Sessão evocativa do 60º Aniversário
da derrota do nazi-fascismo
Intervenção de Jerónimo de
Sousa, Secretário-geral do PCP
Lisboa, 9 de Maio de 2005
Decorrem por todo o mundo as comemorações do 60º Aniversário
da Vitória sobre o nazi-fascismo que pôs fim à II Guerra
Mundial. Ao assinalarmos também aqui em Lisboa nesta singela mas significativa
iniciativa o dia da Vitória queremos, em primeiro lugar, recordar os
50 milhões de mortos, os extermínios em massa de populações
civis e prisioneiros, os horrores das câmaras de gás e dos tenebrosos
campos de concentração nazis, os colossais sacrifícios
e privações de povos inteiros esmagados pelo peso da guerra e
da barbárie nazi-fascista, expressar o nosso reconhecimento e prestar
a nossa mais sentida homenagem a todos os que lutaram e aos muitos que perderam
a vida para libertar a humanidade do pesadelo do nazismo.
O alto significado desta memorável data jamais pode ser esquecida pelos povos que aspiram à liberdade, à democracia, à paz e à independência nacional.
Sessenta anos depois da vitória sobre o mais odioso dos regimes e a mais ignóbil e sangrenta ditadura que conduziu o mundo à mais mortífera das guerras é, para nós, comunistas, momento de reflexão e evocação, como o será para todos os democratas e antifascistas. Reflexão sobre as causas e factores que levaram à ascensão do fascismo e sobre as condições que permitiram e tornaram possíveis a guerra e a criminosa tentativa de impor a todo o mundo a “nova ordem” hitleriana contra os trabalhadores e contra os povos. Evocação para que os crimes não se repitam e voltem a ensombrar a vida da humanidade.
Reflexão e rememoração sempre necessárias quando sabemos que sessenta anos são um tempo curto na vida dos povos, mas tempo suficiente para permitir, certos da estreita memória dos homens, operações de adulteração e tentativas de reescrita da História, uns na esperança de verem apagada no tempo a sua responsabilidade passada e iludir as causas que estão na origem da afirmação do fascismo e da sua mais brutal expressão o nazismo, e outros para, através de deliberadas omissões, colocarem a história ao serviço dos seus projectos de dominação ideológica e dos seus objectivos imperiais de domínio planetário.
Falsificações da história e omissões facilitadas pelas mudanças operadas no mundo na última década, com a derrota do socialismo na URSS e pela alteração da correlação de forças daí resultante que impõem reelaboradas visões do mundo através dos seus poderosos e diversificados instrumentos de propaganda e influência ideológica, que difundem com o objectivo de desarmar a luta dos povos contra a dominação imperialista que está a conduzir de novo o mundo para a guerra. Adulterações da história favorecidas também por cúmplices silêncios.
Nesta agitada azáfama dos últimos anos de reescrever a História da II Guerra Mundial e dos acontecimentos que a antecederam estão claros os propósitos de omitir a origem do surgimento das ditaduras fascistas que precederam a guerra e a sua natureza de classe, as causas económicas e sociais da guerra e os objectivos imperialista e anti-comunista que a determinavam, de apagar o papel dos comunistas, do movimento operário e das massas na resistência ao fascismo e na luta contra a guerra, de minimizar o contributo da URSS e do povo soviético na derrota da mais negra e odiosa ditadura que o sistema capitalista gerou, mas também a ocultação dos vergonhosos compromissos e complacência das classes dirigentes europeias e dos seus governos perante os terríveis propósitos do nazismo alemão de desencadear uma guerra de rapina e de expansão territorial.
Quem vê e ouve Bush no seu périplo comemorativo pela Europa poderia pensar que a derrota do nazismo alemão e o fim da guerra resultou da decisiva iniciativa dos Estados Unidos da América, secundados pela Grã-bretanha cujos desígnios de libertação dos povos e expansão da democracia seriam ainda hoje herança da sua Administração. Numa operação propagandística que sem o mínimo decoro se apropria não só do significado libertador da vitória sobre o nazismo, como se serve dela para legitimar a sua política de agressão e de guerra em nome da democracia.
Nós saudamos a importância e o contributo da Coligação dos Países Aliados e rendemos homenagem aos seus combatentes e aos seus mortos, mas não aceitamos nem podemos permitir que se apague da história o contributo decisivo da URSS, do seu povo e do seu Exército que suportaram o peso fundamental do conflito com 27 milhões de vidas humanas e colossais perdas materiais. Não há reconstruções fantasiosas, por muito importante que tenha sido a abertura da frente da Frente Ocidental e o desembarque da Normandia que possa ocultar e desvalorizar o facto de ter sido precisamente na Frente soviético-alemã que foi arrancada ao exército alemão a iniciativa estratégica com uma estrondosa e demolidora derrota em batalhas decisivas que lhes aniquilam 507 divisões e permitiu passar à ofensiva até Berlim. Foi nesta Frente que a Alemanha teve a larguíssima maioria das suas baixas. Nada pode apagar a coragem e firmeza e determinação de milhões de homens que fizeram frente aos exércitos alemães e nestes os mais de milhão e meio de comunistas soviéticos que deixaram as suas vidas neste combate sem tréguas contra a besta fascista. Nada pode fazer esquecer que foi o povo soviético e o Exército Vermelho o grande artífice da Vitória.
Como nada pode apagar a luta heróica da resistência antifascista e patriótica nos países ocupados pelos hitlerianos e do valoroso contributo dos comunistas, milhares e milhares dos quais pagaram com as suas vidas a libertação dos seus povos e que tem na resistência francesa à ocupação um dos mais exaltantes exemplos de dedicação à causa dos povos e da liberdade. A mesma luta e a mesma coragem e dedicação na resistência antifascista em Itália, na Jugoslávia, na Checoslováquia ou na Polónia. Uma luta heróica com os comunistas na vanguarda, apelando à resistência, mobilizando as massas para a luta, organizando a acção clandestina e pegando em armas contra o invasor.
Em muitas cerimónias de indecorosa apropriação do significado desta data e de tentativa de destruição da memória se omitirá a vergonhosa capitulação da burguesia dominante e dos seus governos, que fecharam os olhos aos agressores, recuaram perante a ofensiva da peste nazi-fascista, escancarando as portas à guerra e entregando com o maior do sangue-frio a Etiópia, a Espanha republicana, a Áustria e a Checoslováquia, com a sua política de apaziguamento e capitulação em Munique, e finalmente a Polónia que os governos ocidentais abandonaram à sua sorte na esperança de que o rumo da agressão e da guerra se dirigisse exclusivamente contra a União Soviética socialista.
A mesma complacência de classe que conduz hoje Bush e seus aliados da ”nova Europa” ao branqueamento do nazi-fascismo. A mesma cumplicidade de classe que equipara e coloca no mesmo pé de igualdade o odioso regime do III Reich – Império de mil anos – glorificador da violência extrema e da solução final de extermínio físico de povos e raças inteiras e fundado no mito racista do super-homem ariano destinado a escravizar e subjugar todos os povos, com a luta dos comunistas e dos seus ideais de igualdade, de cooperação e de paz.
A mesma condescendência que branqueia ou omite o monstruoso crime da bomba de Hiroshima.
É necessário hoje lembrar que a II Grande Guerra foi inseparável da crise do sistema capitalista e do ascenso do fascismo como resposta das classes dominantes a essa mesma crise. Alimentado e financiado pelo grande capital monopolista o fascismo nas suas diversas expressões em toda a Europa foi o instrumento dos círculos dirigentes económicos e políticos para conter e esmagar as movimentações sociais, o movimento operário e a resposta política à perspectiva da revolução socialista. Por detrás do regime brutal de Hitler estava o grande capital financeiro e industrial alemão que aspirava às vantagens da militarização, da expansão territorial o do aniquilamento das liberdades democráticas e da luta do movimento operário. Se é certo que na ascensão de Hitler ao poder pesaram sentimentos de frustração e desejo de desforra da derrota da I Grande Guerra, é também verdade que sem o apoio e a cumplicidade do grande capital alemão Hitler não teria chegado ao poder. Apoio que também o capital transnacional não negou, particularmente no financiamento e ajuda à expansão económica do III Reich, e que criou as condições materiais para o desencadear da guerra.
Portugal atravessou o período da guerra e os anos que a antecederam debaixo da ditadura fascista de Salazar. A ditadura terrorista do capital também aqui na nossa terra levaria à supressão das liberdades, à construção de um Estado policial e a uma violenta ofensiva contra o movimento operário. Os comunistas portugueses, que desde 1926 viviam na clandestinidade, nunca deixaram de desenvolver a sua patriótica e internacionalista luta contra o regime fascista. Foi nos duros anos da Segunda Grande Guerra na luta contra o fascismo salazarista e ao seu apoio a Hitler e Franco que os comunistas portugueses se lançaram num profundo processo de reorganização que permitiu o surgimento do PCP como um partido nacional com profundas raízes entre os trabalhadores e as massas populares. Foi neste esforço de reforço organizativo, de implantação e de luta que se afirmou também como uma força determinante e indispensável do movimento antifascista em Portugal. Foi na luta de resistência antifascista, desmascarando a falsa neutralidade de Salazar, e na organização da luta dos trabalhadores e das massas que os comunistas portugueses reforçaram o seu prestígio entre os trabalhadores, os intelectuais e o povo português.
A vitória sobre o nazi-fascismo teve profundos reflexos na nova situação internacional abrindo espaço à afirmação das forças da democracia, do socialismo, de libertação nacional e da paz. Nos anos que se seguiram os trabalhadores e os povos de todo o mundo alcançaram importantes conquistas políticas, económicas e sociais que moldaram e marcam hoje a nossa vida.
Em Portugal, sob a ditadura, a vitória foi comemorada em enormes manifestações de afirmação democrática e patriótica que fizeram tremer o regime e levou a momentâneas concessões que não tardariam a ser postas em causa pelo reforço da repressão anti-comunista. Beneficiando da cumplicidade e da benevolência das grandes potências imperialistas e das suas alianças anti-comunistas o regime fascista de Salazar sobreviveria ao fim da guerra e manter-se-ia por mais alguns e longos anos, mas acabaria por cair pela luta do povo português naquela inesquecível madrugada de 25 de Abril.
Sessenta anos passados, neste início do Século XXI o mundo é muito diferente, mas nem por isso desapareceram as ambições de domínio mundial das forças mais reaccionárias do grande capital financeiro reforçadas com as suas tentaculares organizações planetárias e com a nova correlação de forças mundial resultante do desaparecimento do socialismo como sistema mundial.
Sessenta anos passados o mesmo capital e as grandes potências que suportam os seus interesses e as suas ambições hegemónicas rivalizam pela apropriação dos recursos dos povos, pelo domínio dos mercados e pelo controlo de esferas de influência.
Sessenta anos passados, a mesma política de reforço de blocos, os mesmos planos de militarização, agora da União Europeia que o novo “Tratado Constitucional” assume e reforça e a que se junta a imposição da matriz neoliberal e do capitalismo como única saída para a solução dos problemas dos povos.
Sessenta anos passados, a mesma contradição entre as enormes potencialidades permitidas pelas grandes conquistas da ciência e da técnica e a persistência da fome e da pobreza de milhões de seres humanos, as mesmas relações de subjugação, de trocas e de desenvolvimento desiguais, as mesmas relações de exploração. De novo a crise do sistema capitalista e da aposta no militarismo como saída para crise. De novo a mesma complacência e solidariedade de classe na agressão e ingerência na vida dos povos espezinhando o Direito Internacional. A mesma linha de ataque contra os direitos laborais e sociais dos trabalhadores com o objectivo de os fazer recuar para o patamar mínimo anterior à guerra.
Sessenta anos passados a mesma perigosa banalização da violência, a mesma naturalização dos sentimentos xenófobos e do racismo.
Apesar dos imensos perigos, comemoramos o Dia da Vitória confiantes na capacidade de resistência e luta das forças organizadas dos trabalhadores e dos povos contra as agressões imperialistas e a ofensiva do grande capital.
Sessenta anos passados está nas mãos das forças do progresso e da democracia, nas mãos dos trabalhadores e dos povos travar a escalada belicista e de agressão aos povos do globo.
Está nas mãos de todos nós a defesa
de um mundo de cooperação e de paz entre todos os povos.