Permitam-me que em nome do Partido Comunista Português saúde a decisão do Município de Coimbra e a presença do Senhor Presidente, em distinguir essa personalidade de grande relevo e multifacetada do Portugal contemporâneo – político e estadista de dimensão nacional e internacional, intelectual, homem da cultura e das artes - que foi Álvaro Cunhal, com o descerramento de uma placa assinalando o local do seu nascimento.
Diz a placa que agora se inaugura que “Álvaro Cunhal é uma figura ímpar da história moderna portuguesa, que honra a cidade de Coimbra”, esta cidade de tradição e luta democrática e da juventude que reconhecemos como cidade do saber e do conhecimento, essa dimensão que a personalidade fascinante que agora homenageamos e filho desta terra enriqueceu com o seu trabalho de décadas em diversas vertentes, que combinou com uma intervenção exigente e qualificada no plano político, partidário e institucional.
Sim, ele foi essa figura ímpar que nos honra também a nós e o País. Álvaro Cunhal foi um protagonista destacado presente nos mais significativos e importantes acontecimentos da nossa vida colectiva do último século e princípios do presente, um combatente intrépido que se entregou com denodada abnegação, resistindo às mais terríveis e duras provas de vida clandestina e prisão, à causa da liberdade, da democracia, e uma referência na luta pela concretização dos elevados valores da emancipação social e humana.
Personalidade de invulgar inteligência, homem de firmes convicções, inteireza de carácter; político de acção e autor de uma obra notável, Álvaro Cunhal dedicou toda a sua vida e o melhor do seu saber, como dirigente do PCP, como Deputado, como Ministro da República nos governos provisórios de Abril, como Conselheiro de Estado à defesa dos interesses do seu povo e do desenvolvimento do seu País.
Álvaro Cunhal assumiu responsabilidades no Governo de Portugal num momento decisivo da vida do nosso povo e num quadro de grande complexidade e exigência.
A sua imediata integração no primeiro governo provisório saído da Revolução de Abril de 1974 significava não apenas o reconhecimento do seu trajecto de lutador antifascista, da sua elevada capacidade política e de liderança, mas o inestimável e inigualável papel que desempenhou na teorização da revolução portuguesa.
Homem de Abril, Álvaro Cunhal deu um contributo precioso com a sua acção, mas particularmente com essa obra notável que é o Rumo à Vitória e que, inquestionavelmente, apontou os caminhos e criou condições para a Revolução libertadora de Abril, a sua defesa e consolidação, e para as profundas transformações revolucionárias operadas na sociedade portuguesa.
Esse empolgante empreendimento do povo português e o mais avançado da nossa modernidade.
Obra marcante e que haveria de ter um grande impacto e influência em largos sectores do movimento democrático e na dinâmica e unidade das forças da Oposição ao regime fascista de Salazar e Caetano.
De facto, Álvaro Cunhal foi um resistente, mas foi também um arquitecto e construtor da democracia de Abril.
A sua dimensão política e de estadista não se revela, porém, apenas nos períodos da resistência ao fascismo e no período dos grandes avanços revolucionários que permitiram uma profunda transformação da vida nacional a favor dos trabalhadores e do povo.
A sua dimensão de político e estadista está patente nos combates em defesa das conquistas e realizações de Abril e dos seus valores, nas batalhas que travou em defesa da Constituição da República e do projecto que transporta, que havia aprovado como deputado constituinte.
Estudioso e conhecedor da realidade portuguesa e das relações internacionais, Álvaro Cunhal combinou sempre uma esforçada intervenção concreta sobre a realidade com uma profícua produção teórica para responder aos problemas da sociedade portuguesa e à concretização de um projecto de desenvolvimento soberano do País.
Possuidor de uma densa cultura e de uma grande dimensão humanista, deixou-nos um valioso legado teórico de estudos e análise política e histórica, mas igualmente uma importante produção artística.
Um abundante e valioso património que reflecte um pensamento de grande riqueza e actualidade que é um herança de todos os que aspiram construir um mundo melhor e mais justo, mais democrático e mais solidário.
No acervo de estudos e ensaio político abarcando uma diversidade de objectos e temas são célebres a tese pioneira sobre O Aborto Causas e Soluções (1940), o seu trabalho de análise sobre a realidade dos campos em Contribuição para o Estado da Questão Agrária, o seu estudo histórico sobre um período tão significativo para a própria independência do país e tão exaltante pelo papel que desempenhou o povo de Lisboa na Revolução de 1383/1385 e que trabalhou em As Lutas de Classes em Portugal nos Fins da Idade Média, mas também outros períodos da nossa história mais recente em A Revolução Portuguesa. O Passado e o Futuro. Mas igualmente em A verdade e a mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se), entre muitos outros.
Uma abundante análise e um olhar permanente sobre os mais variados problemas do País e da vida internacional de eminente pendor político podem ser encontrados nos seus Discursos Políticos editados em 23 volumes, nas Obras Escolhidas e numa profusão de artigos e brochuras de revistas nacionais e internacionais.
Uma obra que no seu conjunto constitui um enorme património teórico – que se reflectiu na acção prática – e que é um valioso legado não só para o PCP, mas para todos que aspiram ao conhecimento da luta do povo português nas últimas décadas e dos que se empenham e aspiram a lutar por transformações progressistas no nosso País e no mundo.
Álvaro Cunhal interligou a sua intervenção revolucionária no plano político com um apaixonado interesse por todas as esferas da vida, nomeadamente na actividade de criação artística.
Autor de uma arte comprometida e por onde perpassa o povo que sofre e luta, Álvaro Cunhal cria uma dezena de obras literárias, donde emergem, como expoentes maiores, o romance Até Amanhã, Camaradas e a novela Cinco Dias, Cinco Noites, ambos escritos no isolamento total da Penitenciária de Lisboa.
É na prisão que leva por diante a notável tradução do Rei Lear, de Shakespeare, desenha e pinta um vasto conjunto de quadros e produz o texto sobre estética Cinco Notas Sobre Forma e Conteúdo – matéria que voltará a abordar, mais tarde, após o 25 de Abril, no importante ensaio A Arte, o Artista e a Sociedade, uma obra onde se revela o valor social da criação artística.
A vida, o pensamento e a luta de Álvaro Cunhal justificam a homenagem que o País lhe tem prestado.
Álvaro Cunhal deixa um imenso legado. Deixa-nos desde logo esse grande exemplo da entrega desinteressada ao serviço da causa justa que abraçou e uma concepção do exercício da actividade política entendida como realizada para servir o povo e o País e não interesses pessoais ou de grupo.
Uma concepção onde está presente a recusa de vantagens sociais e privilégios pessoais.
Uma concepção do exercício da actividade política conduzida por valores políticos éticos, desde logo o valor do respeito pela verdade.
Dizia Álvaro Cunhal que “política é uma palavra digna. Significa uma orientação, uma proposta e uma intervenção destinada a resolver os problemas que se colocam na vida de qualquer sociedade”.
Num momento em que o País enfrenta graves problemas que uma política contra Abril promoveu e a actual epidemia agravou, e se afirma a necessidade de encontrar os caminhos do progresso e da justiça social, a luta, a obra e o pensamento de Álvaro Cunhal projectam-se como contributos inestimáveis para a conquista de um futuro que tenha como referência os valores de Abril – os valores da liberdade, da emancipação social, do Estado ao serviço do povo e não da exploração, do desenvolvimento visando a melhoria da qualidade do nível de vida dos portugueses, o pleno emprego, uma justa e equilibrada repartição da riqueza nacional, da soberania e independência nacional.
Neste momento de homenagem a quem tanto lutou por Abril, pela sua afirmação e defesa das suas conquistas, e quando certas forças se insinuam e tentam normalizar práticas e políticas contra aquela que foi uma das mais importantes realizações do povo português, é ocasião também para reafirmar com toda a confiança que o melhor do caminho histórico de Abril ainda está para vir e que, mais tarde ou mais cedo, a luta dos trabalhadores e do povo, a luta dos democratas, não deixará morrer o sonho de ver retomados os seus caminhos e a concretização plena dos seus valores.
É para nós inquestionável que são os povos que fazem a história, mas é inquestionável também que ela precisa do concurso dos homens certos, e em cada momento, para lhe dar rumo e movimento. De homens como Álvaro Cunhal que, conhecendo a realidade e os desafios do seu tempo, são capazes igualmente de compreender e interpretar as aspirações mais profundas do povo e lhes dar um sentido!
Mais uma vez saudamos a decisão do Município de Coimbra que nos honra e honra a sua memória!