderam, nunca souberam, ou nunca quiseram levar à prática.
Basta lembrar, para não ir mais atrás, o trabalho do Gabinete de Estudos da Reforma Administrativa, criado em 1981; do Secretariado para a Modernização Administrativa, criado em 1986; da Comissão para a Qualidade e Racionalização da Administração Pública, criada em 1992; o Relatório “Renovar a Administração”, de 1994; ou o Relatório da Equipa de Missão para a Organização e Funcionamento da Administração do Estado, de 2002.
E se é verdade que nenhuma destas reformas se concretizou, como afirma o Senhor Primeiro-ministro, com alguma razão, também é verdade que todas as reformas falhadas começaram exactamente como esta: Com a apresentação de um documento e com a promessa de que “agora é que vai ser”.
Porém, descontado o exagero gongórico da proclamação, importa analisar o conteúdo da comunicação do Senhor Primeiro-ministro.
Importa dizer desde logo que, se como afirma o Senhor Primeiro-Ministro, a nossa Administração Pública tem uma estrutura do século XIX, o diagnóstico que ele nos apresentou não é muito mais recente. Trata-se de um diagnóstico repetido até à exaustão por sucessivos Governos e reconhecido por todos desde há muitos anos.
Que é indispensável uma Reforma Administrativa em Portugal, somos os primeiros a dizê-lo. Mas dizemos também que as linhas em que deve assentar essa Reforma estão muito longe dos propósitos mais que estafados que o Senhor Primeiro-ministro acaba de anunciar como novidades, ao fim de quase um ano e meio de reflexão.
Que a Administração Pública Portuguesa assenta em estruturas inadequadas e antiquadas, que padece de numerosas disfunções e irracionalidades que queimam recursos financeiros e humanos e que causam o descontentamento dos funcionários e dos utentes, são factos de todos conhecidos.
Mas já não passa de uma grosseira falsificação, dizer que o mal do nosso país é ter “Estado a mais” e fazer recair o odioso do mau funcionamento de alguns serviços da Administração Pública na existência de um regime laboral específico da Função Pública.
Essa falsificação, facilmente desmontável, como adiante demonstrarei, não é no entanto inocente. Quando o Senhor Primeiro-ministro diz que temos “Estado a mais”, o que pretende é transferir serviços públicos para as mãos dos negócios privados, permitindo a alguns grupos financeiros aumentar os seus lucros à custa do Estado e dos utentes. E quando o Senhor Primeiro-ministro desfere um violento ataque ao regime de emprego público, o que pretende acima de tudo é pôr em causa direitos dos trabalhadores que constituem garantias de independência do funcionalismo público e que constituem direitos de referência positiva para a generalidade dos trabalhadores.
Não é verdadeira a afirmação de que existe em Portugal “Estado a mais”. Haverá seguramente “Partido a mais” em algumas estruturas da Administração Pública, tomadas de assalto pelos boys de diversos governos. Haverá porventura algum esforço de racionalização que terá de ser feito em alguns serviços para adaptar as suas estruturas e os seus recursos humanos à evolução dos tempos e das exigências do serviço público.
Mas se pensarmos nos ministérios que contribuem com as mais largas fatias do funcionalismo público, que são, de muito longe, a Educação, a Saúde, alguma vez podemos concluir que temos “Estado a mais”?
Então quando as nossas escolas não têm funcionários para assegurar o seu funcionamento mínimo, temos funcionários a mais? Então, com as carências educativas de que o nosso país padece e que nos afastam dos níveis educacionais dos países mais desenvolvidos, podemos concluir que há professores a mais? Então com as manifestas carências de pessoal médico e de enfermagem em tudo quanto é hospital ou centro de saúde, alguma vez podemos dizer que há médicos e enfermeiros a mais? Quando alguém afirma que há “Estado a mais” não estará a esquecer-se das reivindicações que correm por esse país fora quanto à necessidade de assegurar mais e melhores centros de saúde e hospitais e de assegurar mais e melhores escolas?
E quanto aos dois ministérios que se seguem, em número de funcionários, que são o da Defesa Nacional e o da Administração Interna, passa pela cabeça de algum membro do Governo reduzir os efectivos militares ou fazer despedimentos colectivos na PSP ou na GNR pelo facto de ter-mos “Estado a mais”?
O nosso problema não é ter “Estado a mais”. Em alguns sectores é preciso reconhecer que temos até “Estado a menos”. A Administração Pública cresceu significativamente após a revolução de Abril de 1974 porque foram reconhecidos direitos sociais fundamentais dos cidadãos que não eram até então assegurados e que se traduziram num inevitável e desejável crescimento dos serviços públicos. Mas o nível de satisfação de muitos desses direitos nunca chegou a igualar os que chegaram a ser praticados em países mais desenvolvidos.
O problema é que as reivindicações neo-liberais de desmantelamento do chamado “Estado-providência” chegaram a Portugal mesmo antes desse “Estado-providência” ser uma realidade.
Daí que quando o Senhor Primeiro-ministro fala em alienar aquilo a que chama de “funções acessórias” do Estado, a favor de outras entidades supostamente mais capazes para as desempenhar, não faz mais do que anunciar a sua adesão, que aliás já todos conhecemos, a um Thatcherismo tardio cujas consequências nefastas para os serviços e para os utentes são hoje mais que conhecidas.
As teses neo-liberais que inspiraram diversas reformas administrativas, sobretudo a partir dos Governos de Reagan nos Estados Unidos e da senhora Thatcher na Grã-Bretanha, assentes nas ideias de que o que é público é ineficiente e da substituição do Estado prestador pelo Estado financiador ou regulador, conduziram a profundos retrocessos nos níveis de bem-estar social, mas propiciaram chorudos lucros aos grupos económicos beneficiários da privatização dos serviços públicos.
Sabe-se hoje que os utentes só perderam com essas privatizações. Passaram a pagar o que antes não pagavam e confrontaram-se com a degradação dos serviços prestados, com a redução das suas garantias enquanto utentes e com a ineficácia dos supostos mecanismos de regulação normalmente reféns das próprias entidades reguladas. Sabe-se também que os Estados foram prejudicados, passando em alguns casos a transferir para as empresas prestadoras verbas superiores às que gastariam se assegurassem directamente o funcionamento dos serviços.
Haverá em Portugal algum utente do Hospital Amadora-Sintra que considere que a gestão privada desse hospital beneficiou o Estado ou os utentes? E haverá algum utente que se considere beneficiado pelo facto da distribuição de água à sua residência ter passado para as mãos de uma multinacional? O exemplo da Grã-Bretanha, onde já se admite voltar a nacionalizar os caminhos-de-ferro, devido ao descalabro da insegurança decorrente da sua privatização, não deve servir de exemplo aos vindouros?
Seria bom que o Senhor Primeiro-ministro, em vez de permanecer colado aos dogmas já desacreditados do neo-liberalismo, assentes em opções puramente ideológicas reconhecidamente lesivas do interesse público e dos cidadãos, pensasse que a Reforma da Administração Pública de que precisamos não pode assentar numa pura lógica de lucro empresarial, mas tem de saber conjugar os valores da eficácia e da eficiência, com critérios de legitimidade e de salvaguarda de direitos dos cidadãos.
Um segundo ponto que se apresenta como emblemático desta anunciada reforma é a generalização da regra do contrato individual de trabalho na Administração Pública, e também esse é um falso problema.
Há muitos problemas ao nível dos recursos humanos na Administração Pública a carecer de mudanças profundas. Basta olhar com atenção para o mais recente recenseamento geral da função pública para os detectar claramente. O problema do funcionalismo público em Portugal não é o estatuto da função pública. O problema é que o funcionalismo público em Portugal é envelhecido, pouco qualificado e em largos segmentos, mal pago.
O problema da Administração Pública não é o de como dispensar funcionários. Deveria ser fundamentalmente o de, como recrutar mais jovens, como investir na formação e na qualificação, como garantir níveis remuneratórios dignos em escalões menos qualificados e como impedir que ao nível dos quadros mais qualificados a atracção do sector privado se torne irrecusável.
É bom não esquecer que o estatuto próprio do pessoal da Administração Pública tem uma origem histórica que se relaciona com a necessidade de garantir a sua independência e isenção e que se traduz em mecanismos objectivos de ingresso e de progressão nas carreiras. Não negamos que em alguns serviços se possa impor a necessidade de adoptar procedimentos mais flexíveis, mas a substituição pura e simples que se propõe do regime da função pública pelo regime do contrato individual de trabalho não visa resolver problemas dos serviços. Visa desproteger os trabalhadores, directamente os da função pública e indirectamente todos os demais, abre a porta para mecanismos discricionários de admissão e progressão nas carreiras que podem dar lugar a todo o tipo de clientelismo, e faz parte de uma velha táctica de culpar os trabalhadores e o seu estatuto pelos males que afectam a Administração Pública.
Pensar que se pode fazer uma Reforma da Administração Pública agredindo e hostilizando quem nela trabalha tem sido uma das maiores causas do falhanço das reformas administrativas. Também aqui o Governo parece não ter aprendido com as lições do passado.
É óbvio que nem todos os propósitos anunciados pelo Governo merecem um juízo negativo. Há aspectos de simplificação de procedimentos, de utilização de tecnologias da informação, de aproximação dos serviços aos cidadãos, de formação de recursos humanos, de regulação dos institutos públicos ou da responsabilidade extracontratual do Estado, que seria bom que passassem do papel e fossem levados à prática.
Acompanharemos com atenção e sentido de responsabilidade os desenvolvimentos da reforma agora anunciada. Sem qualquer problema em concordar com as medidas que nos pareçam adequadas e que possam contribuir para melhorar e racionalizar o funcionamento da Administração Pública. Mas, há que dizê-lo, este “pontapé de saída” não permite grandes optimismos. Não apenas porque não traz grandes novidades. Nem na forma nem no conteúdo. Mas fundamentalmente porque insiste em receitas privatizadoras já desacreditadas, cujos maus resultados para o interesse público estão mais que demonstrados, e porque mais uma vez comete o erro grosseiro de querer fazer uma Reforma da Administração Pública à custa dos direitos daqueles que nela trabalham e que carregam sobre os ombros os custos das más opções políticas dos governos que desde há décadas elegem a Reforma da Administração Pública como uma das suas prioridades, com os resultados que são de todos conhecidos.
Disse.